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Stiegler (TT:I.1.7) – O fígado de Prometeu
segunda-feira 18 de novembro de 2024
Esse é o significado de Prometeu acorrentado, cujo fígado é devorado pela águia de Zeus. Por meio dessa vingança olímpica, uma melancolia primordial, portadora de todos os fantasmas, todas as hipocondrias, todas as misantropias atrabiliárias, precederá como sua possibilidade a comunidade hermenêutica.
Com o fogo que entregou em suas mãos, Prometeu determinou o tipo de alimento que é próprio dos homens mortais. […] Como o fígado imortal do Titã, a fome dos homens perecíveis volta a crescer dia após dia, inalterada, exigindo a constante renovação dos alimentos que os mantêm na forma precária e encurtada de vida que agora é a deles [1].
Como a fome, o frio, o trabalho e as preocupações primordiais retornam todos os dias, para nunca serem mais do que adiados, como o futuro é tão inelutável quanto implacavelmente indeterminado, o fígado devorado pelo dia e repelido pela noite é o relógio de Prometeu [2] — que se tornou a festa do sacrifício — tanto quanto sua provação. É a incessância da différance na qual o tempo é constituído por esse único golpe de tecnicidade que é a mortalidade. “Por que o fígado? É o espelho orgânico onde a hermenêutica divinatória é praticada, onde as mensagens divinas são interpretadas em sacrifício. E é Hermes que, em Ésquilo, conta a Prometeu sobre seu tormento. O órgão de todos os humores, dos sentimentos em todas as situações, porque é a sede do “sentimento da situação”, o fígado também é, como um espelho da mortalidade incessante — que nunca acontece — do corpo e do coração, a miragem do espírito (Gemüt). Como um relógio, sua vesícula biliar contém as pedras que secretam a bile negra, melas kholie.
[STIEGLER , Bernard. La technique et le temps [TT]. Tomes 1-3. Paris: Fayard, 2018 (ebook)]
Ver online : Bernard Stiegler
[1] J.-P. Vernant, La Cuisine du sacrifice, op. cit., p. 90.
[2] “A imortalidade do fígado prometeico corresponde ao modo de existência dos fenômenos naturais que, sem jamais desaparecerem, só podem subsistir sob a forma de renovação periódica”. Ibid.