2. É fora de dúvida que o senso comum, sob a forma da consciência sensível ou moral , unida à inteligência produz o sentimento da personalidade. A crise do senso comum, isto é, o isolamento entre as elaborações da inteligência e o mundo da realidade representa uma dissociação da personalidade: nem por menos a loucura é uma desintegração das faculdades internas de que resulta uma inadequação do indivíduo com a realidade; a loucura pode não destruir a razão, mas destrói sempre o senso comum que liga a razão à realidade. O senso comum é também o auto-sentimento, cuja raiz está na substancialidade do indivíduo e na sua identidade consigo mesmo; sem o auto-sentimento seria impossível a coesão interna e a experiência interior vivida; o auto-sentimento não só é concomitante e interior ao sentimento, como ainda é ele que faz com que o sentimento seja sentimento; o auto-sentimento resulta de uma fusão da sensibilidade com a inteligência [1]; é ele que dá um sentido [137] às experiências íntimas, traduzindo a inefável intuição que tem o indivíduo de ser ele mesmo (individuum, que não pode ser dividido), uma entidade distinta de todas as demais e que tem de si mesma uma intuição que a psicologia nunca poderá interpretar; o sentimento da personalidade não é capítulo da psicologia mas da mística e da metafísica; se fosse possível uma psicologia científica autêntica, o método introspectivo seria o único realmente válido; mas a introspecção não se deve confundir com o auto-sentimento, o qual não se pode verbalizar nem traduzir analiticamente; no fundo, a introspecção é uma observação externa, uma extrospecção na qual o indivíduo em vez de tomar os outros se toma a si mesmo por objeto. A introspecção é uma duplicata da extrospecção e na mesma medida em que pudesse captar um estado interior, seria inefável, identificar-se-ia com o auto-sentimento, seria uma intuição íntima e profunda, nenhuma palavra a poderia exteriorizar. É por isso que uma psicologia autêntica, como compenetração sympathica do outro não é uma ciência, no sentido vulgar que assumiu esta palavra, e sim uma sabedoria da vida; não comporta um sistema de classificação em que cada fenômeno recebe um nome e uma demarcação; do mesmo modo, o conjunto dos sentidos internos, anterior a toda excogitação e a todas as sistematizações científicas, dirige a vida mais sabiamente do que os tratados de pedagogia e de psicologia. Mas a sabedoria da vida desaparece na mesma proporção em que as faculdades intelectivas se dissociam da consciência sensível e uma série de explicações e sistemas inteiramente fundados no abstrato passam a querer governar a vida, cuja sabedoria não pode derivar senão da experiência concreta.
A crise do senso comum ou da ratio particularis começa com a separação entre o intelectivo e o sensitivo e o domínio absoluto do senso relacional, abstrato, com o desligamento de todos os valores particulares e concretos.
A crise do senso comum se inaugura com o racionalismo. A obliteração da realidade pelo exclusivo sentido das relações científicas entre os objetos, com a desligação do objeto mesmo, é um dos característicos mais nítidos do racionalismo, o qual [138] deve ser compreendido como uma negação frontal do intelectualismo. Ao passo que o intelectualismo tem a profunda intuição de que as relações entre as cousas decorrem da natureza das cousas, o racionalismo, em todas as suas formas idealistas e materialistas pretende considerar a realidade como um conjunto de relações, ignorando que as relações não existem senão em virtude da natureza das cousas: com isto o racionalismo representa o domínio absoluto do abstrato sobre o concreto, do senso de relação sobre o senso de objetividade e constitui, seja idealismo, seja materialismo, uma negação da realidade, a qual é feita de essências reais e de existências reais e não de relações abstratas. O caminho aberto por esse racionalismo que se desliga do objeto e passa a ver no mundo um conjunto de relações conduz à pretensão de explicar a realidade por meio de fórmulas científicas; a matemática universal, descoberta por Descartes pela aplicação da álgebra à geometria veio a constituir o método de todo conhecimento, avocando para as ciências quantitativas a explicação atual ou possível de todas as realidades, de todos os problemas e de todos os mistérios. A crença nas ideias claras e distintas representa um estreitamento do espírito para tudo quanto não é claro e distinto, isto é, para tudo quanto é obscuro e profundo, para tudo quanto a ciência da matemática universal não pode atingir. Convencido de que a Verdade não é mais do que um conjunto de verdades [2] entre as quais a existência de Deus, já não entra como o penhor de um destino do homem e sim como a garantia dos conhecimentos científicos [3] e elaborando uma confusão entre a ordem real e a ordem ideal [4] a evidência cartesiana elimina o valor da experiência vital, [139] subordinando o ser ao conhecer, que é o mesmo que subordinar o concreto ao abstrato. Inversamente, os realistas medievais subordinavam o conhecer ao ser, partindo da experiência sensível por meio da analogia até o conhecimento da existência concreta de Deus. Mas, se o ponto de partida para o realismo é a intuição sensível, para Descartes ao contrário é a intuição intelectual, desligada de toda intuição sensível; assim é que [5] uma ideia clara e distinta não tem sua clareza e distinção fundadas no objeto e sim em si mesma, porque a verdade do objeto depende da clareza da ideia e não da clareza do objeto. Se pois o senso comum é uma faculdade que nos liga à realidade existencial, Descartes inaugura uma filosofia onde a verdade das cousas está na ideia que temos das cousas e não nas cousas que as ideias representam, uma filosofia de onde o senso comum é banido [6]. O fato de haver no mundo mistérios tão obscuros que a respeito deles não se pode chegar a nenhuma conclusão racional definitiva, levou Descartes a duvidar, não da infalibilidade da razão, mas de tudo quanto a razão não pode atingir sem distinção e clareza. Porque, se o que não é claro e distinto não é verdadeiro, só é verdadeiro o que é matemático, o que se pode deduzir por meio de uma cadeia de razões, graças à qual todas as verdades são passíveis de uma descoberta, por mais ocultas que sejam [7]. Assim o racionalismo destrói toda a realidade, estabelecendo uma oposição entre verdade e realidade, pois a verdade é o mundo abstrato das relações e das proporções, nada tendo a ver com o inefável, com o concreto da experiência vital.