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Pensamento Ocidental Moderno

Jaspers: A Razão em Luta

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 23 de março de 2022

Razão e anti-razão em mosso tempo
Karl jaspers  
Trad. Álvaro Vieira Pinto
Conferências na Universidade de Heidelberg 1950

Textos de Filosofia Contemporânea
Instituto Superior de Estudos Brasileiros
1958

TERCEIRA CONFERÊNCIA: A RAZÃO EM LUTA

Há decênios que ouvimos dizer, em relação ao nazismo e ao comunismo: contra uma fé é necessário ter outra fé que se lhe oponha. O mundo livre está fraco, diz-se, porque nenhuma fé o sustenta.

Também na filosofia, muitas vezes, o pensamento racional parece desanimado. Podem fazer-se as seguintes reflexões:

1 . Atualmente parece como se a razão - este poder envolvente de toda comunicação, que, ainda, produz a compreensão mútua dos que são estranhos entre si - estivesse paradoxalmente compelida a um isolamento sem comunicação. É como se todas as potências do espírito, sem plano premeditado, e como por si mesmas, se aliassem, porque têm apenas uma coisa em comum, o ímpeto de fazer desaparecer a razão e colocar em seu lugar algum grandioso absurdo. Quem nega a possibilidade da autêntica comunicação em geral, encontra fundamentos na experiência e encontra aplausos ao afirmar, com heroísmo barato, a inevitável solidão de iodos os homens.

2. A existência da razão age como o ar, como se não existisse. Como seria de esperar que agisse? Mas é de fato o ar puro, de que se precisava como da coisa mais necessária à vida, e que contudo não se deseja, porque o que se quer é a atmosfera narcotizante e embriagadora. A filosofia, que apenas produz o ar em que é possível crescer, vir a si mesmo, experimentar-se a si mesmo, é também inapreensível como o ar. Nada ela dá, nenhuma ordem procede dela, não exige obediência alguma, nada oferece que se possa então tomar. Deseja que cada um pense por si e se torne si mesmo, ajuda a chegar a esse resultado, mas não o dá de presente. Comete a falta de piedade de supor a liberdade como possibilidade, quando o homem, secretamente, aspira a ser tomado pela mão - êle, que desejaria, sob o nome de liberdade, viver na ilusão de uma liberdade de obediência. A filosofia exige que se respire livremente, mas supõe que existam os que podem respirar. Será uma pretensão falsa, esta de que os homens devam ser livres e cada qual si mesmo? Não será isto a ilusão de uma época já vivida? Não estaremos caminhando para outra humanidade, nova e melhor, na qual será verdade que ninguém mais é si mesmo, mas cada um é todos e todos são cada um, e em que individualidade e personalidade fazem parte dos trastes do passado e das suas auto-ilusões?

Deste ponto de vista, o filosofar da razão é hoje invectivado ou amavelmente posto de lado, como fora de moda, como "Iluminismo" (Aukfklärertum), como "século XVIII", como "tradicional", como "inatual".

3. Uma consideração histórica parece mostrar que todos os grandes movimentos de fé tiveram em sua raiz algo absurdo e justamente devido a esse absurdo é que alcançaram a sua grande influência. A razão encontra-se sempre diante do fato de que os crentes, que não são mais capazes de escutar, não aceitam argumento algum, sustentam inabalavelmente o absurdo como pressuposto intangível - e realmente parecem crer.

Com estas e outras reflexões, a razão nos parece, em vez de estar somente desiludida, ter-se tornado desanimada.

Esse abatimento, ou já é mesmo expressão de uma fé na liberdade - esta fé não dogmática, própria da razão - em via de dissolver-se em simples pensamento do entendimento. E então, na consciência da própria vacuidade, o homem desejaria criar uma fé política. Mas em vão.

Ou este desânimo não é propriamente um desânimo: se a fé na liberdade, por falta de ar - na ausência de ressonância - respira demasiadamente pouco, então, apesar de, no fundo, ter confiança em si, não confia mais na sua realização atual no presente mundo.

Contra o desânimo só há um remédio: quem quer seriamente sair do mundo das nebulosidades, conhece, por sua liberdade própria, a experiência fundamental, a qual nunca é dado da natureza; possui uma certeza que nenhuma garantia objetiva sustenta; segue o seu caminho com a consciência de servir à verdade sem possuí-la.


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