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Reden und andere Zeugnisse eines Lebensweges

GA16: O pensar calculador não é um pensar meditativo

Serenidade

domingo 29 de janeiro de 2017, por Cardoso de Castro

Excerto da tradução portuguesa de Maria Madalena Andrade e Olga Santos, de Martin Heidegger, Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 11-14; francesa de André Préau  . Questions III et IV. Paris: Gallimard, p. 129-148; inglesa de John M. Anderson and E. Hans Freund  . Discourse on Thinking. New York: Harper & Row, 1966.

Andrade & Santos

Não nos iludamos. Todos nós, mesmo aqueles que pensam por dever profissional, somos muitas vezes pobres-em-pensamentos; ficamos sem-pensamentos com demasiada facilidade. A ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo atual, entra e sai em toda a parte. Pois, hoje toma-se conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se esquece. Do mesmo modo, os atos festivos sucedem-se uns aos outros. As comemorações tornam-se cada vez mais pobres-em-pensamentos. Comemorações e ausência-de-pensamentos andam intimamente associadas.

Contudo, mesmo quando estamos sem-pensamentos não renunciamos à nossa capacidade de pensar. Temos até uma necessidade absoluta dela, de um modo especial, sem dúvida, de tal forma que, na ausência-de-pensamentos, deixamos improdutiva a nossa capacidade de pensar. Não obstante, só pode ficar improdutivo aquilo que contém em si um solo (Grund  ) onde algo possa crescer, como por exemplo um campo agrícola. Uma auto-estrada, na qual nada cresce, nunca se pode transformar num baldio. Do mesmo modo que só podemos ficar surdos pelo facto de ouvirmos e envelhecer pelo facto de termos sido jovens, só podemos tornarmo-nos pobres-em-pensamentos ou mesmo sem-pensa-mentos em virtude de o homem possuir, no fundo (Grund) da sua essência, a capacidade de pensar, «o espírito e a razão», e em virtude de estar destinado a pensar. Só podemos perder ou, melhor, deixar de ter aquilo que, consciente ou inconscientemente, possuímos.

A crescente ausência-de-pensamentos assenta, por isso, num processo que corrói o âmago mais profundo do Homem actual: O Homem actual «está em fuga do pensamento». Esta fuga-aos-pensamentos é a razão da ausência-de-pensamentos. Contudo, tal fuga ao pensamento deriva do facto de o Homem não querer ver nem reconhecer essa mesma fuga. O Homem actual negará mesmo, redondamente, esta fuga ao pensamento. Afirmará o contrário. Dirá - e com pleno   direito - que em época alguma se realizaram planos tão avançados, se realizaram tantas pesquisas, se praticaram investigações de forma tão apaixonada, como actualmente. Com toda a certeza. Esse dispêndio de sagacidade e reflexão foi de extrema utilidade. Um tal pensamento será sempre indispensável. Mas convém precisar que será sempre um pensamento de um tipo especial.

A sua particularidade consiste no facto de que, quando concebemos um plano, investigamos ou organizamos uma empresa, contamos sempre com condições prévias que consideramos em função do objectivo que pretendemos atingir. Contamos, antecipadamente, com determinados resultados. Este cálculo caracteriza todo o pensamento planificador e investigador. Este pensamento continua a ser um cálculo, mesmo que não opere com números, nem recorra à máquina de calcular, nem a um dispositivo para grandes cálculos. O pensamento que calcula (das rechnende Denken  ) faz cálculos. Faz cálculos com possibilidades continuamente novas, sempre com maiores perspectivas e simultaneamente mais econômicas. O pensamento que calcula corre de oportunidade em oportunidade. O pensamento que calcula nunca pára, nunca chega a meditar. O pensamento que calcula não é um pensamento que medita (ein besinnliches Denken  ), não é um pensamento que reflecte (nachdenkt) sobre o sentido que reina em tudo o que existe.

Existem, portanto, dois tipos de pensamento, sendo ambos à sua maneira, respectivamente, legítimos e necessários: o pensamento que calcula e a reflexão (Nachdenken) que medita.

E a esta reflexão que nos referimos quando dizemos que o Homem atual foge do pensamento. Objetar-se-á, no entanto, que a pura reflexão não se apercebe que paira sobre a realidade, que ela perde o contacto com o solo, não serve para dar conta dos assuntos correntes, não contribui em nada para levar a cabo a praxis  .

E, por fim, diz-se que a pura reflexão, a meditação persistente, é demasiado «elevada» para o entendimento comum. Nesta desculpa a única coisa correta é que é verdade que um pensamento que medita surge tão pouco espontaneamente quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado. Carece de cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro verdadeiro ofício. Contudo, tal como o lavrador, também tem de saber aguardar que a semente desponte e amadureça.

Por outro lado, qualquer pessoa pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites. Porquê? Porque o Homem é o ser (Wesen  ) que pensa, ou seja, que medita (sinnende). Não precisamos portanto, de modo algum, de nos elevarmos às «regiões superiores» quando refletimos. Basta demorarmo-nos (verweilen  ) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora; aqui, neste pedaço de terra natal; agora, na presente hora universal. (p. 11-14)

Préau

Ne nous faisons pas d’ illusions. A nous tous il arrive assez souvent d’être pauvres en pensées: je dis « à nous tous », y compris ceux qui pour ainsi dire pensent par devoir professionnel; nous tous tombons trop facilement dans une indigence de pensées. L’ indigence de pensées est un hôte inquiétant qui s’insinue partout dans le monde d’aujourd’hui. Car aujourd’hui tout s’ apprend de la façon la plus rapide et la plus économique et, le moment d’ après, est oublié tout aussi rapidement. Ainsi une célébration est elle bientôt supplantée par une autre célébration. les fêtes commémoratives deviennent de plus en plus pauvres en pensées. Fête commémorative et absence de pensées se rencontrent et s’ accordent parfaitement.

Mais, à vrai dire, alors même que nous sommes dénués de pensées, nous ne renonçons pas au pouvoir que nous avons de penser. Nous en usons même nécessairement, quoique d’une manière étrange, en ce sens que dans l’absence de pensées nous laissons en friche notre aptitude à penser. Mais seul peut rester en friche un sol qui est en soi fertile, par exemple un champ. Une autoroute, sur laquelle rien ne pousse, ne sera jamais une jachère. De même que, si nous pouvons devenir sourds, c’ est uniquement parce que nous entendons, ou que, si nous pouvons vieillir, c’ est uniquement parce que nous avons été jeunes: de même, si nous pouvons devenir pauvres en pensées ou même dénués de pensées, c’ est seulement parce qu’au fond de son être l’ homme possède le pouvoir de penser, « l’ esprit et l’ enten-dement », et parce que sa destinée est de penser. Ce que nous possédons, sciemment ou non, c’ est cela seul que nous pouvons perdre ou dont nous pouvons nous défaire.

[136] Le manque croissant de pensées repose ainsi sur un processus   qui attaque la substance la plus intime de l’homme contemporain: celui ci est en fuite devant La pensée. Cette fuite devant la pensée explique notre manque de pensées. Mais elle présuppose à son tour que l’homme ne veuille ni la voir ni la reconnaître. L’ homme d’ au¬jourd’hui la niera même carrément. Il affirmera le contraire. Il fera valoir en quoi il aura parfaitement raison qu’on n’a jamais produit des plans aussi vastes, des études aussi variées, des recherches aussi passionnées qu’à notre époque. Aucun doute à ce sujet. Pareille dépense de sagacité et de réflexion est d’ un grand profit. Une pensée de cette sorte nous demeure indispensable. Mais… il reste aussi que c’est une pensée d’un caractère particulier.

Sa particularité consiste en ceci: lorsque nous dressons un plan, participons à une recherche, organisons une entreprise, nous comptons toujours avec des circonstances données. Nous les faisons entrer en ligne de compte dans un calcul qui vise des buts déterminés. Nous escomptons d’avance des résultats définis. Ce calcul caractérise toute pensée planifiante et toute recherche. Une pareille pensée ou recherche demeure un calcul, là même où elle n’ opère pas sur des nombres et nutilise ni simples machines à calculer ni calculatrices électroniques. La pensée qui compte calcule. Elle soumet au calcul des possibilités toujours nouvelles, de plus en plus riches en perspectives et en même temps plus économiques. La pensée qui calcule ne nous laisse aucun répit et nous pousse d’ une chance à la suivante. La pensée qui calcule ne s’arrête jamais, ne rentre pas en elle même. Elle n’ est pas une pensée médi¬tante, une pensée à la poursuite du sens qui domine dans tout ce qui est.

Il y a ainsi deux sortes de pensée, dont chacune est à la [137] fois légitime et nécessaire: la pensée qui calcule et la pensée qui médite.

Or c’est cette seconde pensée que nous avons en vue lorsque nous disons que l’ homme est en fuite devant la pensée. Malheureusement, objectera t on, la pure médita¬tion ne s’aperçoit pas qu’elle flotte au dessus de la réalité, qu’elle n’a plus de contact avec le sol. Elle ne sert à rien dans l’expédition des affaires courantes. Elle n’aide en rien aux réalisations d’ordre pratique.

Et l’on ajoute, pour terminer, que la pure et simple méditation, que la pensée lente et patiente est trop « haute » pour l’entendement ordinaire. De cette excuse il n’ y a qu’une chose à retenir, c’est qu’une pensée méditante est, aussi peu que la pensée calculante, un phénomène spontané. La pensée qui médite exige parfois un grand effort et requiert toujours un long entraînement. Elle réclame des soins encore plus délicats que tout autre authentique métier. Elle doit aussi, comme le paysan, savoir attendre que le grain germe et que l’épi mûrisse.

D’un autre côté chacun de nous, à sa manière et dans ses limites, peut suivre des voies de méditation. Pourquoi ? Parce que l’homme est l’être pensant, c’est à dire méditant. Il n’est donc aucunement nécessaire que la méditation nous élève dans des « régions supérieures ». Il suffit que nous nous arrêtions sur ce qui nous est proche et que nous recherchions ce qui nous est le plus proche: ce qui concerne chacun de nous, ici et maintenant. Ici: sur ce coin de terre natale. Maintenant: à l’ heure qui sonne   à l’horloge du monde. (p. 135-137)

Anderson & Freund

Let us not   fool ourselves. All of us, including those who think professionally, as it were, are often enough [45] thought-poor; we all are far too easily thought-less. Thoughtlessness is an uncanny visitor who comes and goes everywhere in today’s world. For nowadays we take in everything in the quickest and cheapest way, only to forget it just as quickly, instantly. Thus one gathering follows on the heels of another. Commemorative celebrations grow poorer and poorer in thought. Commemoration and thoughtlessness are found side by side.

But even while we are thoughtless, we do not give up our capacity to think. We rather use this capacity implicitly, though strangely: that is, in thoughtlessness we let it lie fallow. Still only that can lie fallow which in itself is a ground for growth, such as a field. An expressway, where nothing grows, cannot be a fallow field. Just as we can grow deaf only because we hear, just as we can grow old only because we were young; so we can grow thought-poor or even thought-less only because man at the core of his being has the capacity to think; has “spirit and reason” and is destined to think. We can only lose or, as the phrase goes, get loose from that which we knowingly or unknowingly possess.

The growing thoughtlessness must, therefore, spring from some process that gnaws at the very marrow of man today: man today is in flight from thinking. This flight-from-thought is the ground of thoughtlessness. But part of this flight is that man will neither see nor admit it. Man today will even flatly deny this flight from thinking. He will assert the opposite. He will say — and quite rightly — that there were at no time such far-reaching plans, so many inquiries in so many areas, research carried on as passionately as today. Of course. And this display of ingenuity and [46] deliberation has its own great usefulness. Such thought remains indispensable. But — it also remains true that it is thinking of a special kind.

Its peculiarity consists in the fact that whenever we plan, research, and organize, we always reckon   with conditions that are given. We take them into account with the calculated intention   of their serving specific purposes. Thus we can count on definite results. This calculation is the mark of all thinking that plans and investigates. Such thinking remains calculation even if it neither works with numbers nor uses an adding machine or computer. Calculative thinking computes. It computes ever new, ever more promising and at the same time more economical possibilities. Calculative thinking races from one prospect to the next. Calculative thinking never stops, never collects itself. Calculative thinking is not meditative thinking, not thinking which contemplates the meaning which reigns in everything that is.

There are, then, two kinds of thinking, each justified and needed in its own way: calculative thinking and meditative thinking.

This meditative thinking is what we have in mind when we say that contemporary man is in fhght-from-thinking. Yet you may protest: mere meditative thinking finds itself floating unaware above reality. It loses touch. It is worthless for dealing with current business. It profits nothing in carrying out practical affairs.

And you may say, finally, that mere meditative thinking, persevering meditation, is “above” the reach of ordinary understanding. In this excuse only this much is true, meditative thinking does not just happen by itself any more than [47] does calculative thinking. At times it requires a greater effort. It demands more practice. It is in need of even more delicate care than any other genuine craft. But it must also be able to bide its time, to await as does the farmer, whether the seed will come up and ripen.

Yet anyone can follow the path of meditative thinking in his own manner and within his own limits. Why? Because man is a thinking, that is, a meditating being. Thus meditative thinking need by no means be “high-flown.” It is enough if we dwell on what lies close and meditate on what is closest; upon that which concerns us, each one of us, here and now; here, on this patch of home ground; now, in the present hour of history. (p. 44-47)


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