Página inicial > Glossário > Volk

Volk

domingo 28 de outubro de 2018

Volk  , povo


VIDE: Volk

Volk corresponde aproximadamente, mas não exatamente, a " um/o povo". Tendo significado originalmente a "massa do povo", especialmente o exército, com o surgimento do nacionalismo na Renascença, passou a significar todo o povo que divide uma linguagem, cultura e história comuns, unificado com frequência em um estado. Os românticos lhe deram um tom mais cultural, formando palavras como Volkslied, "canção folclórica/popular", e Volkstum, "folclore, o caráter especial de um povo expresso em sua vida e cultura". A princípio, também significava as "massas", em contraste com a elite. O velho adjetivo völkisch significava originalmente o mesmo que o tardio vokstümlisch, "pertencente a, em harmonia com, o povo; popular". Mais tarde, passou a ter o sentido de "nacional", sendo usado pelos nazistas neste sentido, com o acréscimo da conotação "popular" e "racial". Com as suas sugestões de "folclore" racial, "nação" e "povo comum", Volk servia à combinação nazista de nacionalismo autoritário com um igualitarismo democrático não inteiramente ilusório. Tal utilização demonstra a "insensibilidade à ambiguidade" que Heidegger considera um sintoma do "abandono pelo ser" ; Volk significa: "o comum, o racial, o suporte e o inferior, o nacional, o permanente" (GA65  , 117).

Volk ocorre raramente no período de SZ   (cf. SZ, 384, onde ele é a comunidade histórica). Torna-se mais frequente com o crescente interesse   de Heidegger pelas origens da " história ocidental", por Hölderlin   e pelos gregos (cf. GA39  , 120ss sobre a " ‘pátria’ como o ser histórico de um povo"). Os gregos eram um povo, apesar de se dividirem em várias cidades-estado autônomas. Acaso não foi a filosofia do "primeiro começo" a "filosofia ‘do’ [’des’] povo grego? E o grande fim da filosofia ocidental, o ‘idealismo alemão’ e ‘Nietzsche  ’, não é ele a filosofia ‘do’ povo alemão?" (GA65, 42). A filosofia não é, como as roupas e a culinária, algo feito por um povo já inteiramente formado; ela vem "para" um povo tanto quanto vem "de" um povo: "A filosofia de um povo é o que o torna o povo de uma filosofia, funda o povo historicamente em seu Da-sein   e designa-o para velar pela verdade do ser". Um povo se faz povo por raros indivíduos: pensadores e poetas. A filosofia de um povo, tal como o alemão, não pode ser estabelecida e prescrita com relação aos seus talentos e capacidades; a filosofia precisa fazer-se por si mesma ou "realizar [erspringen] o seu próprio salto primordial [Ursprung  ]", que só pode prosseguir se a filosofia "ainda pertencer ao seu primeiro começo essencial" (GA65, 43). Sob este aspecto, os alemães diferem dos gregos, que não tiveram começo anterior algum para levar em consideração. Eles também diferem em outros aspectos. O que já foi propriedade dos gregos tornou-se agora a herança europeia: "O pensamento de Descartes  , a metafísica de Leibniz  , a filosofia de Hume   — são europeus e, por conseguinte, planetários. A metafísica de Nietzsche tampouco é uma filosofia especificamente alemã. É europeia e planetária" (GA6T2  , 333). Estereótipos raciais não têm lugar no pensamento de Heidegger: "É pura falta de sentido dizer que a pesquisa experimental é caracteristicamente germânica enquanto a investigação racional é estrangeira! Neste caso, precisamos considerar Newton   e Leibniz como ‘judeus’" (GA65, 163). A política também transcende qualquer Volk particular: "a forma final do marxismo […] nada tem a ver com o judaísmo ou com o russismo; se um espiritualismo ainda latente encontra-se adormecido em algum lugar, é no povo russo; o bolchevismo é essencialmente ocidental, uma possibilidade europeia: a ascensão das massas, da indústria, da tecnologia, a decadência do cristianismo; à medida que o reino da razão como a nivelação de tudo é apenas a consequência do cristianismo, e sendo o cristianismo no fundo de origem judaica […] o bolchevismo é de fato judaico; mas isso também diria que o cristianismo é, no fundo, bolchevista!" (GA65, 54).

Heidegger objeta ao racismo: “Há pouquíssimo tempo atrás, buscávamos as raízes psicanalíticas da poesia, atualmente tudo está imbuído de povo, sangue e solo. Tudo permanece, porém, a mesma velha história” (GA39, 254). “Sangue e raça tornam-se os sustentáculos da história” — a história (Geschichte  ) tornou-se ahistórica nas mãos da historiografia (Historie) (GA65, 493). Tentativas românticas de “renovar” a cultura, de enraizá-la no “povo” e de comunicá-la a todos são uma fútil “re-ação” contra o espírito invasivo, explanatório e calculador (GA65, 496). Ele também faz objeções à elevação do “povo” à posição transcendental   possibilitada pelo Deus cristão (GA65, 24): “a preservação do povo nunca é um objetivo possível, apenas a condição de se ter objetivos” (GA65, 99). Fazer de um povo o objetivo é “o supremo niilismo, que se organiza, de olhos fechados, para suprir a falta de objetivos do homem” (GA65, 139). A ciência não pode ser justificada por um “propósito popular-político ou por qualquer outro propósito antropológico” (GA65, 142). A ciência é “a mesma em toda parte, e precisamente através dos vários objetivos a ela atribuídos, torna-se no fundo cada vez mais uniforme, i.e., mais ‘internacional’” (GA65, 149). Ela só pode servir aos interesses de um povo particular perdendo suas peculiaridades locais e tornando-se “liberal”, capaz de servir a qualquer fim e a qualquer povo. Na Alemanha, Rússia e em qualquer outro lugar, a organização “nacional” da ciência é “americana” (GA65, 149) — mas pouco se ganha ao se falar de “americanismo”. “ Americanismo é algo europeu”, que surge da metafísica europeia (GA5  , 103).

O Volk é uma resposta insatisfatória à questão “Quem somos nós?” (GA65, 49s). É somente quando o homem já se tornou um SUJEITO que ele precisa perguntar se é um indivíduo livre ou uma comunidade, um Volk. Somente o homem como sujeito pode ou sucumbir ao individualismo ou combatê-lo em nome da comunidade como a condição de todos os objetivos (GA5, 85/132s). Fazer do Volk uma meta, dissolver o “eu” na “vida” de um povo nada resolve, se não refletirmos sobre o “ser um si mesmo [Selbstsein  ] e a sua essência” (GA65, 321). É uma extensão “ ‘popular’ do pensamento-do-‘eu’ ‘liberal’ e da ideia econômica da manutenção da ‘vida’” (GA65, 319). Heidegger era um elitista honesto, sem o falso igualitarismo nazista e com pouco do seu autoritarismo: “A essência do povo é a sua ‘voz’. E precisamente essa voz não fala na tão chamada efusão imediata do comum, natural, incólume e inculto ‘camarada’. A testemunha assim invocada já se encontra excessivamente estragada pela educação e, de há muito, não se coloca nas relações originais com os entes. A voz do povo fala apenas raramente e em poucos, […]” (GA65, 319). Um povo precisa ser formado por pensadores e poetas: “A dominação das massas tornadas livres (i.e., sem raízes e autocentradas) deve estabelecer-se e manter-se pelos grilhões da ‘organização’”. Mas como isto só pode obstruí-las, sem transformá-las, precisamos de outro tipo de dominação: “precisamos nos preparar para os porvindouros [die Zukünftigen  ], os que haverão de criar proposições sobre o próprio ser, a partir do qual uma nova constância haverá de acontecer [sich ereignet  ] no conflito de terra e mundo” (GA65, 62. Cf. 97, 398). [DH  :149-151]