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A Fenomenologia no Brasil

Beneval de Oliveira: Ernildo Stein - uma ontologia da finitude

Temática do Existencialismo Brasileiro

terça-feira 5 de outubro de 2021

A Fenomenologia no Brasil, Beneval de Oliveira, Pallas, 1983


O presente trabalho tem como objetivo enfocar a temática do existencialismo brasileiro. Neste sentido, procuramos pesquisar as origens dessa temática, a partir de uma reinterpretação da filosofia grega, dando ênfase, sobretudo, à ontologia de Martin Heidegger, justamente por ter esse filósofo despertado maior atenção que os demais filósofos existencialistas entre os nossos estudiosos da matéria.

De outro lado, procuramos analisar a frio, o pensamento de nossos pesquisadores, sem nos deixar levar por inclinações de ordem preferencial.


Vamos agora estudar Stein na sua Ontologia da Finitude [1] cujo sentido de “transcendência e rescendência são magnificamente enfocados.

Stein ministrou em Curso Livre de Metafísica, como livre docente, na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nos meses de outubro e novembro de 1968, em que ele mesmo salienta que “atenta à meta proposta, nossa análise, foi destacando, no movimento evolutivo da questão da finitude, aspectos que em Heidegger tomaram contornos precisos, marcando uma etapa decisiva. Não nos escapou, em nenhum momento de nosso estudo que as transformações sofridas pelo tema, no âmbito da discussão filosófica, impedem uma interpretação unívoca da finitude. Contudo, assim como houve um avanço linear da interrogação filosófica, que permite descortinar uma certa unidade, assim também é possível verificar uma certa homogeneidade no progresso que levou ao estágio atual do problema da finitude. E ainda: existe um estreito vínculo conectando entre si determinada direção no movimento especulativa e determinada concepção da finitude. A superação do objetivismo na filosofia e a inauguração do pensamento transcendental marcaram também a passagem definitiva de um tipo da problemática de finitude para outro” [2]

Como é sabido, por várias transformações passou a filosofia desde a superação do objetivismo à questão do pensamento transcendental, todo esse movimento de progressões provocou, evidentemente, problemas de insegurança e dúvidas, de questionamentos a respeito da problemática do ser, do mundo e de Deus. De tantas discussões e questionamentos a problemática da finitude ganhou na metafísica ocidental amplos dimensionamentos, a partir, como sublinha Ernildo, da transformação transcendental realizada por Kant  , da transformação fenomenológica realizada por Husserl   e da transformação existencial realizada por Heidegger.

Conforme salientamos, linhas acima, a questão da entificação do ser que absorvia todas as transformações da metafísica, encontrou, finalmente, em Heidegger a sua postura definitiva, não apenas na definição da ontologia da finitude, mas, sobretudo, com a defi­nição do ser.

Amadurecido o problema da finitude que se liga ao da temporalidade, cabe desenvolvê-lo, acentuando que este se coloca contrariamente a qualquer orientação no sentido do absoluto, advindo, daí, uma modificação do sentido linguístico.

A respeito, escreve Stein, “Numa filosofia do absoluto a linguagem humana é feita à imagem e semelhança de uma linguagem plena e absoluta. Enquanto que na filosofia da finitude a linguagem humana é desprovida de modelo, é construída experimentalmente, Ele sabe que uma linguagem absoluta somente é possível onde existe e é acessível o objeto absoluto e o sujeito absoluto. O que dissemos antes do conceito pode ser dito aqui a respeito da palavra: Não, a palavra é a força do tempo, mas o tempo é a força da palavra. O poder da palavra nasce precisamente da temporalidade que carrega em si e não, como na tradição metafísica, em que o poder do tempo nascia da palavra absoluta que em si ocultava”. [3]

Entretanto, adverte, ainda, Ernildo Stein  : “A afirmação de que não existe palavra absoluta para a filosofia da finitude não deve dar-nos a impressão de que vivemos simplesmente um novo relativismo. Assim como a própria filosofia da finitude, assim também a linguagem com que diz seu conteúdo, estão muito aquém da oposição absolutismo-relativismo. A ontologia da finitude e sua linguagem sem absolutos são bem outra coisa que relativismo. Somente ela pode evitar a absolutização do relativo e a relativização do absoluto. Desde o início temos alertado contra qualquer tipo de monismo, tanto contra o monismo da finitude como contra o monismo do infinito, quer contra o monismo do relativo quer contra o monismo do absoluto. Fique, portanto, claramente advertido que é essencialmente experimental o caráter da linguagem da ontologia da finitude. Não se trata de relativizar os conteúdos, mas de experimentar a linguagem que os expressa”. [4]

Depois de acentuar que na filosofia atual ocorre algo semelhante à inventividade linguística na literatura de vanguarda, que se caracteriza por uma certa flutuação em face da imponderabilidade do real, o pensador em questão entra direto na temática do proble­ma de transcendência, para mostrar que esse problema “constituí sempre um desafio, quase desanimados, levando em consideração que a transcendência na filosofia é representada, em toda tradição, como o argumento primeiro e o ponto de partida para qualquer filosofia do absoluto. E negativamente é a atestação da impossibilidade de uma ontologia da finitude já que esta deveria negar o momento essencial da própria interrogação filosófica” [5]

Observa o autor que desde Platão   o problema da transcendência é realmente introduzido na metafísica ocidental a partir do modelo dos dois mundos. Recebe uma conotação dualista e espacializante. Disto a ideia de transcendentalidade não se libertou em toda a trajetória de tradição. A ideia de transcendência foi realmente objetivada e coisificada. Perdeu, com isto, única dimensão que lhe é essencial: ela é um conceito operativo. Representa um processo do espírito humano e só pode ser pensada neste movimento. Ele sofreu as mesmas consequências do objetivismo que perpassam os temas principais da tradição metafísica” [6]

A esta condição se devia o fato de que se o ser era concebido de maneira estática, o mesmo ocorria com a transcendência, tendo em vista a sua identidade com ele.

Mas se ocorre uma transformação da metafísica com o pensamento de modernidade, observa Stein, também este conceito transcendental, deverá passar por mudanças, assumindo novos aspectos filosóficos.

No caso da finitude dar-se-á o mesmo, constituindo-se na sua “pedra de toque”. Mas terá que ser pensado como o está sendo o pensamento típico da tradição transcendente.

É inegável, salienta Stein, que a filosofia moderna realizou ingente esforço para transladar o problema da transcendência para o âmbito da subjetividade. Mas com isso ela foi levada a negligenciar a vinculação necessária da transcendência com o problema do ser. E mais ainda: ela determinou a transcendência a partir do eu absolutizado, transformado em eu transcendental. A filosofia moderna fixou a transcendência no sujeito absoluto e com isto destruiu novamente seu caráter precipuamente operativo. Somente a filosofia existencial apoiada na filosofia moderna e retornando o problema do Ser a partir do homem estabeleceu as primeiras possibilidades de pensar a transcendência enquanto ligada à existência” . [7]

Partindo do princípio de que a transcendência é transladada para a problemática de existência este fenômeno privilegia o transcendente acompanhando o problema do Ser, podendo-se assim vinculá-lo a uma ontologia da finitude. No caso da transcendência houve um corte entre a transcendência objetivista e a transcendência subjetiva trazida por Kant   com seu idealismo transcendental.

Diz Stein que o movimento de transcendência não é tanto uma fuga da condição da finitude do homem e uma tentativa de projetá-lo num outro fundamento. É antes a experimentação positiva da própria condição da finitude do homem e uma tentativa de projetá-la num outro fundamento. É antes a experimentação positiva da própria condição da finitude. O transcender é um esforço de penetrar nas raízes da própria. finitude; é um movimento para sentir a feliz resistência do ar que é condição de o homem poder conhecer-se em sua profundidade”. [8]

Não padece dúvida de que Kant   abriu caminho para esta perspectiva, dando a Heidegger a consciência de que a transcendência não pode ser desvelada compreendida mediante a fuga no objetivo, mas unicamente através da interpretação ontológica da subjetividade do sujeito a ser constantemente renovada”. [9]

Prosseguindo em suas considerações sobre a busca de uma ontologia de finitude, Stein examina inicialmente a transcendência compreendida como transcendência para o interior que ele chama de rescendência, “isto é, volta sobre si mesmo”. Este estaria ligado ao problema da desobjetivação, isto que quer dizer, a libertação da transcendência da área da ontologia da coisa, típica da metafísica tradicional, isto que ele vai chamar de des-realização.

Fazendo uma análise mais eficaz da questão, Stein chama a atenção que, o movimento transcendência para cima representaria a posição dos tradicionais, isto que faria uma espécie de ultrapassagem do mundo sensível para um mundo superior, não sensível, ou seja suprasensível. A metafísica, anota Stein, aparece como uma transfísica, uma física do outro mundo. Trata-se da tradição vinda de Platão   e nós, acrescentaríamos, do judaico-cristianismo.

O segundo termo, que é antípoda do primeiro, seria mais uma intranscendência, isto é, uma caminhada definitiva para o nosso mundo interior, para onde se movimenta toda a ultrapassagem do mundo sensível.

Stein lembra Sócrates   com o famoso “conhece-te a ti mesmo”, Plotino   que desabrocha a ’idéia de que lugar da transcendência está no próprio homem, seguindo-se a interiorização agostiniana e a tendência da filosofia reflexiva francesa a partir do Cogito, e daí a Kant   e a Husserl  .

Assegura Stein que com a ideia de rescendência afloramos uma questão que exige uma certa atitude de violência contra nossos modos tradicionais de pensar. É que além de negarmos a especialização inerente ao conceito clássico de transcendência queremos localizar na transcendência, como movimento do homem em sua finitude, uma experimentação desta finitude. A transcendência como rescendência é um irresistível apelo para a sondagem das raízes do próprio homem”. [10]

Pela rescendência, diz Stein, realiza-se a primeira e incipiente compreensão de ser ele se desliga da apressada adesão a qualquer absoluto. Pela rescendência o homem amadurece para si mesmo. Tal maturação é um processo de descoberta de sua solidão no universo ontológico. Nada lhe acode para libertá-lo de si mesmo. Assumindo isto, ele se liberta para si mesmo” [11] Stein dando sempre ênfase ao processo da rescendência que vai contribuir de modo inequívoco para a desabsolutização do homem, reportando-se à história da filosofia mais recente, “em cuja paisagem predomina a filosofia transcendental, observa que se torna possível delinear duas tendências dominantes: a filosofia da subjetividade transcendental e a filosofia da subjetividade concreta. Na primeira predomina a problemática do conhecimento, nela se insiste na busca dos fundamentos do conhecimento. Ela procura ser a esfera em que se constitui o pensamento crítico. O sujeito interessa sobretudo enquanto sujeito do conhecimento. Toda reflexão vem envolvida pela preocupação crítica. O sujeito é abordado em função de teoria do conhecimento. Na segunda tendência predomina, também, a subjetividade. Mas ela é objeto de análise por causa da problemática ontológica, sendo que no estudo da subjetividade concreta procura-se estabelecer o ponto de partida para uma verdadeira ontologia.

Mostra o autor que a filosofia da subjetividade transcendental desenvolveu-se na direção criticista neokantiana, mas é na fenomenologia de Husserl   que ela traçou o seu caminho definitivo na hipostasia do sujeito, no fixismo do seu Eu puro. Observa Stein, com muito acerto, que não podemos chegar à plenitude do Eu puro. Há em tudo isso uma tendência para o fixismo, para uma absolutização perigosa que não chega a um caminho certo.

Já na subjetividade concreta, na interpretação da existência, a problemática do ser fica muito bem situada, fornecendo as chaves para a solução dos problemas atuais da filosofia. Sustenta Stein que a filosofia da subjetividade concreta não cai em nenhuma espécie de monismo, nem no monismo que estabelece a absolutidade do sujeito em face do ser, nem no monismo que afirma absolutidade dó ser em face do sujeito, nem finalmente no monismo que surge de uma finitude absolutizada em si mesma no plano do objetivismo. A filosofia da subjetividade concreta conseguiu resguardar o problema da finitude e o problema do ser numa relação em que ambos protegem sua especificidade e sua mútua dependência.

Salienta, ainda, Stein que a des-realização é a consagração da finitude, o absoluto autônomo em si e para si desaparece. A desabsolutização do homem significa, então, em primeiro lugar, a superação do sujeito absoluto que se quer fonte e raiz e ponto de partida fixo. Mas simultaneamente, significa que o absoluto pensado objetivamente na tradição da metafísica ingênua deve ser convertido em conceito limite que se desencadeia a partir da finitude. Assim como o eu puro, o transcendental é eliminado pelo processo da rescendência, oculto atrás de todo o movimento da transcendência, assim também o absoluto da tradição metafísica clássica somente pode ser pensado no movimento que volta o homem sobre si mesmo para experimentar sua finitude de homem desabsolutizado e desrealizado pela experiência de sua finitude, torna-se o lugar solitário e indisponível em que se cruzam todos os caminhos da filosofia”.


BIBLIOGRAFIA

  • 01) BINSWANGER, Ludwig - Discours, parcours, et Freud - Éditións Gallimard - Paris - 1970. Ensaios que entrelaçam uma série de discursos acerca da aplicação do Da-sein heideggeriano na Psicanálise.
  • 02) BINSWANGER, Ludwig - Introduction a L’Analyse Existencielle - Les Éditions de Minuit - Paris - 1971. Novos ensaios do autor da Daseinanalyse, estudando as relações existentes entre sonho e vigília, delírio e razão, afecções psicossomáticas e modos de ação psiquiátricas e psicoterapêuticas.
  • 03) BORNHEIM, Gerd A. - Dialética, Teoria, Praxis - Editora Globo - Editora da Universidade de São Paulo - Ensaio crítico da fundamentação ontológica da dialética. O autor faz uma crítica do problema da finitude em Heidegger, sobretudo, na questão da praxis.
  • 04) CARNEIRO Leão, Emanuel - Aprendendo a pensar - Vozes - Coletânea de artigos tendo como base o sentido existencial da vida.
  • 05) DUFRENNE, Mikel - Estética e Filosofia. Persepctiva - São Paulo. Estudo da estética fenomenológica com um capítulo destinado ao estudo do poeta grego Pindaro, através do livro de Jacqueline Duchemin Pindare poeta et prophète.
  • 06) DILTHEY, W. - Escritos Reunidos - E. Weniger, 1944 Leipzig - Embora sendo considerado um filósofo da vida, Dilthey pode figurar como um historiador da existência humana. Sua posição de filósofo histórico está bem definida neste trabalho.
  • 07) FERREIRA DA SILVA, Vicente - Obras Completas vol. 1. Edição da R.B.F. São Paulo, Coletânea de artigos de filosofia, dentre os quais se destacam os que estudam a filosofia existencial de M. Heidegger.
  • 08) GURWITCH, Georges - Las Tendências Atuales de La Filosofia Alemana - Aguilar Editores - Madrid. 1928. Estudos filosóficos em torno de Husserl, Sheler, Lask, Hartman e Heidegger, fazendo clara exposição dos temas da filosofia contemporânea.
  • 09) HEIDEGGER, Martin - L’Étre et le Temps - Gallimard - 1964 - Estudo da primeira obra de Martin Heidegger em que são expostos os principies básicos da sua filosofia do sentido do ser.
  • 10) HEIDEGGER, Martin - Chemins qui ne ménent nulle pari - alemão Holswege - Gallimard, Paris. Estudo de vários temas de filosofia existencial de Heidegger, incluindo “A origem da obra de arte” e a Palavra de Anaximandro.
  • 11) HEIDEGGER, Martin - Que é Metafísica. Duas Cidades. São Paulo, 1969. Textos de Heidegger desenvolvendo temas relacionados com a ontologia do prof. de Friburg.
  • 12) HEIDEGGER, Martin - Introdução à Metafísica. Tempo Brasileiro. Tradução de Emanuel Carneiro Leão. Livro básico para a compreensão do problema do esquecimento do Ser. Porque o ser e não apenas, o Nada?
  • 13) HEIDEGGER, Martin - Ensaios I. II e III Gallimard - Novos Artigos em torno da temática heideggeriana sobre finitude, temporalidade, a caverna de Platão, etc.
  • 14) LÉVINAS, Eminanuel - En Découvrant L’Existence avec Husserl et Heidegger - Vrin - Paris, 1974 - Conferências e Estudos em torno da fenomenologia de Husserl e Heidegger.
  • 15) RICOEUR, Paul - O Conflito das Interpretações Imago Editora, 1978 - Seu objetivo central consiste em enfrentar os grandes desafios do pensamento contemporâneo. Trata-se de assumir filosoficamente a tensão dos conflitos que nos envolvem no plano do pensamento.
  • 16) STEIN, Ernildo - Em busca de uma ontologia da Finitude. Este trabalho é parte de um Curso de Metafísica instituído pelo autor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1969. Pub. na Revista Brasileira de Filosofia.

[1NA: Stein, Ernildo - Em busca de uma Ontologia da Finitude - Revista Brasileira de Filosofia. Vol. XIX - Fase. 76 - out. Nova 1969.

[2NA: Ibid. p. 399.

[3NA: Ibid. p. 402.

[4NA: 29. Ibid. p. 402.

[5NA: 30. Ibid. p. 403.

[6NA: 31. Ibid. p. 403.

[7NA: 32. Ibid. p. 404.

[8NA: 33. Ibid. p. 405.

[9NA: 34. Ibid. p. 405

[10NA: Ibid. p. 409.

[11NA: Ibid. pp. 412/13.