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KIERKEGAARD E O DESESPERO RELIGIOSO

Barbuy: Kierkegaard (1) - Desespero

“Revista Brasileira de Filosofia”, vol. VI, fasc. 1, 1956

sexta-feira 8 de outubro de 2021

Notas de uma palestra pronunciada na “Semana de Kierkegaard  ”, sob os auspícios do Instituto Brasileiro de Filosofia e da Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de S. Paulo, publicadas na “Revista Brasileira de Filosofia”, vol. VI, fasc. 1, 1956.


BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 181-188

A teoria do desespero em Kierkegaard   demonstra que o drama   do espírito humano não tem apenas raízes psicológicas, mas radica também no próprio ser do homem; o desespero é ôntico, é uma categoria do espírito, como o pecado, e não pode ser examinado só como sintoma de neuroses colhidas na infância individual. O desespero que resulta, segundo Kierkegaard, do querer ser si mesmo ou do não querer ser si mesmo, vem de uma discordância interna da síntese que o homem é: síntese de finito e de infinito, de liberdade e de necessidade, de virtualidade e de realidade. Essa discordância não é uma doença no sentido vulgar, que se apanhou algum dia, em virtude de algum trauma e que depois se manifestou num determinado momento da evolução individual: a discordância que constitui o desespero não é uma entidade psicológica. Cada instante real do desespero “pode ser reconduzido à sua possibilidade” e a cada instante em que se desespera, apanha-se novamente o desespero. Não, o desespero não é uma doença comum — uma neurose — como se diria hoje; é uma categoria da eternidade, é uma doença sui generis, a única doença mortal verdadeira.

O desespero de Kierkegaard deve ser compreendido sob a perspectiva em que ele mesmo o colocou e nunca no plano apenas psicológico. Seria fácil encontrar em sua biografia sintomas de neuroses; Sören sofreu desde o berço a influência maléfica de um pai rigoroso, pietista luterano, crente até o fanatismo e cuja personalidade se lhe apresentou primeiramente [181] como a de um homem perfeito; mas esse homem, que era crente, pecava; tendo fé, sofria; arrastava consigo a imagem de um desespero mudo, vendo morrer todos os seus antes dele. E ao cair de uma tarde, no alto de uma rocha sombria, banhada pelas neblinas nórdicas, a figura do pai, braços estendidos para o céu implacável, blasfemando contra Deus, imprimiu na alma de Søren, para todo o sempre, a revolta do homem contra Deus, o martírio do finito impotente contra o infinito; numa palavra, a síntese de sua teoria, que é o desespero de não querer ser si mesmo, depois duplicado no desespero de querer sobrepor-se a Deus. Nunca mais conseguiu Søren libertar-se do trauma desta cena; a imagem negra do pecado, o terror do pecado, diariamente instilado em sua alma pela crença desesperada do pai, acabou por lhe dar o sentimento de que a vida mesma é pecado. Este sentimento se agravou pela consciência que ele tinha de ser filho de uma ligação ilícita de seu pai com uma criada [1]; Søren se viu concebido no pecado e fruto do pecado. A noção cristã de que nós nascemos sob a mácula do pecado original, avultou ainda no seu espírito com o fato de ser ele, concretamente, o fruto desse determinado pecado de seu pai. Não era um cristão apenas concebido no pecado original, mas concebido ainda de um determinado pecado concreto de seu pai, que se adicionava ao pecado genérico de que nascemos [2]. Ele sempre se sentiu como dotado de uma existência fraudulenta; e referindo-se ao acidente de ter nascido num ano de bancarrota, comparou-se à moeda falsa, posta indevidamente em circulação.

A consciência do pecado, não só do pecado original, mas do pecado particular de que ele nasceu deu-lhe a viva imagem do desespero concreto, existencial; Kierkegaard é um dos máximos fundadores da filosofia da existência, porque a imagem do pecado concreto não poderia levá-lo à meditação do que o homem geral é, entidade abstrata como um “animal racional”, mas do que o indivíduo em particular é, com suas circunstâncias irrepetíveis, isto é, a personificação de um desespero como nunca mais houve, nem haverá outro igual, porque cada qual é um desespero incomunicável, original e único; [182] poderia dizer-se que o pecado original não é uma abstração que se tenha dado em algum tempo, mas um crime contra Deus, um crime concreto que se renova em cada um; a nossa condição é a condição do pecado, a condição do castigo, do sofrimento e da morte; todo desespero se projeta no infinito porque, segundo diz Kierkegaard, o desespero é o pecado, a doença mortal verdadeira, não uma doença de que se morre, mas uma doença ao contrário, que é mortal porque dela não se pode morrer [3]. É um suplício contraditório, este mal do ego  : eternamente morrer, mas morrer sem morrer, morrer a morte. Pois morrer quer dizer que tudo está acabado, mas morrer a morte significa viver sua própria morte; e vivê-la um só instante, significa vivê-la eternamente: Para que se pudesse morrer de desespero, como de uma doença, então, o que há de eterno em nós, no ego, deveria poder morrer, como o corpo, duma doença. Quimera! No desespero, o morrer se converte continuamente no viver. Quem desespera não pode morrer. (Tratado do Desespero, L. I, cap. III).

O suicídio, como também o demonstrou Schopenhauer  , é completamente inútil; poderíamos dizer que, naquele que se suicida, o que mata o corpo, só pode matar o corpo com a condição de sobreviver; aquilo que mata, é o que não morreu com a morte. E por isso diz Kierkegaard que, se os pagãos tinham o suicídio em tão pouca conta, que se suicidavam em massa, é porque não podiam compreender o ego, tal como o define o espírito. Não viviam, como os cristãos, em face de Deus; e o suicídio é um crime contra Deus, uma fuga, uma revolta, cujo sentido escapava aos pagãos (Id. L. III, Cap. II). (Mas acrescentamos que o suicídio como tal é um ato consciente e livre, praticado em face de Deus e contra ele; o suicídio inconsciente, ou o suicídio voluntário mas não livre, não é verdadeiro suicídio). [183]

A inutilidade do suicídio vem da imortalidade do homem; como disse Kierkegaard, o desesperado não morre e pode-se provar a imortalidade do homem pela impotência do desespero em destruir o ego, essa atroz contradição; se o desespero pudesse destruir o ego, não haveria desespero (Id. L. I, cap. III). Se o desespero pudesse destruir o ego pela morte, haveria a esperança da morte e não o desespero. Se há desespero é porque o desesperado não morre. O desesperado demonstra a imortalidade da alma, e a alma demonstra a imortalidade do condenado [4]. Segundo Kierkegaard, todos nós somos desesperados, exceto aqueles que integraram a síntese do seu ego na transparência divina. Nos livros I e II do Tratado do Desespero encontra-se a teoria de que todo verdadeiro desespero é um desespero de si mesmo; porque, desesperar de alguma cousa, não é ainda desespero verdadeiro; quando se desespera de alguma cousa, surge, logo no fundo, o verdadeiro desespero, que é o desespero de si mesmo. O desespero é uma vontade de se desfazer do próprio ego. Quando dizemos por exemplo “ser César ou nada”, é que queremos nos desfazer do nosso ego; detestamos esse ego que não se tornou César; e todavia, não desesperamos por não nos termos tornado César e sim porque não pudemos nos desfazer do nosso ego, transformando-o em César. Assim também o exemplo da meça que desespera porque perdeu o noivo; na realidade, não desespera da perda dó noivo, mas de si mesma; queria desfazer-se de seu ego tornando-o o bem de outrem; e desespera porque esse ego terá agora que viver sem o outro; seu desespero consiste em que não pode desfazer o ego que faz o seu desespero; não está desesperada por ter perdido alguém, mas por não ter podido perder-se a si mesma; desejo que aliás não era mais que uma ilusão. O desespero é pois sempre uma vontade inútil de se desfazer de si mesmo; o desespero assume a forma do não querer ser si mesmo, que pode desdobrar-se no querer ser si mesmo; quem desespera quer ao menos ser ele mesmo no desespero; mas este querer ser si mesmo é também um querer inútil de se desfazer de si mesmo; o querer ser si mesmo é um querer ser o que não se é; o querer ser si mesmo é querer ser absolutamente idêntico a si mesmo, é querer ser Ego Absoluto, cousa tão absurda como o querer desfazer-se de si. [184]

Kierkegaard dedica um capítulo à universalidade do desespero: É que a concepção corrente do desespero fica na sua superfície e não vê que uma das formas do desespero é o aparente não estar desesperado, isto é, não ter consciência de estar desesperado. Mas um acontecimento que nos lança ao desespero prova que toda a nossa vida passada já era desespero; o desespero não é um acontecimento, mas uma categoria do espírito suspensa na eternidade; distingue-se da doença da qual se sara ou se morre; revive a cada instante; todo homem que tem a consciência do seu destino espiritual é, por isso mesmo, invadido pelo desespero; nos demais, o desespero é inconsciente. A felicidade não é uma entidade positiva que se oponha ao desespero [5]; a felicidade não é uma categoria do espírito; é também habitada pela angústia, que é desespero; e mais, o desespero se esconde de preferência no fundo da felicidade; o falso descuido, a falsa alegria de viver derivam da inconsciência do destino espiritual. No desespero, impressiona o seu caráter secreto; oculta-se ao seu próprio portador; mas. . . quando cessam os ruídos do século, quando acaba a agitação estéril, quando por toda parte se faz um silêncio de eternidade, esta só nos perguntará uma cousa: se nossa vida foi ou não desespero. E se a vida foi desespero, o resto que importa? (L. II).


Se o pecado é desespero e se a vida se apresenta a Kierkegaard como desespero, a vida se lhe apresenta como pecado e temos a chave da sua análise da angústia e do desespero: ele se via como a imagem do pecado. “Há crimes que não se podem combater sem o auxílio incessante de Deus” —; disse-lhe um dia o pai — e ele, “correu ao seu quarto, a olhar-se num espelho” (Diário, 1837), como quem olha aterrado a imagem de um crime, e do próprio desespero. O pecado nele adquiriu um significado existencial e particular; mas, a maneira de combatê-lo era “o auxílio incessante de Deus”, isto é, do não-particular, do não-finito e sim do infinito e do inatingível. Tinha da vida uma noção pecaminosa concreta e punha a Redenção num infinito abstrato: pois, tal era a imagem que tinha [185] de Deus. Deus como infinito abstrato, como infinito possível, tem dupla raiz no protestantismo e no idealismo; Kierkegaard trazia a forte influência de Hegel   e de Fichte  . Ora, identificar Deus com o Infinito, com o Absoluto, tem uma consequência no subjetivismo e no idealismo protestante bem diversa da que poderia ter no realismo católico. Para um herdeiro da filosofia hegeliana, como foi Kierkegaard, identificar Deus com o Absoluto, com o Infinito, é o mesmo que identificá-lo com a Ausência. Em ambos os filósofos e em muitas passagens, o infinito e o nada se identificam. Kierkegaard, que sofria a vertigem do infinito, fez da antítese finito-infinito uma das bases da sua teoria do desespero [6].

Este ponto crítico pode mostrar ainda que o desespero de Kierkegaard não se originou somente de sua biografia individual, mas também da essência do protestantismo. Educado na reforma luterana, tornada ainda mais severa pelo pietismo de Spencer, Kierkegaard não seria possível fora dos quadros do protestantismo; sua religiosidade porém transbordou dos limites de sua Igreja, que em certa época combateu com fanatismo e, quem sabe, no fundo ele se agitava na saudade de velhas instituições cristãs, como o ascetismo, o monaquismo, o celibato clerical, a necessidade da confissão, instituições hoje conservadas só pela Igreja Católica. Não foi ele quem sublinhou, em certas formas do desespero, a necessidade da solidão que a Antiguidade e a Idade Média souberam compreender e respeitar, contra a nossa época em que a solidão é reservada aos criminosos? [186]

Não tendo nenhuma proporção e nenhuma afinidade emotiva com sua mãe, Kierkegaard praticamente não teve mãe. Tudo se passou em seu espírito como se ele fosse unicamente filho e imagem de seu pai. “O pior perigo, — escreveu ele — não é que o pai seja livre-pensador, nem hipócrita. Não, é que seja homem piedoso, cheio do temor de Deus, temor de que o filho esteja penetrado, mas notando ao mesmo tempo, no fundo de seu pai, uma inquietação oculta, como se nem o temor de Deus, nem a piedade fossem capazes de lhe dar a paz”. (Diário, 1850).

Crer, ser piedoso, mas não ter paz; voltar-se para Deus e não ser ouvido; ter fé e no entanto sofrer: este foi um problema crucial para Kierkegaard, assim como o é para cristãos de todas as confissões. Concebendo Deus como um infinito Ausente, o sofrimento não podia apresentar-se a Kierkegaard qual se apresentou a um São Francisco de Assis, que teve em seu próprio corpo as chagas e os sofrimentos da Paixão de Cristo, como o primeiro de muitos outros estigmatizados; é que o sofrimento de São Francisco tinha a presença consoladora de Deus. E de algum modo, ao Deus como infinito Ausente, que decorre do idealismo subjetivista, a Igreja Católica opõe um Deus presente, imediato, que se manifesta no seu realismo e na objetividade da sua lei moral  . Assim, milhares de santos, longe de fugir ao sofrimento, o procuraram como instrumento de purificação! Quando se tem a presença de Deus, todos os fardos se tornam leves e nenhum desespero é possível; o desespero nasce da noção de Deus como infinito Ausente, gerando um sofrimento sem testemunho, sem remissão e sem esperança.

Como pode um homem crer e não ter paz? — Um homem pode crer e não ter paz, se a paz que procura é a paz deste mundo; esta paz nunca a tiveram os santos; o que tiveram, no meio dos tormentos mais impressionantes, foi uma paz profunda, inamovível, impertubável, que não é a paz deste mundo. Porque diz a passagem do Evangelho: A paz vos deixo, a minha paz vos dou: eu não vô-la dou como a dá o mundo. Não se turbe o vosso coração, nem fique sobressaltado (João, XIV, 27). Só a paz sobrenatural pode explicar a alegria do sofrimento, a paz da graça, a paz da presença divina: Qu’importe le chemin qui mène à vous, ô mon Dieu, pourvu qu’on arrive? Celui de la souffrance, n’est-il pas souvent le plus court et le [187] plus sûr? Y-a-t-il un point du monde qui soit plus prés du Ciel que le Calvaire? [7]. A frase de Pascal  : Le Christ achêve sa Passion en nous, condensa toda a mística do sofrimento como caminho para Deus. Por isso, não só o crente pode crer e sofrer, como ainda, frequentemente, sofre porque crê.

Para Kierkegaard não é o sofrimento, mas o desespero, um caminho de salvação; o desespero é a doença mortal, a perdição e a morte de que não se pode morrer; salvar-se é superar, extirpar o desespero: é então que o ego, orientando-se para si mesmo, querendo ser si mesmo, mergulha através de sua própria transparência no Poder que o colocou (L.I, cap. I). Ademais, a resignação e a inocência são também formas de desespero. O desespero em suma é a consciência de um destino espiritual, sem o qual ninguém se salva. E o desesperado é aquele que pode, vencendo o desespero, integrar a síntese do seu ego em Deus.

Kierkegaard parece ter tido sempre presente o ensinamento evangélico que manda sobrepor a tudo a salvação da alma; salvar-se o que é? — Salvar-se poderá bem ser um realizar-se no plano da eternidade, passando pelos perigos da condição humana, que é a de uma síntese instável. O desespero é a desarmonia dos termos desta síntese (síntese dialética que certamente vem em linha reta de Hegel, mas que Kierkegaard colocou em dimensões diferentes, tirando conclusões novas).


[1Søren nasceu somente dois meses depois do casamento, em segundas núpcias de seu pai, com sua mãe.

[2Como diz a Escritura: Ecce enim in iniquitatibus conceptus sum, et in peccatis concepit me mater mea. (Ps. 50)

[3“Sua tortura é não poder morrer, como na agonia, o moribundo que se debate com a morte sem poder morrer. Assim, estar doente de morte é não poder morrer. Mas aqui a vida não deixa esperança e a desesperança é a falta da última esperança, a falta da morte. Espera-se da vida, enquanto ela é o supremo risco; mas quando se descobre o infinito do outro perigo espera-se na morte, e quando o perigo cresce, tanto que a morte se torna esperança, o desespero é a desesperança de não poder nem mesmo morrer”. (A Doença que conduz à Morte, cap. III; traduzido para o francês por Knud Ferlov e Jean J. Gateau, sob o título Traité du désespoir, ed. Gallimard).

[4Note-se que a teoria do desespero em Kierkegaard demonstra a eternidade do inferno.

[5Tal como em Kant e Schopenhauer, o prazer é negativo e a dor positiva.

[6René Le Senne, em seu Traité de Caractérólogie, classifica Kierkegaard no grupo dos sentimentais puros trágicos. Compara-o a Pascal, que pertence ao grupo dos passionais atormentados. Ambos são devorados pelo infinitismo. Mas enquanto Pascal acreditava no Deus de Isaac, de Abraão e de Jacob, Kierkegaard vivia com “o espinho na caríie banhado na melancolia e se possui a fé a ressente como ausência de Deus”. A sede do infinito, expressão da forte emotividade de ambos, joga em Kierkegaard contra ele e em Pascal por ele. Isto Le Senne atribui à diferença dos caracteres; cumpre somente acrescentar que é preciso levar em conta o fato de que Pascal era católico e Kierkegaard, protestante. O desespero de Kierkegaard não tem raízes só na sua biografia individual, mas também no seu protestantismo, com sua tradição idealista e subjetivista. Não se poderia conceber um Pascal protestante, nem um Kierkegaard católico. O infinito de Kierkegaard é uma infinita desolação, algo semelhante à cousa-em-si incognoscível e inatingível de Kant e ao Ser Absoluto = Nada de Hegel.

[7La Vie Cachée en Dieu, par Robert de Langeac, pág. 94.