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Arendt (CH:§12) – a ação é fútil
sexta-feira 27 de novembro de 2020
Roberto Raposo
Diferentes tanto dos bens de consumo quanto dos objetos de uso há, finalmente, os “produtos” da ação e do discurso que constituem juntos a textura das relações e dos assuntos humanos. Por si mesmos, são não apenas destituídos da tangibilidade das outras coisas, mas são ainda menos duráveis e mais fúteis que o que produzimos para o consumo. Sua realidade depende inteiramente da pluralidade humana, da presença constante de outros que possam ver e ouvir e, portanto, atestar sua existência. Agir e falar são ainda manifestações externas da vida humana, e esta só conhece uma atividade que, embora relacionada com o mundo exterior de muitas maneiras, não se manifesta nele necessariamente, nem precisa ser ouvida, vista, usada ou consumida para ser real: a atividade de pensar.
Vistos, porém, em sua mundanidade, a ação, o discurso e o pensamento têm muito mais em comum entre si que qualquer um deles tem com a obra ou com o trabalho. Por si próprios, não “produzem” nem geram coisa alguma: são tão fúteis quanto a vida. Para que se tornem coisas mundanas, isto é, feitos, fatos, eventos e modelos de pensamentos ou ideias, devem primeiro ser vistos, ouvidos e lembrados, e então transformados em coisas, reificados, por assim dizer – em recital de poesia, na página escrita ou no livro impresso, em pintura ou escultura, em algum tipo de registro, documento ou monumento. Todo o mundo factual dos assuntos humanos depende, para sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar da presença de outros que tenham visto e ouvido e que se lembram; e, em segundo lugar, da transformação do intangível na tangibilidade das coisas. Sem a lembrança e sem a reificação de que a lembrança necessita para sua realização – e que realmente a tornam, como afirmavam os gregos, a mãe de todas as artes –, as atividades vivas da ação, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade ao fim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido. A materialização que eles devem sofrer para que de algum modo permaneçam no mundo ocorre ao preço de que sempre a “letra morta” substitui algo que nasceu do “espírito vivo” e que realmente, durante um momento fugaz, existiu como “espírito vivo” Têm de pagar esse preço porque são de natureza inteiramente não mundana, e, portanto, requerem o auxílio de uma atividade de natureza completamente diferente; dependem, para sua realidade e materialização, da mesma manufatura [workmanship] que constrói as outras coisas do artifício humano.
A realidade e a confiabilidade do mundo humano repousam basicamente no fato de que estamos rodeados de coisas mais permanentes que a atividade por meio da qual foram produzidas, e potencialmente ainda mais permanentes que as vidas de seus autores. A vida humana, na medida em que é construtora-de-mundo [world-building], está empenhada em um constante processo de reificação; e o grau de mundanidade das coisas produzidas, cuja soma total constitui o artifício humano, depende de sua maior ou menor permanência no mundo.
Original
Distinguished from both, consumer goods and use objects, there are finally the “products” of action and speech, which together constitute the fabric of human relationships and affairs. Left to themselves, they lack not only the tangibility of other things, but are even less durable and more futile than what we produce for consumption. Their reality depends entirely upon human plurality, upon the constant presence of others who can see and hear and therefore testify to their existence. Acting and speaking are still outward manifestations of human life, which knows only one activity that, though related to the exterior world in many ways, is not necessarily manifest in it and needs neither to be seen nor heard nor used nor consumed in order to be real: the activity of thought.
Viewed, however, in their worldliness, action, speech, and thought have much more in common than any one of them has with work or labor. They themselves do not “produce,” bring forth anything, they are as futile as life itself. In order to become worldly things, that is, deeds and facts and events and patterns of thoughts or ideas, they must first be seen, heard, and remembered and then transformed, reified as it were, into things—into sayings of poetry, the written page or the printed book, into paintings or sculpture, into all sorts of records, documents, and monuments. The whole factual world of human affairs depends for its reality and its continued existence, first, upon the presence of others who have seen and heard and will remember, and, second, on the transformation of the intangible into the tangibility of things. Without remembrance and without the reification which remembrance needs for its own fulfilment and which makes it, indeed, as the Greeks held, the mother of all arts, the living activities of action, speech, and thought would lose their reality at the end of each process and disappear as though they never had been. The materialization they have to undergo in order to remain in the world at all is paid for in that always the “dead letter” replaces something which grew out of and for a fleeting moment indeed existed as the “living spirit.” They must pay this price because they themselves are of an entirely unworldly nature and therefore need the help of an activity of an altogether different nature; they depend for their reality and materialization upon the same workmanship that builds the other things in the human artifice.
The reality and reliability of the human world rest primarily on the fact that we are surrounded by things more permanent than the activity by which they were produced, and potentially even more permanent than the lives of their authors. Human life, in so far as it is world-building, is engaged in a constant process of reification, and the degree of worldliness of produced things, which all together form the human artifice, depends upon their greater or lesser permanence in the world itself.
ARENDT , H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§12]
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