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Considerações sobre a crise do senso comum

Barbuy: senso comum (3) - metafísica

Revista Brasileira de Filosofia, vol. III, fasc. 4, 1953

quarta-feira 6 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 140-145.

3. Com a teoria do universal matemático, este novo método que deveria eliminar do campo da verdade tudo quanto é realidade, instaura-se uma separação definitiva entre a vida e a filosofia, pelo desaparecimento da Metafísica. Antes de Descartes   [140], a palavra Metafísica não significava um universo de essências etéreas e relações abstratas; a metafísica significava justamente o que ela é, ou seja, uma ciência da realidade compreendida não como oposição mas como sinônimo da verdade; uma ciência da realidade e a única ciência da realidade, porque uma ciência da essência e da existência dos seres. Mas depois de Descartes a metafísica se separou de tal modo da realidade, a realidade começou a ser vista não mais como algo de substancial e sim como um conjunto de aparências e fenômenos; e essas aparências e fenômenos se converteram em algo tão distinto e tão separado do ser, que foi preciso fabricar uma ciência nova, substitutiva da metafísica e especialmente endereçada ao estudo do ser, como se o estudo da realidade, já por si mesmo, não fosse o estudo do ser; mas a realidade era agora uma cousa e outra era o ser; nem poderia explicar-se, sem esta separação radical, o aparecimento, no séc. XVII, de uma nova ciência de tipo cartesiano a que Clauberg deu o nome de ontologia: o aparecimento da ontologia manifesta uma atitude de espírito que nega o senso comum pela separação entre a realidade concreta e o mundo do pensamento. Não menos expressivo é o lançamento, por Goclenius de Marburg, em fins do séc. XVI, da ciência denominada “Psychologia”, que se destacou inteiramente daquela Philosophia   Naturalis, onde os medievais, radicados ao mundo concreto, discutiam os problemas da alma: De anima  . A psicologia e a ontologia nasceram como ciências isoladas, completamente desligadas do real, em virtude da mesma tendência que levou o pensamento dos últimos séculos a querer explicar o total pela ciência de alguma de suas partes. Corolário desta tendência é a generalizada ideia de que, para os gregos a philosophia   teria sido representada pela soma de todo o saber humano, incluído tudo quanto veio a constituir depois o objeto de cada uma das ciências particulares; os positivistas vulgarizaram esta noção e consideraram que, na proporção em que as várias ciências foram surgindo e crescendo, desmembraram-se da filosofia, cujo domínio assim se foi empobrecendo até que um dia, quando não mais houvesse mistérios e incognoscíveis, quando tudo fosse objeto de ciência, não mais haveria lugar para a filosofia [1]. Este erro positivista nasceu daquela universal [141] matemática de Descartes, que só admitia um modo de conhecimento, que era o fundado nas ciências da clareza e nas ideias distintas e portanto naquelas ciências que menos podem captar a realidade, a partir do princípio de que não captam sequer a essência e a existência dos seus próprios objetos. No entanto, Platão   já havia definido a filosofia, não como a soma do que se pode saber a respeito dos fenômenos superficiais do mundo e sim como a ciência da essência e da existência das cousas, tal como Aristóteles   a definiu — como a ciência do ser enquanto ser, portanto como uma ciência cujo objeto é a realidade total e não alguma superficializada realidade particular das que vieram a ser o campo de ensaio das ciências particulares [2]. O divórcio operado entre a Philosophia Naturalis e as ciências da natureza, resultado de uma atitude para a qual a realidade se traduz não pelo estudo da natureza no seu conteúdo interno e sim pelas “ciências” das partes da natureza, criou uma separação abstrata tão funda entre o que há de metafísico na natureza e o que há de apreensível pelas várias “ciências”, que Kant   julgou impossível toda metafísica, a partir do pressuposto de que a cousa em si é inapreensível. Ora, Kant é o ponto mais alto desta evolução que separa o concreto do abstrato e isola o que se pensa do que se vive. Desconhecendo os gregos e os medievais e acreditando sinceramente que os homens tinham começado a pensar com Francis Bacon, Kant tinha uma linhagem espiritual que não remontava além da Renascença; por isso, no criticismo kantiano só é verdade o que é dotado de universalidade e não há outra verdade senão a abstrata, expressa pela ciência, reduzida a fórmulas matemáticas; Kant decreta a impossibilidade da metafísica não pelo fato de sermos destituídos de intuições profundas que nos ponham em comunhão com a intimidade dos seres e sim unicamente porque é impossível uma metafísica que tenha o método e a exatidão das ciências da natureza; longe de reconhecer a pobreza dos conhecimentos científicos, a qual deriva da absoluta impossibilidade que tem a ciência de atingir o singular, Kant lamenta ao contrário que as [142] nossas faculdades sensíveis tenham um caráter orgânico que as liga ao concreto; ligar-se ao concreto para Kant é afastar-se da verdade, que não é mais que uma verdade “científica” dotada de necessidade e de universalidade; sua filosofia da verdade chega a ser de tal ordem que se o mundo absolutamente não existisse, nada haveria que modificar, pois o concreto e não o abstrato, o singular e gratuito e não o universal e necessário, passam por ilusões destituídas de sentido; os atos mais penetrantes da ratio particularis se apresentam como imperfeitos em face dos atos científicos, nos quais o sujeito se opõe suficientemente ao objeto para se reconhecer em conformidade ou não com ele; o íntimo conhecimento do objeto singular é inteiramente destituído de significado porque não pode formular os princípios da ciência que são necessários e gerais. Não interessa sequer no criticismo o apoio que os conceitos possam encontrar nas séries de objetos reais, porque assim como em Descartes, a verdade deriva, não da clareza do objeto e sim da clareza da ideia do objeto, assim também em Kant a verdade não deriva da adequação dos conceitos com as cousas e sim unicamente de que os conceitos estejam ou não de acordo com as leis segundo as quais funcionam os juízos; destrói-se assim toda noção de realidade e com ela toda metafísica, pois o que importa não é a verdade metafísica e sim unicamente a verdade lógica. Não se trata de saber se as ciências da natureza explicam ou não uma realidade negada em si mesma e sim unicamente de justificar essas ciências, tomadas como verídicas não por corresponderem à realidade e sim apenas porque consagradas pelo universal consentimento; e diga-se de passagem que ainda está para ser feita uma análise da intrínseca modernidade política da filosofia de Kant, que se apoia sem discussão no universal consentimento, como fundador da verdade das ciências e dos imperativos categóricos e assim também na ideia de “lei” concebida à moda moderna e pela qual a lei é uma pré-fabricação racional à qual a realidade deve ajustar-se e não inversamente. Com as ideias de que a verdade corresponde à universalidade e à necessidade e portanto à uniformidade, o criticismo nega o original pela negação do particular, do singular, do vivo, do que contradiz a lei, do que não é matemático e científico. Nisto kantismo e tomismo estão em diametral oposição, porque ao passo que no intelectualismo tomista os universais [143] resultam da abstração operada pela inteligência sobre a realidade e portanto de um empobrecimento da mesma realidade, no kantismo o particular, ao contrário, é que resulta de um empobrecimento do universal; numa linha perfeitamente contemporânea, o que sobra da metafísica em Kant não é nada mais do que uma unificação das ciências do relativo, tomadas como verdades absolutas; quando para o tomismo a metafísica é a sabedoria do que as ciências não podem apreender, para o kantismo a metafísica é a unificação do que foi apreendido pelas ciências; e quando para o espírito da Idade Média tudo se via em termos metafísicos, ainda mesmo os fenômenos naturais, para o espírito kantiano ao contrário tudo se vê em termos matemáticos e físicos. Fechado no sujeito, sem ver a autenticidade do objeto, mas incapaz de penetrar a intimidade do sujeito na sua vontade e na sua emotividade, que o põem em contato, não com o mundo fabricado pela ciência e sim com o mundo vivido pela experiência, Kant reduz o sujeito a uma máquina que funciona de tal e tal maneira na elaboração dos conceitos e juízos, e a verdade só depende do correto funcionamento da máquina. Negada a autenticidade do objeto e a sua independência em face do sujeito e negadas todas as vias do conhecimento profundo e sendo a verdade o produto necessário e universal do correto funcionamento dos conceitos e juízos, torna-se a entidade humana um robot que fabrica os resultados da ciência, assim como as máquinas de calcular fabricam o resultado de uma raiz quadrada. Não somente Kant é o remoto ancestral dos autômatos atuais, como ainda é o fundador mais incontestável do pragmatismo para o qual a verdade moral   é produto da utilidade social. A vida tem um sentido para Kant, não porque Deus, a liberdade e a imortalidade existam; mas ao contrário, Deus, a liberdade e a imortalidade existem porque senão a vida não teria sentido: são postulados da razão prática, que não se podem provar cientificamente, mas nos quais se deve crer para dar uma garantia à vida moral e inclusive à filosofia de Kant.

A ideia de prova exerce um papel capital na filosofia de Kant, dominada pelo princípio de que só é verdade o que pode ser provado, quando ao contrário a verdade profunda é precisamente aquela que não se pode provar, como não se provam sequer os pontos de partida das ciências da natureza, [144] cujas demonstrações se fazem a partir de um princípio indemonstrável.

A negação do objeto do conhecimento se estende à moral de Kant, que se torna subjetiva pela negação da transcendentalidade da lei moral. Se a moralidade não resulta do acordo da razão com a lei divina objetiva; se Deus não é o fundamento e a norma primeira da moralidade, e se a razão e a natureza humana não são apenas o fundamento próximo e a norma segunda, mas se ao contrário, como quer Kant, toda moralidade se funda só na razão humana, como ressalta da Crítica da Razão Prática, então se torna inútil o imperativo categórico, ou a existência de uma lei moral que possa ser transgredida ou cumprida, porque o homem se torna impecável, sendo ele próprio a razão da moralidade. E o imperativo categórico será tudo quanto o homem julgar como tal, não mais havendo uma norma objetiva pela qual se possa aferir a moralidade ou não dos imperativos criados por uma razão que já não se considera o reflexo da lei objetiva e divina. Esta é a expressão clara do antropocentrismo da Idade Moderna, que, no lugar de Deus, põe o homem no centro do mundo como árbitro de toda verdade e de toda moralidade. A anulação da moral é, em Kant, o resultado direto da anulação da metafísica e consequentemente da objetividade do real, isto é, da afirmação do individual como fundamento do conhecimento universal. A moral e a metafísica se negam quando se nega a realidade concreta, quando se destrói o senso comum: tal é o primado do abstrato sobre o concreto, no duplo sentido de que a razão deve tirar de si mesma as verdades científicas, enquanto a vontade tira de si mesma os valores morais e culturais. [3]


[1Um dos manuais que divulgam essa noção, espalhada hoje por toda parte é o Manuel de Philosophie, do sr. Armand Cuvillier, que é afinal de contas, uma erudita compilação de informações, inteiramente destituídas de orientação e de espírito filosófico.

[2A este respeito a conferência do Professor Leonardo Van Acker sobre “A Objetividade da Filosofia” (anais do 1.° Congresso Brasileiro de Filosofia, vol. I).

[3A negação do existencial nos idealismos ou nas filosofias da essência foi posta em relevo por Étienne Gilson em seu livro L’Être et l’Essence.