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Fogel (2015:188-191) – o homem é "a realidade da liberdade como a possibilidade para possibilidade"

quarta-feira 6 de março de 2024, por Cardoso de Castro

4. Tentemos formular isso melhor. Para dizer este modo de ser ímpar do homem, que é coisa nenhuma ou algo algum, e que, assim, justamente assim, se dá como lugar e hora de todo e qualquer real possível – para dizer isso, podemos recorrer a uma formulação de Kierkegaard  , na qual está concentrada a forma ou a estrutura deste estrato básico ou fundamental-ontológico da vida, da existência humana ou, pura e simplesmente, do homem. Kierkegaard   diz: “[é] a realidade da liberdade como a possibilidade para possibilidade” [1]. [188]

“A realidade da liberdade” – “realidade”, por um lado, está dizendo: faz-se, dá-se, há. Quer dizer, desde nada, a partir de nada, portanto, súbita ou “de repentemente” (i-mediatamente), o dar-se, o acontecer ou o abrir-se, melhor ainda, o fazer-se ou cumprir-se de liberdade. Liberdade?! Liberdade fala justamente desta irrupção desde nada, desta pura doação ou espontaneidade. Liberdade é isso. “Realidade”, porém, por outro lado, não está falando de um estático estado de fato, mas de uma atuação, isto é, de uma exposição, ou seja, uma realização (wirken, Wirklichkeit, na tradução alemã) desta liberdade, desta espontaneidade súbita, irrompida. Mas o que é, como liberdade, como realmente se faz, se dá ou se concretiza esta irrupção gratuita, esta doação abissal? A passagem responde: “como a possibilidade para possibilidade”. Assim, liberdade não é uma faculdade, uma propriedade de um homem dado e constituído (aqui, nada tem a ver com escolha, ato voluntário, livre arbítrio), alguma coisa que se tem alojada em algum lugar do homem, no corpo ou na alma, no fígado, debaixo da unha, na matéria ou no espírito ou na consciência, mas tão só uma possibilidade, quer dizer, um poder-ser ou uma aptidão. Uma tal aptidão, à medida que é um poder-ser, é sempre uma disposição, antes, uma pré-disposição para a ação, para a atividade, quer dizer, aptidão para ação ou para a atividade de expor-se, auto-expor-se, i.é, a possibilidade de, desde si mesma, vir a ser, aparecer ou concretizar-se. Mas, segundo a citação, esta possibilidade ou aptidão (a liberdade) se faz ou se dá como possibilidade para (de) possibilidade, ou seja, como aptidão ou disposição para aptidão ou disposição.

E como entender isso?

Possibilidade se dá, se realiza sempre como uma possibilidade, isto é, um poder-ser no/do viver ou existir, no horizonte do qual, a partir do qual o viver ou o existir (um homem!) se realiza, se concretiza, isto é, se faz como o fazer-se (ação), que é tempo e história – melhor, tempo como história. Assim sendo, pode-se denominar possibilidade, enquanto aptidão para ação ou vir a ser, um verbo. Um verbo na/da vida ou existência. Todo ou cada modo possível de ser de vida constitui-se como um verbo, p.ex., pintar, escrever, arar, guerrear, jogar, etc. [189] A vida, o existir, sempre se dá já no horizonte, na dimensão de um verbo (uma possibilidade), como um verbo (possibilidade).

Mas este ou cada verbo (que é possibilidade de vida ou um poder-ser que pode tocar ou tomar o homem, que é o modo de ser, o “ente”, tocável, tomável ou afetável por possibilidades, por verbos possíveis) – cada verbo, pois, em si mesmo é igualmente uma possibilidade de um poder-ser, que precisa, que pode/precisa se fazer, vir a ser ou concretizar-se, à medida que, na e como ação ou atividade, se expõe, quer dizer, se diferencia, se altera, se ultra-passa ou se auto-supera. Assim, pescar é uma possibilidade, pela qual um homem (que é possibilidade para possibilidade, isto é, possibilidade de ser tocado ou tomado por e para possibilidade) pode ser tocado ou tomado, mas para que o pescar realmente se faça, se efetive, e para que João venha a ser João-pescador (na verdade, João-pescar!), é preciso fazer com que se faça ou se realize esta possibilidade, este poder-ser, a saber, o pescar – pescar é preciso! Pescando, na ação de pescar, o próprio pescar se diferencia, se altera, se auto-supera e, assim, a possibilidade (o pescar) se revela ser possibilidade de e para possibilidade, à medida que este pescar se transforma, se altera, se diferencia, se ultra-passa ou se auto-supera. A verdade é que cada modo possível de ser, cada verbo, em assim se constituindo, molda ou cunha um aparecer (um homem, uma vida) como este homem, aquele ou aqueloutro homem. Tal verbo, tal poder-ser, enquanto o cumprir-se tempo-história, é o escultor de uma vida, de uma existência, e, então, de vida ou de existência de modo geral, pura e simplesmente.

O que é o homem? Coisa nenhuma. Algo nenhum. Ente algum. Imediatamente, melhor, originariamente, nem eu, nem consciência, nem alma, nem espírito, nem pessoa, nem… matéria, energia, complexo físico-químico-orgânico. Tudo isso é tardio, epigonal. Homem, vida humana, originariamente, é um estranho, um estranhíssimo modo de ser (só isso: modo de ser ou possibilidade!), que é nada, coisa nenhuma, mas tão só a realidade (i.é, a realização, a ação de realizar-se ou fazer-se, a atividade) de liberdade, ou seja, de um puro, gratuito e abissal (sem nenhum por que ou para quê) [190] dar-se ou acontecer, como possibilidade de e para possibilidade. E, por enquanto, façamos somente a seguinte observação, o seguinte alerta: nisso, nesse modo de ser não há nenhum subjetivismo, nenhum antropomorfismo, pois sempre já abertura ou (pré) disposição a, para transcendência, para o que transcende ou ultrapassa, isto é, um verbo ou uma possibilidade do/no viver, existir, que sobrevêm ao homem, dele (quer dizer, do modo de ser tocável, afetável, apoderável ou apropriável) se apodera ou se apropria. O homem, a vida, assim, constitui-se na única dimensão possível de real dar-se, vir a ser, se concretizar ou fazer-se. Isso é hora e lugar de real.

Mas como o homem, a vida humana é propriamente o lugar e a hora do real? Antes, porém, o que é, como é real?


Ver online : Gilvan Fogel


FOGEL, Gilvan. Homem, Realidade, Interpretação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015


[1Cf. KIERKEGAARD, S. Conceito de angústia, cap. I, § 5