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Lévinas (1990/2004:119-124) – O sono e o lugar

sexta-feira 16 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Paul Albert Simon

Em que consiste o sono, com efeito? Dormir é suspender a atividade psíquica e física. Mas ao ser abstrato, pairando no ar, falta uma condição essencial dessa suspensão: o lugar. O apelo ao sono se [85] faz no ato de deitar-se. Deitar-se é exatamente limitar a existência ao lugar, à posição.

O lugar não é “alguma parte” indiferente, mas uma base, uma condição. É certo que compreendemos comumente nossa localização como a de um corpo situado em qualquer lugar. Seguramente, a relação positiva com o lugar que entretemos no sono é mascarada por nossas relações com as coisas. Desse modo, apenas as determinações concretas do meio, do cenário, os apelos do hábito e da história emprestam um caráter individual ao lugar tornado apropria casa, a cidade natal, a pátria, o mundo. Destacada da ambiência, a localização torna-se geralmente a presença numa extensão abstrata, como a de uma estrela no infinito do espaço. O sono restabelece a relação com o lugar como base. Deitamo-nos, encolhendo-nos num canto para dormir, abandonamo-nos a um lugar; ele se torna nosso refúgio como base. Toda nossa obra de ser consiste, então, apenas em repousar. Dormir é como entrar em contato com as virtudes protetoras do lugar; buscar o sono significa buscar esse contato por uma espécie de tateamento. Aquele que desperta encontra-se encerrado em sua imobilidade como um ovo em sua casca. Esse abandono à base, que oferece ao mesmo tempo um refúgio, constitui o sono, pelo qual o ser, sem se destruir, permanece suspenso.

É a partir do repouso, a partir da posição, a partir dessa relação única com o lugar, que vem a consciência. A posição não se acrescenta à consciência como um ato que ela decide, é a partir da posição, de uma imobilidade, que ela vem a si mesma. Ela é um engajamento no ser que consiste em manter-se precisamente no não-engajamento do sono. Ela “tem” uma base, ela “tem” um lugar. O único ter que não seja embaraçoso, mas que é a condição: a consciência é, aqui. Que a consciência esteja aqui não é por sua vez um fato de consciência, nem de pensamento, nem um sentimento, nem uma volição, mas a posição da consciência. Não se trata do contato com a terra: apoiar-se na terra é mais do que a sensação do contato, mais do que um conhecimento da base. O que é aqui objeto de conhecimento não está diante do sujeito, mas o suporta e o [86] suporta a tal ponto, que é pelo fato de apoiar-se na base que o sujeito põe-se como sujeito.

A antítese da posição não é a liberdade de um sujeito suspenso no ar, mas a destruição do sujeito, a desintegração da hipóstase. Ela se anuncia na emoção. A emoção é o que perturba. A psicologia fisiologista, que, partindo da emoção-choque, apresentava as emoções em geral como uma ruptura de equilíbrio, parece-nos, sobre este ponto — apesar de uma linguagem elementar —, apreender a verdadeira natureza da afetividade mais fielmente do que as análises fenomenológicas que lhe conservam, apesar de tudo, um caráter de compreensão e, por conseguinte, de apreensão (Heidegger), falam de uma experiência emocional e de um objeto revestido de novas propriedades (Husserl  , Scheler  ). A emoção coloca em questão não a existência, mas a subjetividade do sujeito; ela o impede de se recolher, de reagir, de ser alguém. O que há de positivo no sujeito abisma-se no nenhures. A emoção é uma maneira de manter-se, perdendo a base. Ela é, em seu fundo, a própria vertigem que nela se insinua, o fato de encontrar-se acima de um vazio. O mundo das formas abre-se como um abismo sem fundo. O cosmos explode para deixar aberto o caos, isto é, o abismo, a ausência de lugar, o há.

O aqui da consciência — o lugar de seu sono e de sua evasão em si — difere radicalmente do Da implicado no Dasein heideggeriano. Este já implica o mundo. O aqui de que estamos partindo, o aqui da posição, precede toda compreensão, todo horizonte e todo tempo. Ele é o próprio fato de que a consciência é origem, de que ela parte de si mesma, de que ela é existente. Em sua própria vida de consciência, ela vem sempre de sua posição, isto é, da “relação” prévia com a base, com o lugar que, no sono, ela esposa exclusivamente. Pondo-se numa base, o sujeito embaraçado pelo ser recolhe-se, levanta-se e torna-se dono de tudo o que o embaraça; seu aqui lhe dá um ponto de partida. O sujeito assume. Os conteúdos da consciência são estados. Sua imobilidade de sujeito, sua fixidez, vem não da referência invariável a algumas coordenadas do espaço ideal, mas de sua estância, do evento de sua posição que só se refere a si [87] mesmo, que é a origem da fixidez em geral — o começo da própria noção de começo.

O lugar, antes de ser um espaço geométrico, antes de ser a ambiência concreta do mundo heideggeriano, é uma base. Assim, o corpo é próprio advento da consciência. De modo algum ele é coisa. Não somente porque uma alma o habita, mas porque seu ser é da ordem do evento e não do substantivo. Ele não se põe; ele é a posição. Ele não se situa num espaço previamente dado; ele é a irrupção, no ser anônimo, do próprio fato da localização. Desse evento não se presta conta quando, além da experiência externa do corpo, insiste-se sobre sua experiência interna, sobre a cinestesia.

A cinestesia é feita de sensações, isto é, de informações elementares. O corpo é nossa possessão, mas o vínculo de possessão resolve-se finalmente num conjunto de experiências e de saberes. A materialidade do corpo permanece uma experiência da materialidade. Dir-se-á que a cinestesia é mais do que um conhecimento, que, na sensibilidade interna, há uma intimidade indo até a identificação; dir-se-á que sou minha dor, minha respiração, meus órgãos, que não tenho somente um corpo, mas que sou um corpo? Mas, ainda aí, o corpo é um ser, um substantivo, a rigor, um meio de localização, e não a maneira como o homem se engaja na existência, a maneira como ele se põe. Apreendê-lo como evento é dizer que ele não é o instrumento ou o símbolo ou o sintoma da posição, mas a própria posição, que nele se realiza a própria mutação de evento em ser.

É bem verdade que o corpo sempre passava por ser mais do que um acúmulo de matéria. Ele abrigava uma alma que ele tinha o poder de expressar. O corpo podia ser mais ou menos expressivo e tinha partes que o eram, mais ou menos. O rosto e os olhos, espelhos da alma, eram por excelência os órgãos da expressão. Mas a espiritualidade do corpo não reside nesse poder de expressar o interior. Em virtude de sua posição, ele cumpre a condição de toda interioridade. Ele não expressa um evento; ele é, ele mesmo, este evento. É uma das mais fortes impressões que se retém da escultura de Rodin. Seus seres não se acham nunca sobre um soco convencional [88] ou abstrato. O evento que suas estátuas realizam reside muito mais na sua relação com a base, em sua posição, do que na sua relação com uma alma — saber ou pensamento — que eles teriam a expressar.

Original

En quoi consiste, en effet, le sommeil ? Dormir, c’est suspendre l’activité psychique et physique. Mais à l’être abstrait, planant dans l’air, manque une condition essentielle de cette suspension : le lieu. L’appel du sommeil se fait dans l’acte de se coucher. Se coucher, c’est précisément borner l’existence au lieu, à la position.

Le lieu n’est pas un « quelque part » indifférent, mais une base, une condition. Certes, nous comprenons communément notre localisation comme celle d’un corps situé n’importe où. C’est que la relation positive avec le lieu que nous entretenons dans le sommeil est masquée par nos relations avec les choses. Seules alors les déterminations concrètes du milieu, du décor, les attachements de l’habitude et de l’histoire prêtent un caractère individuel au lieu devenu le chez-soi, la ville natale, la patrie, le monde. Détachée de l’ambiance, la localisation devient généralement la présence dans une étendue abstraite, comme d’une étoile dans l’infini de l’espace. Le sommeil rétablit la relation avec le lieu comme base. En nous couchant, en nous blottissant dans un coin pour dormir, nous nous abandonnons à un lieu — il devient notre refuge en tant que base. Toute notre œuvre d’être ne consiste [119] alors qu’à reposer. Dormir, c’est comme entrer en contact avec les protectrices vertus du lieu, chercher le sommeil, c’est chercher ce contact par une espèce de tâtonnement. Celui qui se réveille se retrouve enfermé dans son immobilité comme un œuf dans sa coquille. Cet abandon à la base qui offre en même temps un refuge constitue le sommeil par lequel l’être, sans se détruire, demeure suspendu.

C’est à partir du repos, à partir de la position, à partir de cette relation unique avec le lieu, que vient la conscience. La position ne s’ajoute pas à la conscience comme un acte qu’elle décide, c’est à partir de la position, d’une immobilité, qu’elle vient à elle-même. Elle est un engagement dans l’être qui consiste à se tenir précisément dans le non-engagement du sommeil. Elle « a » une base, elle « a » un lieu. Le seul avoir qui ne soit pas encombrant, mais qui est la condition : la conscience, est ici. Que la conscience soit ici n’est pas à son tour un fait de conscience, ni une pensée, ni un sentiment, ni une volition, mais la position de la conscience. Il ne s’agit pas du contact avec la terre : s’appuyer sur la terre est plus que la sensation du contact, plus qu’une connaissance de la base. Ce qui est ici « objet » de connaissance ne fait pas vis-à-vis au sujet, mais le supporte et le supporte au point que c’est par le fait de s’appuyer sur la base que le sujet se pose comme sujet. [120]

L’antithèse de la position n’est pas la liberté d’un sujet suspendu en l’air, mais la destruction du sujet, la désintégration de l’hypostase. Elle s’annonce dans l’émotion. L’émotion est ce qui bouleverse. La psychologie physiologiste qui, partant de l’émotion-choc, présentait les émotions en général comme une rupture d’équilibre, nous semble sur ce point — malgré un langage élémentaire — saisir la vraie nature de l’affectivité, plus fidèlement que les analyses phénoménologiques qui lui conservent, malgré tout, un caractère de compréhension et, par conséquent, d’appréhension (Heidegger), parlent d’une expérience émotionnelle et d’un objet revêtu de nouvelles propriétés (Husserl  , Scheler  ). L’émotion met non point l’existence, mais la subjectivité du sujet en question ; elle l’empêche de se ramasser, de réagir, d’être quelqu’un. Ce qu’il y a de positif dans le sujet s’abîme dans le nulle-part. L’émotion est une manière de se tenir en perdant la base. Elle est, dans son fond, le vertige même qui s’insinue en elle, le fait de se trouver au-dessus d’un vide. Le monde des formes s’ouvre comme un abîme sans fond. Le cosmos éclate pour laisser béer le chaos, c’est-à-dire l’abîme, l’absence de lieu, l’il y a.

L’ici de la conscience — le lieu de son sommeil et de son évasion en soi — diffère radicalement du Da impliqué dans le Dasein heideggerien. Celui-ci implique déjà le monde. L’ici dont nous partons. [121] L’ici de la position, précède toute compréhension, tout horizon et tout temps. Il est le fait même que la conscience est origine, qu’elle part d’elle-même, qu’elle est existant. Dans sa vie même de conscience, elle vient toujours de sa position, c’est-à-dire de la « relation » préalable avec la base, avec le lieu que dans le sommeil, elle épouse exclusivement. En se posant sur une base, le sujet encombré par l’être se ramasse, se dresse et devient le maître de tout ce qui l’encombre ; son ici lui donne un point de départ. Le sujet prend sur lui. Les contenus de la conscience sont des états. Son immobilité, sa fixité de sujet tient non pas à la référence invariable à quelques coordonnées de l’espace idéal, mais à sa stance, à l’événement de sa position qui ne se réfère qu’à lui-même, qui est l’origine de la fixité en général — le commencement de la notion même du commencement.

Le lieu, avant d’être un espace géométrique, avant d’être l’ambiance concrète du monde heideggerien, est une base. Par là, le corps est l’avènement même de la conscience. En aucune façon, il n’est chose. Non seulement parce qu’une âme l’habite, mais parce que son être est de l’ordre de l’événement et non pas du substantif. Il ne se pose pas, il est la position. Il ne se situe pas dans un espace donné au préalable — il est l’irruption dans l’être anonyme du fait même de la localisation. De cet événement on ne rend pas compte quand, au [122] delà de l’expérience externe du corps, on insiste sur son expérience interne sur la cénesthésie.

La cénesthésie est faite de sensations, c’est-à-dire de renseignements élémentaires. Le corps est notre possession, mais le lien de possession se résout finalement en un ensemble d’expériences et de savoirs. La matérialité du corps demeure une expérience de la matérialité. Dira-t-on que la cénesthésie est plus qu’une connaissance, que, dans la sensibilité interne, il y a une intimité allant jusqu’à l’identification ; que je suis ma douleur, ma respiration, mes organes, que je n’ai pas seulement un corps, mais que je suis un corps ? Mais, là encore, le corps est un être, un substantif, à la rigueur un moyen de localisation, et non pas la manière dont l’homme s’engage dans l’existence, dont il se pose. Le saisir comme événement, c’est dire qu’il n’est pas l’instrument ou le symbole, ou le symptôme de la position, mais la position même, qu’en lui s’accomplit la mue même d’événement en être.

Certes, le corps passait toujours pour être plus qu’un amas de matière. Il logeait une âme qu’il avait le pouvoir d’exprimer. Le corps pouvait être plus ou moins expressif et il avait des parties qui l’étaient plus ou moins. Le visage et les yeux, miroirs de lame, étaient les organes par excellence de l’expression. Mais la spiritualité du corps ne réside pas dans ce pouvoir d’exprimer l’intérieur. [123] De par sa position il accomplit la condition de toute intériorité. Il n’exprime pas un événement, il est lui-même cet événement. C’est une des plus fortes impressions qu’on retient de la sculpture de Rodin. Ses êtres ne se trouvent jamais sur un socle conventionnel ou abstrait. L’événement qu’accomplissent ses statues réside beaucoup plus dans leur relation avec la base, dans leur position, que dans leur relation avec une âme — savoir ou pensée, qu’ils auraient à exprimer.


Ver online : Emmanuel Lévinas


[LÉVINAS, Emmanuel. De l’existence à l’existant. 2e éd. augm ed. Paris: J. Vrin, 1990]

[LÉVINAS, Emmanuel. Da Existência ao Existente. Tr. Paul Albert Simon. Campinas: Papirus, 1998]