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Pensar e Errar

Ernildo Stein (2015:83-85) – a fenomenologia hermenêutica

Capítulo 1 – A Filosofia - O Pensar

quinta-feira 8 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

A fenomenologia hermenêutica não cai nem no impasse de quem quer recuperar a totalidade do mundo vivido, porque aceita a faticidade, nem cai também num impasse de pretender um sistema absoluto, como Husserl   o ambicionava.

[…] No momento em que se quer pensar a totalidade não reduzida do mundo, quer se pensar o mundo na medida em que ele é; nós nos confrontamos [84] com o problema da compreensão do ser. Essa compreensão do ser, por sua vez, dá-se no Dasein  , e, por isso, ela não é uma compreensão que pode ser atingida por meio da representação e da consciência. Trata-se de uma compreensão que pode ser descrita ao modo de se dar no mundo. A ideia de ser-no-mundo, a ideia de mundo, está ligada a esta ideia da compreensão do ser, que nunca pode se esgotar como totalidade absoluta, mas que sempre é uma compreensão que se dá nas condições do Dasein. Como as condições do próprio Dasein fazem com que todos os entes com os quais ele entra em contato percam a positividade, a analítica existencial procura dar conta desse espaço para onde Dasein e mundo elevam os entes simplesmente existentes, os entes à mão ou entes disponíveis a uma dimensão ontológica. Isso pode ser feito a partir de uma fenomenologia que parte da ideia da compreensão do ser e da compreensão do Dasein enquanto ele é. Assim, não fica mais algo fora, que sustenta o Dasein sem que ele se pense enquanto é.

O espaço fenomenológico de um caráter transcendental   que não nos é dado, no sentido das teorias da representação e da consciência, é um transcendental no sentido de que, desde que somos, nós nos compreendemos e compreendemos o ser. Não se trata mais de buscar uma identidade final num sistema. Com a ideia de Dasein, a ideia de mundo e de que todos os entes positivos participam desta condição transcendental, estamos sempre no mundo da diferença. Isso significa: não na diferença entre objetos, mas na diferença entre ser e ente. Essa diferença constitui o espaço transcendental, onde se dá também o círculo hermenêutico, o círculo da compreensão, compreensão do Dasein e compreensão do ser. Daí nasce a fenomenologia hermenêutica, com a tarefa de se explicitar, por meio da analítica existencial e dos existenciais, o desdobramento do conceito de mundo. Heidegger, em Ser e tempo  , aborda (1) o universo da afecção, o universo da Befindlichkeit   da passividade e da receptividade; e (2) o mundo da compreensão (Verstehen  ), que é o mundo da espontaneidade e da atividade. São duas dimensões que são descritas como modos de ser, como existenciais do ser-aí. Esses dois modos de ser (afecção e compreensão) vêm substituir aquilo que, no âmbito da representação e da consciência, denominamos de sensibilidade e inteligibilidade. Isso, no entanto, é descrito num outro nível: o modo de ser do [85] Dasein, seu modo de ser no mundo. Esse modo de ser-em do ser-no-mundo, ligado ao problema do mundo, é a dimensão em que se enraiza toda teoria do conhecimento.

Então, não há motivo para construir um espaço vazio onde o sentido se constitui. O sentido já aconteceu neste espaço da relação entre afecção e compreensão e dos existenciais que surgem com eles. Temos a faticidade, a existência e a decaída, e estas, por sua vez, resultam das características do cuidado: já-ser-adiante-de-si-mesmo (existência), já-sempre-no-mundo (faticidade), junto-das-coisas (decaída). Sobre elas propaga-se a tríplice dimensão da temporalidade: a existência, o futuro; a facticidade, o passado, e a decaída, o presente. Temos, então, uma espécie de cercamento das condições transcendentais, nas quais desde sempre o Dasein é ser-no-mundo. Este é o chão primeiro sobre o qual qualquer trabalho de redução transcendental, de representação ou de consciência, se desdobra. A fenomenologia hermenêutica tem como tarefa a descrição deste universo. Tudo isso não deve ser compreendido como uma vitória de Heidegger, com sua fenomenologia hermenêutica, sobre a fenomenologia transcendental, porque aquela desiste de uma ideia de um sistema absoluto. Ela desiste da possibilidade de se recuperar transcendentalmente o mundo vivido, porque a faticidade sempre é algo para trás, da qual nunca conseguimos recuar, tendo de desistir da ideia de recuperar tudo num processo de redução. A fenomenologia hermenêutica não cai nem no impasse de quem quer recuperar a totalidade do mundo vivido, porque aceita a faticidade, nem cai também num impasse de pretender um sistema absoluto, como Husserl   o ambicionava.


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