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Interpretação e Ideologias

Ricoeur (1977) – O discurso como obra

Tr. Hilton Japiassu

quinta-feira 22 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

Proponho três traços distintivos da noção de obra. Em primeiro lugar, uma obra é uma sequência mais longa que a frase, e que suscita um problema novo de compreensão, relativo à totalidade finita e fechada constituída pela obra enquanto tal. Em seguida, a obra é submetida a uma forma de codificação que se aplica à própria composição e faz com que o discurso seja um relato, um poema, um ensaio etc. É essa codificação que é conhecida pelo nome de gênero literário. Em outros termos, compete a uma obra situar-se dentro de um gênero literário. Enfim, uma obra recebe uma configuração única, que a assimila a um indivíduo e que se chama de estilo.

Composição, pertença a um gênero, estilo individual caracterizam o discurso como obra. A própria palavra obra revela a natureza dessas novas categorias: são categorias da produção e do trabalho. Impor uma forma à matéria, submeter a produção a gêneros, enfim, produzir um indivíduo, eis outras tantas maneiras de considerar a linguagem como um material a ser trabalhado e a ser formado. Dessa forma, o discurso se torna o objeto de uma práxis e de uma techne  . A este respeito, não há oposição radical entre o trabalho do espírito e o trabalho manual. A este propósito, podemos evocar o que diz Aristóteles da prática e da produção: "Toda prática e toda produção referem-se ao individual: de fato, não é o homem que o médico cura, a não ser por acidente, mas Cálias ou Sócrates  , ou qualquer outro indivíduo assim designado e que seja, ao mesmo tempo, homem" (Metafísica A, 981 a, a 15). No mesmo sentido, G. G. Granger escreve em seu Ensaio de uma filosofia do estilo: "A prática é a atividade considerada com seu contexto complexo e, especialmente, com as condições sociais que lhe dão significação num mundo efetivamente vivido" [1]. O trabalho é, assim, uma das estruturas da prática, senão sua estrutura principal: é "a atividade prática objetivando-se em obras" (p. 6).

Da mesma maneira, a obra literária é o resultado de um trabalho que organiza a linguagem. Ao trabalhar o discurso, o homem opera a determinação prática de uma categoria de indivíduos: as obras de discurso. É aqui que a noção de significação recebe uma especificação nova de ser transferida para a escala da obra individual. Por isso há um problema de interpretação das obras, irredutível à simples inteligência das frases isoladamente. O fato de estilo ressalta a escala do fenômeno da obra como significante, globalmente enquanto obra. Assim, o problema da literatura vem inscrever-se no interior de uma estilística geral, concebida como "meditação sobre as obras humanas" (p. 11) e especificada pela noção de trabalho, de que ela busca as condições de possibilidade: "Procurar as mais gerais condições da inserção das estruturas numa prática individual, esta seria a tarefa de uma estilística" (p. 2).

À luz desses princípios, o que ocorre com os traços do discurso enumerados no início desse estudo?

Estamos lembrados do paradoxo inicial do evento e do sentido: o discurso, dizíamos, é efetuado como evento, mas compreendido como sentido. Como a noção de obra pode situar-se com referência a esse paradoxo? Ao introduzir na dimensão do discurso categorias próprias à ordem da produção e do trabalho, a noção de obra aparece como uma mediação prática entre a irracionalidade do evento e a racionalidade do sentido. O evento é a própria estilização, mas essa estilização está em relação dialética com uma situação concreta complexa apresentando tendências, conflitos. A estilização surge no seio de uma experiência já estruturada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo, indeterminações. Apreender uma obra como evento é captar a relação entre a situação e o projeto no processo de reestruturação.

A obra de estilização toma a forma singular de um acordo entre uma situação anterior que, de repente, aparece desfeita, não resolvida, aberta, e uma conduta ou uma estratégia que reorganiza os resíduos deixados pela estruturação anterior. Ao mesmo tempo, o paradoxo do evento fugidio e do sentido identificável e repetível, que está no ponto de partida de nossa meditação sobre o distanciamento no discurso, encontra na noção de obra uma notável mediação. A noção de estilo acumula os dois caracteres do evento e do sentido. O estilo, como vimos, surge temporalmente como um indivíduo único e, a este título, diz respeito ao momento irracional do parti pris, mas sua inscrição no material da linguagem confere-lhe a aparência de uma ideia sensível, de um universal concreto, como diz W. K. Wimsatt, em The verbal icon [2]. O estilo é a promoção de um parti pris legível numa obra que, por sua singularidade, ilustra e enaltece o caráter acontecimental do discurso. Mas este acontecimento não deve ser procurado alhures, mas na forma mesma da obra. Se o indivíduo é inapreensível teoricamente, pode ser reconhecido como a singularidade de um processo, de uma construção, em resposta a uma situação determinada.

Quanto à noção de sujeito de discurso, recebe um estatuto novo quando o discurso se torna uma obra. A noção de estilo permite um novo enfoque da questão do sujeito da obra literária. A chave encontra-se do lado das categorias da produção do trabalho. A este respeito, o modelo do artesão é particularmente instrutivo (a estampilha do móvel no século XVIII, a assinatura do artista, etc). Com efeito, a noção de autor, que aqui vem qualificar a de sujeito falante, aparece como o correlato da individualidade da obra. A demonstração mais surpreendente deste fato é fornecida pelo exemplo menos literário possível, o estilo da construção do objeto matemático, tal como Granger a expõe na primeira parte de seu Ensaio de uma filosofia do estilo. Até mesmo a construção de um modelo abstrato dos fenômenos, a partir do momento em que é uma atividade prática imanente a um processo de estruturação, traz um nome próprio. Tal modo de estruturação aparece necessariamente como escolhido, de preferência a outro. Porque o estilo é um trabalho que individua, vale dizer, que produz o individual, também designa, retroativamente, seu autor. Assim, o termo autor pertence à estilística. Autor diz mais que locutor: é o artesão em obra de linguagem. Ao mesmo tempo, porém, a categoria do autor é uma categoria da interpretação, no sentido em que é contemporânea da significação da obra como um todo. A configuração singular da obra e a configuração singular do autor são estritamente correlativas. O homem se individua produzindo obras individuais. A assinatura é a marca dessa relação.

Todavia, a mais importante consequência da introdução da categoria de obra deve-se à noção mesma de composição. Realmente, a obra de discurso apresenta caracteres de organização e de estrutura que nos permitem estender ao próprio discurso os métodos estruturais que, inicialmente, foram aplicados com êxito nas entidades da linguagem mais curtas que a frase, em fonologia e em semântica. A objetivação do discurso na obra e o caráter estrutural da composição, a que se acrescentará o distanciamento pela escrita, leva-nos a questionar por completo a oposição recebida de Dilthey   entre "compreender" e "explicar".

Uma nova época da hermenêutica está aberta para o sucesso da análise estrutural. Doravante, a explicação é o caminho obrigatório da compreensão. Isto não quer dizer — é preciso esclarecê-lo desde agora — que a explicação possa, em contrapartida, eliminar a compreensão. A objetivação do discurso, numa obra estruturada, não suprime o traço fundamental e primeiro do discurso, a saber, que o é constituído por um conjunto de frases onde alguém diz algo a alguém a propósito de alguma coisa. A hermenêutica, como vimos, permanece a arte de discernir o discurso na obra. Mas este discurso não se dá alhures: ele se verifica nas estruturas da obra e por elas. Consequentemente, a interpretação é a réplica desse distanciamento fundamental constituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso, comparáveis à sua objetivação nos produtos de seu trabalho e de sua arte.


Ver online : Paul Ricoeur


[1G. G. Granger, Essai d’une philosophie du style, Paris, 1968, p. 6

[2W. K. Wimsatt, The verbal icon, studies in the meaning of poetry, Kentucky, 1954