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Considerações sobre a crise do senso comum

Barbuy: senso comum (2) - personalidade

Revista Brasileira de Filosofia, vol. III, fasc. 4, 1953

quarta-feira 6 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 137-140.

2. É fora de dúvida que o senso comum, sob a forma da consciência sensível ou moral  , unida à inteligência produz o sentimento da personalidade. A crise do senso comum, isto é, o isolamento entre as elaborações da inteligência e o mundo da realidade representa uma dissociação da personalidade: nem por menos a loucura é uma desintegração das faculdades internas de que resulta uma inadequação do indivíduo com a realidade; a loucura pode não destruir a razão, mas destrói sempre o senso comum que liga a razão à realidade. O senso comum é também o auto-sentimento, cuja raiz está na substancialidade do indivíduo e na sua identidade consigo mesmo; sem o auto-sentimento seria impossível a coesão interna e a experiência interior vivida; o auto-sentimento não só é concomitante e interior ao sentimento, como ainda é ele que faz com que o sentimento seja sentimento; o auto-sentimento resulta de uma fusão da sensibilidade com a inteligência [1]; é ele que dá um sentido [137] às experiências íntimas, traduzindo a inefável intuição que tem o indivíduo de ser ele mesmo (individuum, que não pode ser dividido), uma entidade distinta de todas as demais e que tem de si mesma uma intuição que a psicologia nunca poderá interpretar; o sentimento da personalidade não é capítulo da psicologia mas da mística e da metafísica; se fosse possível uma psicologia científica autêntica, o método introspectivo seria o único realmente válido; mas a introspecção não se deve confundir com o auto-sentimento, o qual não se pode verbalizar nem traduzir analiticamente; no fundo, a introspecção é uma observação externa, uma extrospecção na qual o indivíduo em vez de tomar os outros se toma a si mesmo por objeto. A introspecção é uma duplicata da extrospecção e na mesma medida em que pudesse captar um estado interior, seria inefável, identificar-se-ia com o auto-sentimento, seria uma intuição íntima e profunda, nenhuma palavra a poderia exteriorizar. É por isso que uma psicologia autêntica, como compenetração sympathica do outro não é uma ciência, no sentido vulgar que assumiu esta palavra, e sim uma sabedoria da vida; não comporta um sistema de classificação em que cada fenômeno recebe um nome e uma demarcação; do mesmo modo, o conjunto dos sentidos internos, anterior a toda excogitação e a todas as sistematizações científicas, dirige a vida mais sabiamente do que os tratados de pedagogia e de psicologia. Mas a sabedoria da vida desaparece na mesma proporção em que as faculdades intelectivas se dissociam da consciência sensível e uma série de explicações e sistemas inteiramente fundados no abstrato passam a querer governar a vida, cuja sabedoria não pode derivar senão da experiência concreta.

A crise do senso comum ou da ratio particularis começa com a separação entre o intelectivo e o sensitivo e o domínio absoluto do senso relacional, abstrato, com o desligamento de todos os valores particulares e concretos.

A crise do senso comum se inaugura com o racionalismo. A obliteração da realidade pelo exclusivo sentido das relações científicas entre os objetos, com a desligação do objeto mesmo, é um dos característicos mais nítidos do racionalismo, o qual [138] deve ser compreendido como uma negação frontal do intelectualismo. Ao passo que o intelectualismo tem a profunda intuição de que as relações entre as cousas decorrem da natureza das cousas, o racionalismo, em todas as suas formas idealistas e materialistas pretende considerar a realidade como um conjunto de relações, ignorando que as relações não existem senão em virtude da natureza das cousas: com isto o racionalismo representa o domínio absoluto do abstrato sobre o concreto, do senso de relação sobre o senso de objetividade e constitui, seja idealismo, seja materialismo, uma negação da realidade, a qual é feita de essências reais e de existências reais e não de relações abstratas. O caminho aberto por esse racionalismo que se desliga do objeto e passa a ver no mundo um conjunto de relações conduz à pretensão de explicar a realidade por meio de fórmulas científicas; a matemática universal, descoberta por Descartes   pela aplicação da álgebra à geometria veio a constituir o método de todo conhecimento, avocando para as ciências quantitativas a explicação atual ou possível de todas as realidades, de todos os problemas e de todos os mistérios. A crença nas ideias claras e distintas representa um estreitamento do espírito para tudo quanto não é claro e distinto, isto é, para tudo quanto é obscuro e profundo, para tudo quanto a ciência da matemática universal não pode atingir. Convencido de que a Verdade não é mais do que um conjunto de verdades [2] entre as quais a existência de Deus, já não entra como o penhor de um destino do homem e sim como a garantia dos conhecimentos científicos [3] e elaborando uma confusão entre a ordem real e a ordem ideal   [4] a evidência cartesiana elimina o valor da experiência vital, [139] subordinando o ser ao conhecer, que é o mesmo que subordinar o concreto ao abstrato. Inversamente, os realistas medievais subordinavam o conhecer ao ser, partindo da experiência sensível por meio da analogia   até o conhecimento da existência concreta de Deus. Mas, se o ponto de partida para o realismo é a intuição sensível, para Descartes ao contrário é a intuição intelectual, desligada de toda intuição sensível; assim é que [5] uma ideia clara e distinta não tem sua clareza e distinção fundadas no objeto e sim em si mesma, porque a verdade do objeto depende da clareza da ideia e não da clareza do objeto. Se pois o senso comum é uma faculdade que nos liga à realidade existencial, Descartes inaugura uma filosofia onde a verdade das cousas está na ideia que temos das cousas e não nas cousas que as ideias representam, uma filosofia de onde o senso comum é banido [6]. O fato de haver no mundo mistérios tão obscuros que a respeito deles não se pode chegar a nenhuma conclusão racional definitiva, levou Descartes a duvidar, não da infalibilidade da razão, mas de tudo quanto a razão não pode atingir sem distinção e clareza. Porque, se o que não é claro e distinto não é verdadeiro, só é verdadeiro o que é matemático, o que se pode deduzir por meio de uma cadeia de razões, graças à qual todas as verdades são passíveis de uma descoberta, por mais ocultas que sejam [7]. Assim o racionalismo destrói toda a realidade, estabelecendo uma oposição entre verdade e realidade, pois a verdade é o mundo abstrato das relações e das proporções, nada tendo a ver com o inefável, com o concreto da experiência vital.


[1A esta fusão os escolásticos denominavam collatio, que indica a assimilação mas também a distinção de ambas as faculdades, distinção que não fizeram os cartesianos para os quais a aestimativa, por ex., se desfigura confundindo-se com a inteligência pura, enquanto que, para os positivistas, são os juízos intelectuais que se confundem com a aestimativa, desfiguradas ambas as faculdades que tomam como graus diferentes da mesma faculdade.

[2De onde a perfectibilidade horizontal indefinida com a descoberta gradual de verdades sempre novas ou o ideal do progresso indefinido que resulta do racionalismo.

[3Poder-se-ia observar que a ideia de Deus recebe desde Descartes um cunho burguês, totalmente diverso da ideia medieval de Deus; no racionalismo Deus se apresenta como uma garantia da realidade, um ingrediente de segurança graças ao qual as ideias claras e distintas fundamentam a tranquilidade das ciências burguesas, abolidos todos os mistérios e fontes de inquietação.

[4Como ilustra especificamente a repetição do argumento de Santo Anselmo, onde Deus, por existir na razão, é dado também como devendo existir na realidade (Disc., Garnier, pág. 70) como se a existência duma cousa estivesse implicada na ideia que temos dela, ou como se a ideia de uma cousa fosse a garantia da sua existência. Ao contrário, para os realistas, nós pensamos as cousas reais porque elas existem, longe de existirem elas como reais porque as pensamos como tais.

[5Como já observou Thonnard, Précis d’Hist. de la Phil. pág. 475.

[6Nada obstante Descartes acreditou justamente o contrário; entre outras a seguinte passagem é expressiva: “car il me semblait que je pourrais rencontrer plus de vérité dans les raisonnements que chacun fait touchant les affaires qui lui importent, et dont l’événement le doit punir bientôt s’il a mal jugé, que dans ceux que fait un homme de lettres dans son cabinet touchant des spéculations qui ne produisent aucun effet et qui ne lui sont d’autre conséquence sinon que peut-être il en tirera d’autant plus de vanité qu’elles seront plus éloignées du sens commun”. . . (Discours de la Méth., ed. Garnier, pág. 40).

[7Discours, idem, pág. 49, 50.