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Arendt (CH:§11) – escravidão
terça-feira 8 de fevereiro de 2022
Roberto Raposo
[…] o trabalho do nosso corpo, exigido pelas necessidades deste último, é servil. Consequentemente, as ocupações que não consistiam em trabalhar, mas fossem empreendidas não por si próprias, e sim com a finalidade de atender às necessidades da vida, foram assimiladas ao status do trabalho, e isso explica as mudanças e as variações na valoração e classificação delas em diferentes épocas e em diferentes lugares. A opinião de que o trabalho e a obra eram desdenhados na Antiguidade pelo fato de que somente escravos os exerciam é um preconceito dos historiadores modernos. Os antigos raciocinavam de modo contrário: achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que fornecessem o necessário para a manutenção da vida. [1] Era precisamente com base nisso que a instituição da escravidão era defendida e justificada. Trabalhar significava ser escravizado pela necessidade, e essa escravização era inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem dominados pelas necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade dominando outros que eles, à força, sujeitavam à necessidade. A degradação do escravo era um golpe do destino e um destino pior que a morte, pois implicava a metamorfose do homem em algo semelhante a um animal doméstico. [2] Em vista disso, qualquer alteração na condição do escravo, como a alforria ou uma mudança na circunstância política geral que elevasse certas ocupações a um nível de relevância pública, acarretava automaticamente uma mudança na “natureza” do escravo. [3]
A instituição da escravidão na Antiguidade, embora não em épocas posteriores, não foi um artifício para obter mão de obra barata nem um instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de excluir o trabalho das condições da vida do homem. Tudo o que os homens tinham em comum com as outras formas de vida animal não era considerado humano. (Essa era também, por sinal, a razão da teoria grega, tão mal interpretada, da natureza inumana do escravo. Aristóteles , que sustentou tão explicitamente essa teoria e depois, no leito de morte, alforriou seus escravos, talvez não fosse tão inconsistente como tendem a pensar os modernos. Ele negava não a capacidade dos escravos para serem humanos, mas somente o emprego da palavra “homens” para designar membros da espécie humana enquanto estivessem totalmente sujeitos à necessidade.) [4] E a verdade é que o emprego da palavra “animal” no conceito de animal laborans, ao contrário do uso muito discutível da mesma palavra na expressão animal rationale, é inteiramente justificado. O animal laborans é, realmente, apenas uma das espécies animais que povoam a Terra – na melhor das hipóteses, a mais desenvolvida. [ArendtCH:C11]
Original
[…] the labor of our body which is necessitated by its needs is slavish. Hence, occupations which did not consist in laboring, yet were undertaken not for their own sake but in order to provide the necessities of life, were assimilated to the status of labor, and this explains changes and variations in their estimation and classification at different periods and in different places. The opinion that labor and work were despised in antiquity because only slaves were engaged in them is a prejudice of modern historians. The ancients reasoned the other way around and felt it necessary to possess slaves because of the slavish nature of all occupations that served the needs for the maintenance of life. It was precisely on these grounds that the institution of slavery was defended and justified. To labor meant to be enslaved by necessity, and this enslavement was inherent in the conditions of human life. Because men were dominated by the necessities of life, they could win their freedom only through the domination of those whom they subjected to necessity by force. The slave’s degradation was a blow of fate and a fate worse than death, because it carried with it a metamorphosis of man into something akin to a tame animal. A change in a slave’s status, therefore, such as manumission by his master or a change in general political circumstance that elevated certain occupations to public relevance, automatically entailed a change in the slave’s “nature.”
The institution of slavery in antiquity, though not in later times, was not a device for cheap labor or an instrument of exploitation for profit but rather the attempt to exclude labor from the conditions of man’s life. What men share with all other forms of animal life was not considered to be human. (This, incidentally, was also the reason for the much misunderstood Greek theory of the nonhuman nature of the slave. Aristotle , who argued this theory so explicitly, and then, on his deathbed, freed his slaves, may not have been so inconsistent as moderns are inclined to think. He denied not the slave’s capacity to be human, but only the use of the word “men” for members of the species man-kind as long as they are totally subject to necessity.) And it is true that the use of the word “animal” in the concept of animal laborans, as distinguished from the very questionable use of the same word in the term animal rationale, is fully justified. The animal laborans is indeed only one, at best the highest, of the animal species which populate the earth.
Ver online : Philo-Sophia
[1] Aristóteles inicia sua famosa discussão da escravidão (Política, 1253b25) com a afirmação de que, “sem o necessário, nem a vida nem a boa vida é possível”. Ser um senhor de escravos é a forma humana de assenhorear-se da necessidade e, portanto, não é para physin, contra a natureza; a própria vida o exige. Portanto, os camponeses, que suprem as coisas necessárias à vida, são classificados, tanto por Platão como por Aristóteles, na mesma categoria que os escravos (cf. Robert Schlaifer, “Greek theories of slavery from Homer to Aristotle”, Harvard Studies in Classical Philology, v. XLVII [1936]).
[2] É nesse sentido que Eurípedes chama todos os escravos de “maus”: eles veem tudo do ponto de vista do estômago (Suplementum Euripideum, Ed. Arnim, frag. 49, n. 2).
[3] Assim, Aristóteles recomendava que os escravos incumbidos de “ocupações livres” (ta eleuthera ton ergon) fossem tratados com mais dignidade, e não como escravos. Por outro lado, quando, nos primeiros séculos do Império Romano, certas funções públicas, que sempre haviam sido executadas por escravos públicos, passaram a ser consideradas mais dignas e mais importantes, esses servi publici – que, na verdade, cumpriam tarefas de funcionários públicos – receberam permissão de usar toga e desposar mulheres livres.
[4] As duas qualidades que, segundo Aristóteles, o escravo não possui – e é por causa desses defeitos que ele não é humano – são a faculdade de deliberar e decidir (to bouleutikon) e a de prever e escolher (proairesis). Isto é, naturalmente, apenas um modo mais explícito de dizer que o escravo é sujeito à necessidade.