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Wahl: A SEGUNDA TRÍADE: O POSSÍVEL E O PROJECTO — A ORIGEM, O AGORA, A SITUAÇÃO, O INSTANTE

quarta-feira 23 de março de 2022

Capítulo II da Parte II (As Categorias das Filosofias da Existência) do livro "As Filosofias da Existência", tradução portuguesa de I. Lobato e A. Torres, 1962.

A ideia de situação tem uma grande importância em todas as filosofias. Quando o possível toma lugar numa realidade, encontra-se numa situação. Mencionamos já o papel, pelo menos implícito, desta ideia no pensamento de Kierkegaard. O pensamento de Kierkegaard foi, mais do que qualquer outro, motivado por uma situação muito particular, visto que, como já vimos, foi em volta do problema posto a si próprio pelo noivado, pelas suas relações com Regina, que desenvolveu toda a sua filosofia. É, portanto, acerca da sua situação privada que medita Kierkegaard e é a partir desta situação privada que ele constitui o seu pensamento, e é a partir do seu pensamento que por sua vez se constitui toda a filosofia da existência dos seus sucessores.

Mas não há somente situações deste gênero. Há situações filosóficas. Ê aquilo de que toma consciência, por exemplo, Jaspers quando diz: não se pode filosofar hoje da mesma maneira que se filosofava antes desses dois grandes acontecimentos que constituem Kierkegaard e Nietzsche. Portanto, o filósofo está pelo menos duplamente em situação: há uma situação privada, há uma situação filosófica.

No pensamento de Gabriel Marcel  , a ideia de situação está igualmente presente, e entra na própria concepção que ele forma da metafísica. Não só nós nunca devemos tomar os problemas fora da situação em que se apresentam, mas também o domínio metafísico é aquele em que a nossa situação própria, a situação do arguente, é ela em si posta em questão, ela própria é um problema; e é assim pela própria ideia da implicação desta situação no problema, pelo facto de o problema se sobrepor ao arguente, que podemos ver o problema transformar-se em mistério e abrir-se o domínio da metafísica.

Conhece-se o lugar que a ideia de situação ocupa no pensamento de Sartre. Segundo ele, cada um dos nossos atos pode ser interpretado de maneira diferente, conforme se interprete em função da nossa liberdade ou em função da situação. E aqui estamos nós perante problemas difíceis de resolver, porque esta situação depende em grande parte da nossa liberdade. A liberdade é indubitavelmente o termo ultimo ao qual é preciso reduzir a situação, porque a situação só existe porque a nossa liberdade se choca com tais dados empíricos; estes dados empíricos só existem em relação aos fins que nos propomos; os obstáculos só são obstáculos porque nos propomos fins, e estes fins são postos, diz Sartre, pela nossa liberdade.

Convém, finalmente, focar o facto de haver o que Jaspers chama situações-limites. Perante o mal, o combate, o sofrimento e a morte, a nossa existência é forçada até ao extremo, chega a sentir-se no seu próprio limite, só se apercebe de que existe porque há outro termo com o qual ela acaba de se chocar e perante o qual ela deve finalmente calar-se: a transcendência.

Chegamos à ideia instante, e esta ideia está, num certo sentido, no centro do pensamento de Kierkegaard. Falamos desse instante de encarnação que é o centro da história. Mas, por outro lado, é no instante que podemos romper com os hábitos do pensamento conceptual e com os hábitos sociais para comunicar com este centro da história profunda. Neste ponto, Kierkegaard baseia-se ao mesmo tempo na meditação sobre o Parméniães, de Platão, cuja terceira hipótese assenta na ideia de instante, e no Evangelho, na ideia que nós ultrapassamos o tempo na aceitação da boa nova.

E da ligação do passado e do futuro, quando tomados nas suas profundidades autênticas, que nasce o instante, da mesma maneira que do futuro e do passado inautênticos nasce o agora. Mas ele faz-nos passar para além do plano em que estão situados o futuro e o passado: o instante, diz Kierkegaard, é o encontro do tempo e da eternidade; o instante, para Heidegger, é o momento em que na decisão adotada nos consideramos nós próprios em nós próprios e, juntando a origem e o projeto, tomamos a responsabilidade do que somos.

Poderíamos aproximar do que acabamos de dizer a teoria de Jaspers segundo a qual o que há de mais elevado na hierarquia das realidades é também o que há de mais precário, de mais frágil, e só se revela por súbitos clarões; estes clarões estriam momentaneamente a profunda noite; são eles essencialmente os portadores de valores; numa tal concepção, o valor está como na razão inversa da estabilidade.


Ver online : Jean Wahl