Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Deleuze (2005:112) – Sartre

sábado 26 de outubro de 2024

Falamos de Sartre   como se ele pertencesse a uma época acabada. Mas ai! Nós é que estamos já acabados na ordem moral e no conformismo atual. Pelo menos Sartre   nos permite uma vaga espera dos momentos futuros, de retomadas nas quais o pensamento se reformará e refará suas totalidades, como potência ao mesmo tempo coletiva e privada. E por isso que Sartre   continua sendo nosso mestre. O último livro de Sartre  , A crítica da razão dialética, é um dos livros mais belos e mais importantes surgidos nestes últimos anos. Ele dá a O ser e o nada seu complemento necessário, no sentido em que as exigências coletivas completam a subjetividade da pessoa. E quando pensamos novamente em O ser e o nada é para reencontrar o espanto que tínhamos em face dessa renovação da filosofia. Agora já sabemos melhor que as relações de Sartre   com Heidegger, sua dependência de Heidegger, eram falsos problemas que se apoiavam em mal-entendidos. O que nos tocava em O ser e o nada era unicamente sartreano e dava a envergadura da contribuição de Sartre   : a teoria da má-fé, em que a consciência, no seu interior, brincava com a sua dupla potência de não ser o que é e de ser o que não é; a teoria do Outrem, em que o olhar de outrem bastava para fazer o mundo vacilar e « roubá-lo » de mim; a teoria da liberdade, em que esta se limitava a si mesma ao se constituir em situações ; a psicanálise existencial, na qual se podia reencontrar as escolhas de base de um indivíduo no centro de sua vida concreta. E cada vez, a essência e o exemplo entravam em relações complexas que davam um estilo novo à filosofia. O garçom do café, a moça apaixonada, o homem feio e, principalmente, meu amigo-Pierre-que-nunca-estava-presente, formavam verdadeiros romances na obra filosófica e percutiam as essências ao ritmo de seus exemplos existenciais. Por toda parte brilhava uma sintaxe violenta, feita de rachaduras e de estiramentos, lembrando as duas obsessões sartreanas : os lagos de não-ser, as viscosidades da matéria. [113]

[A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). Editora Iluminuras, São Paulo, 2005]


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