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Japiassu (1977:Apresentação) – Hermeneutica de Ricoeur

sábado 16 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

É nesse contexto — de uma decodificação hermenêutica do universo dos signos, presidindo à elaboração do discurso científico, mormente no domínio das chamadas ciências humanas e sociais, e de uma crítica hermenêutica dos discursos ideológicos, sempre presentes em todo conhecimento, por mais científico que ele seja — que vai situar-se o presente volume, denominado Interpretação e ideologias. Trata-se de uma coletânea de textos publicados pelo autor em diversas revistas ou em obras coletivas. De forma alguma tais artigos constituem uma apresentação sistemática do pensamento do autor. Podemos dizer que são exposições condensadas, proferidas em diversas circunstâncias e escritas para responder a preocupações bem determinadas, relativas a um contexto específico. Na origem, não estavam destinadas a serem congregadas. Sua reunião num só volume deveu-se a uma iniciativa de minha parte. Numa conversa que mantive com o Prof. Ricoeur   em Paris, no início de 1976, fiz-lhe ver a importância, para o público universitário brasileiro em geral, de um fácil acesso a uma série de textos dando conta da atualidade da questão hermenêutica em confronto com os problemas de ordem ideológica. Ele se mostrou vivamente interessado na "divulgação" desses elementos e instrumentos de reflexão, fornecendo-me imediatamente vários de seus artigos para que os organizasse em um único volume. Após selecionar os textos que me pareceram mais significativos, submeti-os à apreciação do autor, que nada teve a objetar à ordem de apresentação por mim sugerida. No meu entender, a unidade que os cimenta é uma unidade de inspiração, na medida em que todos se inscrevem numa problemática fundamental: a de converter o método hermenêutico ou interpretativo num esforço de salvar o homem da (ou mesmo apesar da) ciência, de vez que os métodos positivistas das ciências tentam salvá-la, embora pouco se importem com o homem. Diríamos que contra o esprit géométrique ainda muito vivo nos cientistas humanos, a hermenêutica opta pelo esprit de finesse que só compreende o cogito   quando mediatizado pelo universo dos signos: a consciência não é imediata, porém mediata; não é uma fonte, mas uma tarefa, a tarefa de tornar-se consciente, mais consciente. Neste sentido, não há hermenêutica geral, vale dizer, teoria geral da interpretação, cânon geral da exegese. O que há são teorias hermenêuticas opostas. Em particular, os duplos sentidos vinculam a consciência a um antes ou a um depois, a uma origem ou a um fim: para a psicanálise, a verdade da consciência encontra-se atrás dela num inconsciente arcaico ou infantil, de que os fatos conscientes constituem apenas o retorno; para a fenomenologia (no sentido hegeliano), essa verdade se encontra no fim, no futuro para o qual a consciência marcha. Esboçam-se, assim, as duas hermenêuticas entre as quais se instala o que Ricoeur chama de "o conflito das interpretações".

A primeira parte do presente volume é constituída por dois textos policopiados: "A tarefa da hermenêutica" e "A função hermenêutica do distanciamento". O primeiro constitui a descrição do estado atual do problema hermenêutico. Serve como pano de fundo para a elaboração do problema hermenêutico de um modo que seja significativo para o diálogo entre a hermenêutica e as disciplinas semiológicas. O segundo traduz o pensamento de Ricoeur. Ele aí faz uma revisão da problemática hermenêutica, que passa a ser entendida como a teoria das operações de compreensão em sua relação com a interpretação dos textos. Todo o segundo capítulo é dedicado à elaboração das categorias do texto, a fim de que seja resolvida a aporia central da hermenêutica, já apontada no primeiro capítulo, a saber: a desastrosa alternativa entre explicar e compreender. A hermenêutica exige uma complementaridade dessas duas atitudes e uma superação de tão nefasto dualismo epistemológico. E isto a partir de uma elaboração da noção de texto, pois é ela que produz o distanciamento, necessário à noção de objetividade, mas no interior da historicidade da experiência humana. Donde a organização da problemática em torno de cinco temas: a efetuação da linguagem como discurso, a efetuação do discurso como obra estruturada, a relação da fala com a escrita no discurso, a obra do discurso como projeção de um mundo, o discurso e a obra de discurso como mediação da compreensão de si.

A segunda parte é composta de um artigo publicado na Revue Philosophique de Louvain (maio de 1972), intitulado "Science et idéologie". Nele, o autor nos alerta, inicialmente, para certas armadilhas a que pode nos conduzir uma interpretação redutora do fenômeno ideológico. Em seguida, passa a elaborar alguns critérios permitindo-nos compreender o fenômeno ideológico, não a partir de uma análise em termos de classes sociais e de classes dominantes, mas de um modo de cruzar Marx   sem segui-lo nem tampouco combatê-lo. Para tanto, procede em três etapas: primeiramente, estuda a função geral da ideologia; em seguida, estuda a função de dominação, própria da ideologia, que acrescenta à função anterior de integração; em terceiro lugar, a ideologia é analisada em sua função de deformação. Só então Ricoeur passa a mostrar os vínculos existentes entre as ciências sociais e a ideologia. E conclui dizendo que nenhuma teoria social pode desvincular-se por completo da condição ideológica. Finalmente, tenta dar uma solução à clássica oposição entre ciência e ideologia. Entre ambas, deve haver uma relação dialética: não há um lugar não-ideológico de onde possa falar o cientista social, porque falar de um lugar axiologicamente neutro não passa de um engodo.

A terceira parte é constituída de uma comunicação feita por Ricoeur no colóquio sobre "Desmitização e Ideologia", organizado pelo Centro Internacional de Estudos e pelo Instituto de Estudos Filosóficos de Roma  , em janeiro de 1973. O título original é "Herméneutique et critique des idéologies". Encontra-se publicado nas Atas do Colóquio, dirigidas por Enrico Castelli (Démytisation et idéologie, Aubier, Paris, 1973). Conservamos apenas parte do título: "crítica das ideologias". Porque, de fato, o que pretende Ricoeur é elaborar uma crítica das ideologias subjacentes à pretensão das ciências humanas de atingir a cientificidade. Não tem em vista buscar os fundamentos das ciências humanas. Seu objetivo é lançar um desafio crítico à "falsa consciência", às distorções da comunicação humana, sempre ocultando ou dissimulando o exercício da dominação ou da violência. Tal desafio parece estreitamente vinculado ao domínio da epistemologia das ciências humanas. Ele se enuncia em termos de uma alternativa: consciência hermenêutica ou consciência crítica. Ricoeur tenta superar essa alternativa que, no pensamento contemporâneo, ainda se verifica na obra de Gadamer  , ao estudar a hermenêutica das tradições, e nos estudos de Habermas, ao elaborar sua crítica das ideologias. Por não aceitar a alternativa proposta por esses dois autores, Ricoeur se propõe a elaborar uma reflexão crítica sobre a própria hermenêutica. Seu intuito não consiste em fundar a hermenêutica das tradições e a crítica das ideologias numa espécie de supersistema que as englobaria. Ele tenta integrar a criticada consciência falsa na hermenêutica e conferir à crítica das ideologias uma dimensão meta-hermenêutica. Mas não fica nisso. Sobre a crítica das ideologias, elabora uma reflexão tendo por objetivo pôr à prova a reivindicação de universalidade da crítica das ideologias, mostrando a interpenetração das duas "universalidades": da hermenêutica e da crítica das ideologias. É neste sentido que faz uma reflexão hermenêutica sobre a própria crítica, também chamada de "meta-hermenêutica".

Finalmente, a quarta parte é constituída por algumas conclusões tiradas pelo autor de um longo trabalho por ele apresentado nas Semanas Sociais realizadas em Lyon (França) em dezembro de 1972, sobre o tema "Maîtriser les conflits". Essas conclusões foram publicadas em Chronique Sociale de France (n.° 5/6, dezembro de 1972), com o título Le conflit — signe de contradiction et d’unité? No dizer do próprio autor, seu trabalho tem um tríplice objetivo: em primeiro lugar, descrever os novos conflitos que surgem nas sociedades industriais avançadas; em seguida, situar, face a esses neoconflitos, algumas das atitudes de caráter ideológico que mascaram seu sentido e sua realidade, engajando-nos em comportamentos estéreis; enfim, extrair dessas motivações-anteparo sugestões teóricas e práticas para a elaboração de uma nova estratégia dos conflitos. Talvez essa elaboração pressuponha uma reflexão capaz de descobrir as raízes do homem que não vive somente de pão bem como esse gemido de uma criação que não se faz sem conflito, nem tampouco no conflito a todo preço, mas no coração mesmo dos conflitos vividos na esperança.


Ver online : Paul Ricoeur


Apresentação de Hilton Japiassu de RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Organização, tradução e apresentação Hilton Japiassu. Francisco Alves, 1977.