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Jaspers: VERDADE

quarta-feira 23 de março de 2022

Karl Jaspers  , Filosofia da Existência, trad. Marco Aurélio de Moura Matos. Imago, 1973.

EM SUA EFETIVIDADE HISTÓRICA, a exceção e a autoridade são a insondável realidade abrangente. O que revelam parece sem sentido e censurável à mera compreensão: a verdade una e a natureza humana una não existem; a verdade, para os homens, existe no tempo e é, por conseguinte, histórica, — portanto uma tarefa continuamente ameaçada.

Quando ocorrem, a verdade autorizada e a verdade enunciada pela exceção são a verdade mais impressionante e majestosa — e quando não estão presentes, os homens sentem a sua nostalgia da maneira mais desesperada, com todo o seu ser. Apenas onde os homens escondem o que é originário e intrinsecamente valioso por meio de uma clareza espúria da verdade meramente correta do entendimento esta realidade abrangente da verdade efetivamente desaparece. Mas é apenas nesta realidade que conheço a mim mesmo como Existenz.

A exceção e a autoridade levam ao terreno da verdade que não mais pertence apenas a um modo da realidade abrangente mas, penetrando e surgindo em todos eles, pode constituir uma unidade. Nesta unidade, os conflitos que surgem da luta entre os modos da realidade abrangente parecem momentaneamente ser resolvidos — não violentamente por uma única realidade abrangente que ganhe preeminência, mas através da transcendência, que parece falar com o Único em todos os modos da realidade abrangente. Isto não é uma harmonia dos modos da realidade abrangente, mas uma fusão momentânea dentro do Único que ainda, na verdade, permite à tensão persistir e dá lugar a novas rupturas.

Embora absolutamente opostas uma à outra, a exceção e a autoridade são da mesma classe como indicadores do terreno da verdade. Caracterizemos o elemento comum em sua polaridade, mais uma vez:

1. Estão fundamentados na transcendência. Onde apareçam, dão testemunho da transcendência, certeiramente. Sem uma relação com a transcendência, não há nenhuma exceção existencial e nenhuma autoridade genuína.

2. Ambas são incompletas. Acham-se em movimento, quase que em auto-anulação em que, em seu momento próprio, emergem da tensão como a verdade una.

3. Ambas são históricas, sempre particulares e não-intercambiáveis. A verdade original que contêm não pode, desta maneira, ser imitada ou repetida. Mas, desde que historicamente enfeixam e abrangem todas as coisas, acham-se na sua concentração histórica abertas em todas as direções.

4. Ambas contêm a verdade que escapa à configuração num objeto observável e cognoscível. Se são objetivamente construídas, como um princípio de dedução racional, a exceção e a autoridade são constringidas, escamoteadas da sua vida e da sua verdade. Imediatamente as perco se as constituo como objetos do meu planejamento e da minha ação intencionais. As palavras "exceção" e "autoridade" parecem denotar fenômenos sem ambiguidade. Mas o significado destas palavras se refere a um transcendente em que o fundamento da verdade que abrange todas as coisas numa única se torna presente. Nem a poesia nem a filosofia dominam esta verdade. A poesia toca a fronteira em que aquilo a que dá forma não é a derradeira interioridade com que está realmente preocupada. A filosofia toca a fronteira a que o seu pensamento nunca é idêntico ao ser da verdade em si mesma, embora a procura da verdade seja o objetivo derradeiro do filosofar.


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