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O MITO DO PROGRESSO

Barbuy: Progresso (3) - razão e progressismo

“Revista Brasileira de Filosofia”, vol. I, fasc. 3, 1951

quinta-feira 7 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 103-107.

3. O mito do progresso coletivo e horizontal que subverteu a noção religiosa do aperfeiçoamento   definido e vertical, pode ter a sua origem lá onde se encontram as raízes da situação contemporânea, ou seja no racionalismo e no protestantismo, cuja tradução econômica é o capitalismo, com o último dos seus derivados que é o socialismo. Por outro lado, a revolução copernicana que desacreditou a física de Aristóteles  , [103] não sugeriu apenas a noção da superioridade científica do presente sobre o passado e sim também a ideia da superioridade global dos modernos sobre os antigos; tudo isto indica as origens latentes da teoria posteriormente expressa, de que existe um progresso constante da espécie humana na direção de um aperfeiçoamento ilimitado. O centro de gravidade do pensamento medieval que era conhecer e aprofundar a Verdade absoluta se deslocou desde a Renascença para o afã da descoberta sucessiva das verdades relativas. Não mais a Verdade e sim as verdades “científicas”, desligadas de todo centro superior de unidade vieram a ser o objeto do pensamento numa época em que precisamente o teocentrismo da Idade Média declinou para o antropocentrismo, que não tardou a degenerar no naturalismo—científico. Um dos traços da mentalidade moderna foi a inquietação das verdades, com o desprezo da Verdade, ou seja a inquietação dos progressos científicos, que se fazem por sucessivas substituições de verdades e não mais a preocupação da Verdade Absoluta: deve-se considerar que a preocupação da Verdade, como absoluta e imutável que é, significa o progresso vertical por aprofundamento e a preocupação das verdades o progresso horizontal, por substituição. Não por menos, a nossa época nem conhece, nem aprofunda a Verdade, confinando-se ao transitório e ao relativo, quando não pretende seguir o modelo hegeliano que dissolve o absoluto no relativo. A atitude de espírito que se iniciou com a desconfiança em face dos enunciados da filosofia tradicional se exprime de maneira cabal na “dúvida metódica”, tal como aparece em Descartes  . A “dúvida” cartesiana foi a raiz da certeza no progresso ilimitado, a qual se generalizou desde o fim do século XVII [1]. Perrault, um dos primeiros defensores ostensivos da ideia de progresso e criador dos contos de fadas, disse que os antigos representavam a infância do saber e os modernos a maturidade do espírito [2]. [104] Os inúmeros escritos oriundos da “Querelle des Anciens et des Modernes” atestam o triunfo da ideia de progresso, coevo da burguesia financeira, da politização da sociedade e do emprego da energia a vapor. Todas as lamentações filantrópicas e socializantes que vieram depois tiveram como centro a ideia do progresso indefinido. E é típico o exemplo de Malthus que, opondo-se às teorias da decadência demográfica da espécie, e com a mesma falta de fundamentos, formulou ao contrário a teoria do progresso exagerado da população mundial.

A razão cartesiana, erigida em juiz universal, em medida de todo valor e método de toda ciência, se converteu nessa psicose do progresso tão bem representada por Voltaire, pela Enciclopédia, pelo “Tableau” de Condorcet e pela demagogia revolucionária. Foi uma psicose que teve a sua manifestação popular e grosseira durante a Revolução quando, para atestar a vitória da razão sobre a religião, as igrejas foram transformadas em tabernas e salões de baile, as ordens religiosas extintas, os bens do clero posto em leilão enquanto numa cerimônia pública, perfeitamente racionalista e revolucionária, uma corista de teatro   foi sagrada e adorada como a imagem viva da deusa Razão. A monumental divisa “liberté, égalité, fraternité”, onde cada qual dos termos contradiz os restantes, exprime de modo muito claro as utopias do progressismo revolucionário. A ilusão do progresso indefinido pode explicar as grandes linhas da Revolução Francesa, toda fundada no pressuposto de que as operações racionais são capazes de pré-fabricar uma sociedade com a mesma naturalidade com que fabricam os resultados de um cálculo matemático; o mesmo se pode dizer do fanatismo revolucionário pela constituição política, fabricada e impressa no papel, por oposição às constituições vividas e impressas na tradição. Para a mentalidade do progresso indefinido, que tem a sua filosofia no a-priori de todas as formas da realidade, uma sociedade terá que ser o produto do que se decreta que ela seja; em nome do progresso nega-se o que a sociedade é e decreta-se o que ela deve ser; assim se suprimem as liberdades concretas, mas em compensação decretam-se as liberdades abstratas; assim as leis pré-fabricadas eliminam os [105] corpos e os grupos sociais, decretam a igualdade teórica e colocam o indivíduo sozinho diante do Estado, que não tarda a esmagá-lo irremediavelmente, em nome do progresso. Em nome do progresso, os “philosophes” travaram sua desesperada luta contra os valores vitais e a religião, não só porque a religião lhes pareceu o remanescente de uma fase de superstição já superada pela “ciência”, como também porque a Igreja Católica representava o ideal   de uma equidade social concreta, contra a revolução da igualdade abstrata. A substituição da equidade pela igualdade e do direito natural pelas leis pré-fabricadas, tal foi um dos resultados do monismo filosófico e do progressismo revolucionário. Claro é que, uma filosofia que rejeita a transcendência das leis morais, destrói o fundamento do direito natural; e o ser humano, em vez de ver os seus direitos decorrerem da sua natureza, começa a ver, depois da onda revolucionária, os seus direitos, inclusive a sua liberdade e a sua vida, dependerem unicamente da legiferância estatal. O monismo, favorecido pelas circunstâncias que o rodearam na idade contemporânea, trouxe implícito em si o Estado Total, pela simples destruição de todo limite moral   transcendente imposto ao poder dos governos. O Estado revolucionário não reconhece diante de si nenhum poder, senão o seu próprio; fundado numa filosofia que desconhece o limite imutável das leis transcendentes, considera-se ele próprio a fonte de todo direito. E diante do poder de coerção, da fertilidade legislativa e da onipresença dos Estados revolucionários, os mais duros absolutismos tradicionais parecem míseros brinquedos. Ainda, o absolutismo tradicional tinha a consciência de que podia violar leis mais fortes do que as leis escritas ou os caprichos humanos. Mas o Estado revolucionário perdeu a consciência de todo limite, adquirindo antes o sentimento da sua onipotência, desde que Hegel   o erigiu numa encarnação do Espírito Absoluto. A ditadura racionalista do abstrato sobre o concreto assoma com a mesma clareza na ideia revolucionária de que o poder não vem de Deus e sim da nação, como diz o artigo 3 da Declaração dos “Direitos” de 1791; abolidos os corpos sociais e as ordens e estabelecida a igualdade sobre o denominador comum do número e o anonimato da multidão, os eleitores já não se limitaram, como nos tempos anteriores, a designar os seus representantes senão que também começaram a transmitir-lhes o poder considerado como residindo inteiramente neles; com esta utopia, embora nunca se tenha sabido [106] de que modo o poder possa residir no povo que nunca o poderá exercer [3], o mandato imperativo tradicional foi substituído pelo mandato numérico revolucionário. A Revolução Francesa em suma foi de tal modo conduzida pela ideia de perfectibilidade indefinida, que poderia ser tida, juntamente com a sua grandeza melodramática, como simples incidente na história social dessa ideia. Igual caráter tiveram os movimentos sociais posteriores nascidos da miragem de uma possível perfeição social mecânica, planificada e pré-fabricada. Uma visão inteiramente mecânica do mundo como foi o das filosofias do progresso, não pod’a deixar d: supor a possibilidade de um corpo social que funcionasse com a perfeição de um mecanismo, onde cada indivíduo não fosse mais do que a parte de um todo, o parafuso, a porca de uma engrenagem; ou então, no que se chamou a concepção biológica e organicista da sociedade, cada indivíduo não podia passar de uma célula do todo, uma aderência, um agregado, não um todo em si mesmo. A sistemática liquidação da personalidade humana se apresenta com toda nitidez no positivismo e seus derivados materialistas, para os quais o homem não passa de um ponto de cruzamento de numerosas leis físicas, químicas, biológicas, sociológicas. O progresso da ciência consistia justamente em descobrir essas leis, clareando todos os problemas, outrora objetos da religião e da metafísica, que a “ciência” positiva já havia superado com a sua visão quantitativa e homogênea da realidade. O homem, esvaziado da sua interioridade, da sua moralidade, da sua liberdade, o homem puro objeto da sociologia, cuja vida interior não era mais do que um reflexo da sociedade exterior, tal foi o feto engendrado pelas Regras do Método Sociológico de Durkheim.


[1Isto porque, identificada a realidade com a racionalidade, a tal ponto que Descartes descobre que existe porque pensa, em vez de descobrir que pensa porque existe e, sendo a razão perfectível, do racionalismo cartesiano só podia decorrer a crença na perfectibilidade indefinida. E este racionalismo, que foi a negação do Intelectualismo, tal como se apresenta por exemplo em Santo Tomás, constitui igualmente a negação do ser real e substancial, com todas as noções que dele decorrem na ontologia tradicional. De onde, dizer Martin Heidegger que Descartes cogitou o cogito, mas não cogitou o sum. (Sein und Zeit, págs. 45 e 46).

[2A tese exposta por Charles Perrault de 1688 a 1697 nos Paralèles des Anciens et des Modernes foi resumida por Lanson e Tuffrau em sua Histoire de la Littérature Française: “La loi de l’esprit humain c’est le progrès; dans les sciences nous savons plus que les anciens; donc dans les lettres aussi nous devons leur être supérieurs. Les anciens étaient des enfants en tout; les modernes représentent la maturité de l’esprit humain…”

[3Nada mais interessante, a este respeito do que as considerações do Prof. De la Bigne de Villeneve, em seu Traité Général de L’État, vol. II, cap., II.