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Ferreira da Silva (2009:47-49) – O homem é liberdade
sábado 11 de julho de 2020
Quando inicia suas investigações, a ciência já encontra dado diante de si o objeto de seu estudo: a terra preexiste à geologia, os animais preexistem à zoologia etc. A ciência é uma atenção [47] ao fato, uma exploração do passado. “O pássaro de Minerva só levanta voo ao cair da noite.” Se a filosofia quiser invadir o terreno próprio da ciência ou ver seu território invadido pela ciência, não pode definir-se também como um conhecimento de coisas, como um saber ou teoria: seu objeto não é um objeto, mas algo transobjetivo ou inobjetivo; não é a exposição de um pensamento pensado, mas a captação de um ato, de uma liberdade. Seu assunto, não existindo pronto como existem os objetos de outras ciências, mas devendo de qualquer forma passar à consciência para ser formulado, deverá ser suscitado, provocado, para depois ser conhecido. Fichte já havia afirmado que a filosofia não começa com um axioma, com uma verdade sobre coisas, mas sim com um apelo, com a exigência de que o homem volva sobre si: “A consciência de si não se impõe, nem chega por si mesma: cada qual há de provocá-la por meio da liberdade em si mesmo. O eu que constrói a si mesmo é o seu próprio eu.” A filosofia começa, pois, como uma exortação à liberdade, no sentido de que o eu manifeste sua autonomia, rompendo suas vinculações fáticas. Se a consciência fosse algo de objetivo, tal exigência seria completamente descabida, pois o que é não necessita ser livremente produzido. A subjetividade só pode manifestar-se em sua autoexecução, em seu fazer-se concreto. Este ato de autodeterminação, de autoprodução livre de si mesmo separa dois mundos, pois através dele o homem se aparta de todas as coisas, pondo-se como autor de sua própria realidade. Enquanto as coisas são plasmadas pelo impacto das circunstâncias, tendo sua razão de ser fora de si, o homem com esse gesto de autonomia interior chama a si a responsabilidade de sua natureza e põe-se como pura autoatividade, como liberdade. O homem é liberdade. Esse poder metafísico e íntimo não se apresenta como uma qualidade que o homem possui ao lado de outras qualidades, como um matiz exterior, mas sim como a categoria fundamental, o seu mais árduo destino. Dissemos atrás que, com esse ato de liberdade, o homem se punha além de todo o dado, transcendendo todo o existente. Qual a relação entre a liberdade e a transcendência? Manifestando-se como um [48] simples poder-ser e, portanto, traçando-se além de todo o dado é que o homem pode plasmar-se a si mesmo, tornando-se o autor de sua realidade. Eis por que Novalis via nessa superação de si mesmo, nessa transcendência, o Urpunkt [ponto originário] da realidade: “O ato de superar-se a si mesmo é sempre o mais alto — o ponto original — a gênese da vida”. Enquanto a coisa vive cerrada em si mesma numa compreensão infinita e limitante, o homem como subjetividade está envolto num horizonte de possibilidades, abre-se para o possível e somente através desse possível pode ser profundamente compreendido. O homem como não coincidência consigo mesmo é aquele ser que vive no possível; é, segundo nos diz Kierkegaard , aquele ser que deve “educar-se no possível”.
[FERREIRA DA SILVA , Vicente. Dialética das Consciências. São Paulo: É Realizações, 2009]
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