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Araújo de Oiveira (1996:206-211) – a compreensão

quinta-feira 8 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

A compreensão, enquanto um dos existenciais do eis-aí-ser (Dasein  ) e a linguagem pertencem à mesma esfera: a esfera do [206] desvelamento dos entes que radica na essência da linguagem enquanto casa do ser [1]. Em outras palavras, a tecnologia da informação é uma, a que hoje é dominante, das maneiras de revelação da linguagem a nós, mas que, enquanto absolutizada, oculta-nos a verdadeira essência da linguagem.

Ora, como toda a tradição filosófica e científica tem uma postura objetivante em relação à linguagem, trata-se, para Heidegger, de ter a coragem de propor outro paradigma, que para ele é a hermenêutica do eis-aí-ser, como ser-no-mundo.

O ponto de partida é a fenomenologia de Husserl  , cuja tarefa fundamental era tematizar a subjetividade anônima constituidora do mundo objetivo, enquanto mundo de sentido. Heidegger confronta-se, então, com a tese central dessa fenomenologia: a tese da intencionalidade. Toda consciência é sempre consciência de algo, isto é, constituição de uma objetividade [2]. Aqui está, precisamente, a originalidade de Husserl em relação à tradição do pensamento transcendental  : para Husserl há uma pluralidade de formas de objetividade de tal modo que é tarefa da fenomenologia pesquisar os diferentes modos de dar-se do real ao homem. Ora, Heidegger, radicalizando a fenomenologia, supera-a na medida em que se pergunta pela própria condição de possibilidade de qualquer dar-se, ou seja, trata-se de explicitar a esfera de possibilitação do próprio encontro entre subjetividade e o mundo.

Então, se a fenomenologia tinha feito da filosofia uma teoria do sentido, trata-se, agora, de tematizar o sentido dos sentidos, pois, “sentido-fundamento” [207] de qualquer sentido. A filosofia faz-se, assim, uma ontologia hermenêutica [3], isto é, interpretação do sentido de ser, enquanto sentido, que subjaz a toda e qualquer atividade do homem no mundo [4]. A fenomenologia é a pesquisa daquilo que se mostra a partir de si mesmo. Ora, o que se revela, em última análise, o que se mostra como fonte última de todo mostrar-se é o ser.

Por essa razão, para Heidegger, a fenomenologia é a “recondução do olhar do ente para o ser” [5]. O espaço específico da filosofia é o espaço hermenêutico, o espaço da revelação dos entes, que se dá no espaço da revelação do ser.

A intenção básica de Heidegger manifesta-se aqui: para além de toda a pesquisa do ente, tematizar a questão do sentido do ser, como sentido fundante de todos os sentidos regionais. E a partir dessa perspectiva que Heidegger vai dizer que o objeto, o conteúdo, a coisa, o tema central da ontologia é a diferença ontológica, pois sua preocupação de base é a tematização do sentido do ser. A grande questão de início é: como tematizar o sentido do ser. Se o universo próprio da reflexão filosófica é o universo do sentido originário, como se faz o acesso a essa dimensão?

Para Heidegger, a tematização da questão do sentido do ser passa necessariamente por uma análise do homem, enquanto ente cujo ser consiste em compreender ser [6]: o ser se dá; nesse sentido, só há mundo [208] e só há verdade, porque o homem é Dasein, isto é, o eis-aí-ser, portanto a presença, a revelação, o desvelamento do ser. Em outras palavras, o universo sentido-fundamento deixa-se tematizar pela mediação de uma análise do homem enquanto ser-no-mundo: é a analítica existencial o caminho indispensável para a reposição da questão do sentido do ser [7]. O ser-no-mundo é, assim, o ponto de partida do estabelecimento do novo paradigma da filosofia, a ontologia hermenêutica.

A análise existencial é o caminho, mediação indispensável para a interpretação do sentido do ser, uma vez que a característica ôntica do eis-aí-ser consiste no fato de ser ontológico, isto é, de ser fundamentalmente compreensão do ser [8]. Porque o eis-aí-ser é, em si mesmo, hermenêutico, isto é, compreendedor de ser, a ontologia hermenêutica passa pela hermenêutica do eis-aí-ser, isto é, do homem enquanto revelador do ser. O ser do eis-aí-ser é fundamentalmente EXISTÊNCIA, isto é, compreensão prévia do sentido do ser, presença do ser. O conjunto das estruturas constitutivas do eis-aí-ser é, então, a existencialidade. A analítica dessas estruturas vai explicitar as dimensões constitutivas do ser-no-mundo, superando, assim, tanto a ontologia da coisa como a filosofia da subjetividade. A análise existencial radica no caráter ontológico do eis-aí-ser antes de qualquer teorização; o homem possui uma compreensão de si, dos utensílios com que lida e dos entes de seu mundo [9].

Então, essa compreensão constitui o homem enquanto homem, ela é o existencial fundamental, pois o eis-aí-ser sempre se movimenta numa compreensão de seu próprio ser e dos outros seres [10]. E isso que constitui o aí do eis-aí-ser, pois essa compreensão de seu ser fundamenta-se no sentido do ser, o que faz precisamente com que a explicitação do sentido-do-ser do eis-aí-ser seja o caminho necessário para a explicitação do sentido do ser enquanto tal. A ontologia hermenêutica radica na hermeneuticidade do eis-aí-ser. O eis-aí-ser é lançado no ser: isso constitui sua facticidade originária. O homem nunca é, simplesmente, mas só é enquanto ser-no-mundo, isto é, ele já desde sempre se encontra situado num “mundo determinado como hermenêutico”, isto é, numa maneira determinada de ordenar a totalidade dos entes. Esse “como” é a dimensão antepredicativa, anterior, portanto, ao discurso, ao que fazer prático do homem no mundo enquanto sua condição de possibilitação [11].

Na facticidade, o homem enquanto existência é antes de tudo ser do projeto, ser da possibilidade. Compreendendo seu próprio ser, o homem compreende suas possibilidades. No eis-aí-ser, o que está, em última análise, em jogo é seu próprio ser. Por isso, o ser-no-mundo é, fundamentalmente, cuidado, cujo sentido originário é a temporalidade [12]. O homem, enquanto eis-aí-ser, não se reduz a alguém que observa [210] do exterior seu próprio ser, mas, antes, ele se relaciona a si como tarefa de ser. O ser do eis-aí-ser é, assim, sempre um “ser-adiante-de-si-mesmo”.


Ver online : Manfredo Araújo de Oliveira


Araújo de Oliveira, Manfredo. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996


[1M. Heidegger, Über den Humanismus, publicado juntamente com: Platons Lehre von der Wahrheit, 2a ed. Berna 1954, p. 60.

[2M. Müller, “Phänomenologie, Ontologie und Scholastik”, in: Heidegger, op. cit., pp. 78-94. O. Pöggeler, “Hermeneutische und mantische Phänomenologie”, in: Heidegger, op. cit., pp. 321-357. E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 124: “Já sempre estamos fora de nós, o filósofo dirá: ek-staticamente. A maneira de o estar-aí ser é estar fora. Mas esse ‘fora’ é lidar com os utensílios, operar com os entes disponíveis, já sempre compreender-se assim. Assim, o ser-no-mundo enquanto revelação já é também ‘intenção’, isto é, está-junto-dos entes. E por isso que o filósofo dissolve a noção husserliana de intencionalidade no novo existencial cuidado. A intencionalidade, portanto, perde seu caráter ‘imanente’ vinculado à consciência e no cuidado se recupera a dimensão prática que já sempre caracteriza o estar-aí”.

[3M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit. § 7 c. O próprio Heidegger explica mais tarde o sentido de “hermenêutica” nesse texto: Aus einem Gespräch von der Sprache, op. cit., pp. 95ss.

[4Trata-se de ontologia num sentido diferente da tradição, porque aqui é tematizado o que a tradição sempre esquece: o sentido do ser. Só que o filósofo hermeneuta se orienta na compreensão. Sempre se compreende a partir de uma “situação hermenêutica”. O que se compreende é o que é dado na tradição, o que tem o caráter de acontecimento, de dádiva. Em outras palavras: no lugar da teoria absoluta que diz para sempre o que é o ser, emerge, agora, uma “teoria provisória” que explicita o sentido do ser desde a “situação”. Nunca se pode dizer definitivamente o que o ser é. Cf. O. Pöggeler, Hermeneutische und mantische Phänomenologie, op. cit, p. 56.

[5M. Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Werke, vol. 24, Frankfurt am Main, 1975, p. 29.

[6Já aqui se manifesta clara a reviravolta do pensamento transcendental. O sentido do ser precede a subjetividade: E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 22: “Antes da evidência de qualquer teoria e ponto de partida da ‘teoria do conhecimento’ e antes de qualquer subjetividade fundante, há uma evidência operando na situação de ser-no-mundo. Essa evidência está encoberta pelo óbvio do cotidiano, da separação consciência-mundo, pelo modelo da relação sujeito-objeto. E por isso que a analítica existencial recoloca a questão da ‘teoria do conhecimento’ ao fazer a crítica radical do modelo das teorias da consciência, a começar por Descartes”.

[7Mas apenas um caminho para a verdadeira questão da filosofia, a tematização do sentido do ser: M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., p. 436. No entanto, não se pode esquecer que, para Heidegger, o permanente no pensamento é precisamente o caminho: Aus einem Gespräch von der Sprach, op. cit., p. 99. E. Stein, A questão do método na filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. São Paulo, 1973.

[8M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., p. 12 e §§ 18, 63, 65.

[9Para K. Prange, aqui se manifesta uma convergência fundamental entre a filosofia hermenêutica, orientada pela pergunta pelo sentido do ser, e a filosofia analítica, na medida em que ambas não estabelecem suas respectivas perspectivas de pensamento abstratamente, por definição, mas retrocedem a uma pré-compreensão não ainda articulada teoricamente, na qual nós, de certo modo, já sempre nos movemos. A pergunta pelo sentido recorre, portanto, a uma pré-compreensão pré-teorética que já se aninhou na linguagem, mas que precisa de uma nova forma de conhecimento para ser tematizada: K. Prange, op. cit., p. 39.

[10Nesse horizonte, a compreensão não é um fenômeno secundário, derivado, como vinha sendo tratado na “Escola Histórica”, mas se toma aqui um “existencial”, isto é, uma dimensão constitutiva do homem. Trata-se de uma dimensão originária que antecede a distinção metodológica entre “explicar” e “compreender”, que caracteriza o debate sobre a natureza das ciências do espírito de Dilthey. No entanto, para Heidegger, a compreensão não é uma categoria no sentido de um conceito a priori, cujo sentido está estabelecido para sempre, mas compreensão é um “modo-de-ser” do estar-aí, portanto do ser finito e histórico. Compreender e compreensão estão, então, ligados ao universo da história. Cf. E. Stein, Racionalidade e existência. Uma introdução à filosofia, Porto Alegre, 1988, pp. 34ss.

[11E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 34.

[12Em Ser e Tempo, o tempo é o sentido do ser e o horizonte transcendental que torna possível a compreensão do ser. Então, o tempo é pensado a partir da compreensão do ser como sua condição de possibilidade. Ora, essa perspectiva não supera de todo a ótica da filosofia transcendental. Cf. K. Tsujimura, “Zu ‘Gedachtes’ von Martin Heidegger”, in: Phil. Jahrbuch 88 (1981), pp. 316-332, aqui p. 321.