Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Pascal (P:60/294) – justiça

sexta-feira 22 de maio de 2020

Mario Laranjeira

(Em verdade ele se livraria da vaidade das leis, portanto é útil enganá-lo.)

Sobre que fundamentará ele a economia do mundo que quer governar? Será sobre o capricho de cada indivíduo? Que confusão! Será sobre a justiça? ele a ignora. Certamente se ele a conhecesse não teria estabelecido essa máxima, a mais geral de todas as que existem entre os homens, que cada um siga os costumes do seu país. O esplendor da verdadeira equidade teria subjugado todos os povos. E os legisladores não teriam tomado como modelo, em vez dessa justiça constante, as fantasias e os caprichos dos persas e dos alemães. Vê-la-íamos implantada em todos os estados do mundo e em todos os tempos, em lugar de não se ver nada de justo ou de injusto que não mude de qualidade ao mudar de clima, três graus de aproximação do pólo invertem toda a jurisprudência; um meridiano decide da verdade. Em poucos anos de vigência, as leis fundamentais mudam, o direito tem as suas épocas, a entrada de Saturno em Leão indica-nos a origem de tal crime. Justiça engraçada essa que um rio limita. Verdade aquém dos Pireneus, erro além.

Confessam que a justiça não está nesses costumes, mas que reside nas leis naturais comuns a todos os países. Por certo sustentariam pertinazmente isso, se a temeridade do acaso que semeou as leis humanas tivesse [22] encontrado pelo menos uma delas que fosse universal. Mas a irrisão é tamanha que o capricho dos homens se diversificou a ponto de não haver nenhuma.

O furto, o incesto, o assassínio das crianças e dos pais, tudo teve seu lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo mais engraçado do que o fato de um homem ter o direito de me matar porque mora do outro lado da água e porque o seu príncipe tem alguma desavença com o meu, embora eu não tenha nenhuma desavença com ele próprio?

Existem sem dúvida leis naturais, mas essa bela razão corrompida tudo corrompeu. Nihil   amplius nostrum est, quod nostrum dicimus artis est [1]. Ex senatusconsultis et plebiscitis crimina exercentur [2]. Ut olim vitiis sic nunc legibus laboramus [3].

Dessa confusão advém que um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador; outro, a comodidade do soberano; outro, o costume presente, e é o mais seguro. Nada, segundo a razão apenas, é justo por si, tudo balança com o tempo. O costume (é) toda a eqüidade, pela simples e só razão de que é recebido. É esse o fundamento místico de sua autoridade. Quem a reduzir ao seu princípio a aniquilará. Nada é mais eivado de erros do que essas leis que consertam os erros. Quem obedece a elas porque elas são justas, obedece à justiça que imagina, mas não à essência da lei. Ela é toda concentrada em si mesma. É lei e nada mais. Quem quiser examinar-lhe o motivo, vai achá-lo tão fraco e tão leviano que, se não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação [23] humana, ficará admirado de que um século lhe tenha atribuído tanta pompa e reverência. A arte de intrigar, subverter os estados está em abalar os costumes estabelecidos, sondando até a sua fonte para apontar-lhes a falta de autoridade e de justiça. É necessário, dizem, recorrer às leis fundamentais e primitivas do estado, que foram abolidas por um costume injusto. É um jogo certo para perder tudo; nada será justo para essa balança. Entretanto, o povo facilmente presta ouvidos a esses discursos, sacodem o jugo logo que o reconhecem, e os grandes tiram proveito disso para a ruína dele e daqueles curiosos examinadores dos costumes recebidos. Eis por que o mais sábio dos legisladores dizia que, para o bem dos homens, é muitas vezes preciso enganá-los; e outro bom político: Cum veritatem qua liberetur ignoret, expedit quod fallatur [4]. Não é preciso que ele sinta a verdade da usurpação, ela foi introduzida outrora sem razão, ela se tornou razoável. E preciso fazer com que a olhem como autêntica, eterna, e ocultar a sua origem, se não se quer que logo venha a terminar.

Original

… Sur quoi la fondera-t-il, l’économie du monde qu’il veut gouverner ? Sera-ce sur le caprice de chaque particulier ? quelle confusion ! Sera-ce sur la justice ? il l’ignore. Certainement, s’il la connaissait, il n’aurait pas établi cette maxime, la plus générale de toutes celles qui sont parmi les hommes, que chacun suive les mœurs de son pays [5] ; l’éclat de la véritable équité aurait assujetti tous les peuples, et les législateurs n’auraient pas pris pour modèle, au lieu de cette justice constante, les fantaisies et les caprices des Perses et Allemands. On la verrait plantée par tous les États du monde et dans tous les temps, au lieu qu’on ne voit rien de juste ou d’injuste qui ne change de qualité en changeant de climat. Trois degrés d’élévation du pôle renversent toute la jurisprudence ; un méridien décide de la vérité ; en peu d’années de possession, les lois fondamentales changent ; le droit a ses époques, l’entrée de Saturne au Lion nous marque l’origine d’un tel crime. Plaisante justice qu’une rivière borne ! Vérité au-deçà des Pyrénées, erreur au-delà.

Ils confessent que la justice n’est pas dans ces coutumes, qu’elle réside dans les lois naturelles, connues en tout pays. Certainement ils le soutiendraient opiniâtrement, si la témérité du hasard qui a semé les lois humaines en avait rencontré au moins une qui fût universelle ; mais la plaisanterie est telle, que le caprice des hommes s’est si bien diversifié, qu’il n’y en a point.

Le larcin, l’inceste, le meurtre des enfants et des pères, tout a eu sa place entre les actions vertueuses. Se peut-il rien de plus plaisant, qu’un homme ait droit de me tuer parce qu’il demeure au-delà de l’eau, et que son prince a querelle contre le mien, quoique je n’en aie aucune avec lui ?

Il y a sans doute des lois naturelles ; mais cette belle raison corrompue a tout corrompu : Nihil amplius nostrum est ; quod nostrum dicimus, artis est [6]. Ex senatus consultis et plebiscitis crimina exercentur [7]. Ut olim vitiis, sic nunc legibus laboramus [8].

De cette confusion arrive que l’un dit que l’essence de la justice est l’autorité du législateur, l’autre la commodité du souverain, l’autre la coutume présente ; et c’est le plus sûr : rien, suivant la seule raison, n’est juste de soi, tout branle avec le temps. La coutume fait toute l’équité, par cette seule raison qu’elle est reçue ; c’est le fondement mystique de son autorité. Qui la ramène à son principe, l’anéantit. Rien n’est si fautif que ces lois qui redressent les fautes ; qui leur obéit parce qu’elles sont justes, obéit à la justice qu’il imagine, mais non pas à l’essence de la loi ; elle est toute ramassée en soi ; elle est loi, et rien davantage [9]. Qui voudra en examiner le motif le trouvera si faible et si léger, que, s’il n’est accoutumé à contempler les prodiges de l’imagination   humaine, il admirera qu’un siècle lui ait tant acquis de pompe et de révérence. L’art de fronder, bouleverser les États, est d’ébranler les coutumes établies, en sondant jusque dans leur source, pour marquer leur défaut d’autorité et de justice [10]. « Il faut, dit-on, recourir aux lois fondamentales et primitives de l’État, qu’une coutume injuste a abolies. » C’est un jeu sûr pour tout perdre ; rien ne sera juste à cette balance. Cependant le peuple prête aisément l’oreille à ces discours. Ils secouent le joug dès qu’ils le reconnaissent ; et les grands en profitent à sa ruine, et à celle de ces curieux examinateurs des coutumes reçues. Mais, par un défaut contraire, les hommes croient quelquefois pouvoir faire avec justice tout ce qui n’est pas sans exemple. C’est pourquoi le plus sage des législateurs disait que, pour le bien des hommes, il faut souvent les piper [11]; et un autre, bien politique : Cum veritatem qua liberetur ignoret, expedit quod fallatur [12]. Il ne faut pas qu’il sente la vérité de l’usurpation ; elle a été introduite autrefois sans raison, elle est devenue raisonnable ; il faut la faire regarder comme authentique, éternelle, et en cacher le commencement, si l’on ne veut qu’elle ne prenne bientôt fin.

[Excerto de PASCAL  , Blaise. Pensamentos. Tr. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 21-23]


Ver online : PASCAL - PENSAMENTOS


[1Cícero, De finibus, V, 21: “Os inícios da virtude são obra da natureza e só; nossa parte (aquilo a que chamo nossa é o que é pura convenção) está em tirar as conseqüências dos principios que recebemos.”

[2Sêneca, Ep. 95: “É em razão dos senatusconsultos e dos plebiscitos que se cometem crimes." (Montaigne, Ensaios, III, 1.)

[3Tácito, Anais, III, 25: “ Outrora sofríamos com nossos vícios, hoje sofremos com nossas leis." (Montaigne, Ensaios, III, 13.)

[4Santo Agostinho, Cidade de Deus, IV, 27: “Bela religião, em que me refugiei como um doente que busca sua libertação, e quando indaga sobre essa verdade que deve libertá-lo, estima-se que é bom para ele que seja enganado.” (Montaigne, Ensaios, II, 12.)

[5Pascal suit ici les thèses de Montaigne, essentiellement celles de l’ Apologie de Raymond Sebond ( Essais , II, 12).

[6« Il n’y a plus rien qui soit nôtre ; ce que nous appelons nôtre relève de la convention », Cicéron, De Finibus , V, 21.

[7« C’est en vertu des sénatus-consultes et des plébiscites que l’on commet des crimes », Sénèque, Lettres , 95 (cité par Montaigne, Essais , III, 1).

[8« Comme autrefois nous étions écrasés par les vices, maintenant nous le sommes par les lois », Tacite, Annales , III, 25 (cité par Montaigne, Essais , III, 13).

[9Repris de Montaigne, Essais , III, 13.

[10Le cardinal de Retz évoque en ces termes le rôle décisif que joua le Parlement de Paris dans le déclenchement de la Fronde en 1648 : « [Le Parlement] gronda sur l’édit du tarif ; et aussitôt qu’il eut seulement murmuré, tout le monde s’éveilla. L’on chercha en s’éveillant, comme à tâtons, les lois : l’on ne les trouva plus ; l’on s’effara, l’on cria, l’on se les demanda ; et dans cette agitation les questions que leurs explications firent naître, d’obscures qu’elles étaient et vénérables par leur obscurité, devinrent problématiques, et dès là, à l’égard de la moitié du monde, odieuses. Le peuple entra dans le sanctuaire : il leva le voile qui doit toujours couvrir tout ce que l’on peut dire, tout ce que l’on peut croire du droit des peuples et de celui des rois qui ne s’accordent jamais si bien ensemble que dans le silence. La salle du Palais profana ces mystères » (cardinal de Retz, Mémoires , éd. M. Pernot, Gallimard, « Folio classique », 2003, p. 129).

[11Voir Montaigne, Essais , II, 12 ; « le plus sage des législateurs » désigne ici Platon ( La République , V, 459c).

[12« Comme il ignore la vérité qui peut le libérer, il est bon qu’on le trompe » (saint Augustin, La Cité de Dieu , IV, 31) ; citation inexacte d’une citation elle-même inexacte de Montaigne ( Essais , II, 12), qui mentionne Varron et le grand-prêtre romain Scevola, tous deux admirateurs des impostures théologico-politiques dénoncées par saint Augustin.