GA5:106-112 – sujeito – subiectum – hypokeimenon

Borges-Duarte

Como é que se chega, de todo, a que o ente se interprete, de um modo acentuado, como subjectum, e a que, consequentemente, o subjectivo alcance um domínio?

Pois até Descartes, e ainda dentro da sua metafísica, o ente é, na medida em que é um ente, um sub-jectum (ύπο-κείμενον), algo subjacente por si mesmo, que, enquanto tal, está ao mesmo tempo na base das suas propriedades permanentes e dos seus estados que mudam. A primazia de um sub-jectum destacado, porque, numa perspectiva essencial, incondicionado (o que está na base enquanto fundamento), surge da reivindicação pelo homem de um fundamentum absolutum inconcussum veritatis (de um fundamento inabalável da verdade no sentido da certeza, fundamento esse que repouse em si mesmo). Porquê e como é que esta reivindicação chega à sua decisiva validade? A reivindicação surge daquela libertação do homem na qual ele se liberta da vinculação à verdade da revelação cristã e à doutrina da (131) Igreja, para uma legislação que se põe com base em si mesma e que é para si mesmo. Através desta libertação, é colocada de novo a essência da liberdade, isto é, o vínculo a algo que vincula. Mas porque, segundo esta liberdade, é o próprio homem que se liberta que coloca aquilo que vincula, este pode doravante ser determinado de diferentes modos. Aquilo que vincula pode ser a razão humana e a sua lei, ou o ente instituído e ordenado objectivamente a partir de tal razão, ou aquele caos que ainda não foi ordenado e que só pela objectivação pode ser domado, exigindo a dominação (Bewältigung) numa era.

No entanto, esta libertação liberta-se sempre ainda, sem o saber, do vínculo à verdade da revelação, com base na qual o homem tem a certeza e a garantia da salvação da sua alma. A libertação da certeza da salvação, de acordo com a revelação, teria, por isso, de ser em si uma libertação para uma certeza, na qual o homem garantisse o verdadeiro enquanto aquilo que fosse sabido pelo seu próprio saber. Tal apenas seria possível, se o homem, que se libertava, garantisse a certeza do que se pode saber. No entanto, tal só poderia acontecer na medida em que o homem decidisse, a partir de si e para si, aquilo que deve ser sabido por ele, e o que deve significar saber e garantia do que se sabe, isto é, o que deve significar certeza. A tarefa metafísica de Descartes foi a de criar o fundamento metafísico para a libertação do homem, libertação para a liberdade enquanto auto-determinação certa de si mesma. Contudo, este fundamento não apenas tinha ele mesmo de ser um fundamento certo, mas, porque estava impedida qualquer medida a partir de outras áreas, tinha ao mesmo tempo de ser de tal modo que fosse colocada por ele a essência da liberdade reclamada como auto-certeza. No entanto, tudo aquilo que é certo a partir de si mesmo tem de assegurar conjuntamente como certo, ao mesmo tempo, aquele ente para o qual tal saber deve ser certo e através do qual deve (132) ser assegurado tudo o que se pode saber. O fundamentum, o fundamento desta liberdade, que lhe está na base, o subjectum tem de ser algo certo que baste às exigências essenciais mencionadas. Torna-se necessário um subjectum destacado relativamente a todas estas perspectivas. O que é este algo certo que forma o fundamento e dá o fundamento? O ego cogito (ergo) sum. O que é certo é uma proposição que enuncia que ao mesmo tempo (ao mesmo tempo e com igual duração) com o pensar do homem ele próprio está indubitavelmente co-presente, isto é: está dado conjuntamente a si mesmo. Pensar é re-presentar, referência representadora ao que é representado (idea enquanto perceptio).

Representar quer aqui dizer pôr diante de si algo a partir de si, e assegurar aquilo que é posto enquanto tal. Este assegurar tem de ser um calcular, porque só a calculabilidade garante, à partida e constantemente, estar certo do que se está para representar. O representar já não é o percepcionar do que-está-presente, a cujo não-estar-encoberto pertence o próprio percepcionar, e isto como um tipo próprio de vir-à-presença que se dirige ao que-está-presente não-encoberto. O representar já não é o pôr-se-a-descoberto para…, mas o agarrar e conceber de… Não é o que-está-presente que vigora, mas o ataque que domina.

O representar é agora, de acordo com a nova liberdade, um avançar, a partir de si, para a área ainda por assegurar do que está seguro. O ente já não é o que-está-presente, mas só o que está posto em frente no representar, o que é ob-jectivo (Gegen-ständige). Re-presentar é ob-jectivação que avança, que doma. O representar empurra tudo para dentro da unidade do que é assim objectivo. O representar é coagitatio.

Qualquer relação a algo, o querer, o tomar uma posição, o sentir é, desde logo, representador, é cogitans, o que se traduz por “pensante”. Daí que Descartes possa cobrir todos os modos da voluntas e do affectus, todas as actiones e passiones, com o nome, à partida estranho, de cogitatio. No (133) ego cogito sum, o cogitare é compreendido neste sentido essencial e novo. O subjectum, a certeza fundamental, é o ser representado conjuntamente — sempre assegurado — do homem representador com o ente humano ou não humano representado, isto é, com o que é objectivo. A certeza fundamental é o sempre indubitavelmente representável e representado me cogitare = me esse. Esta é a equação fundamental de todo o calcular de um representar que se assegura a si mesmo. Nesta certeza fundamental, o homem está seguro de que ele está assegurado, enquanto re-presentador de todo o re-presentar e, assim, enquanto âmbito de todo o estar-representado, enquanto âmbito de qualquer certeza e verdade, isto é, está seguro de que ele é. É só porque o homem é assim necessariamente co-representado, na certeza fundamental (no fundamentum absolutum inconcussum do me cogitare = me esse), é só porque o homem, que se liberta para si mesmo, pertence necessariamente ao subjectum desta liberdade, é só por isso que o homem pode, e que este mesmo homem tem de se tornar no ente destacado, num subjectum que, na perspectiva do primeiro ente verdadeiro (isto é, certo), tem a primazia entre todos os subjecta. Que na equação fundamental da certeza e, então, no subjectum autêntico seja mencionado o ego, não quer dizer que o homem seja agora determinado de um modo egóico e egoísta. Tal diz apenas isto: ser sujeito torna-se agora a distinção do homem enquanto ser pensante-representador. O eu do homem é posto ao serviço deste subjectum. A certeza que está na base deste é, enquanto tal, certamente subjectiva, isto é, vigorante na essência do subjectum, mas não egoísta. A certeza é vinculativa para cada eu enquanto tal, isto é, enquanto subjectum. Do mesmo modo, tudo aquilo que quer ser comprovado como sendo seguro e, deste modo, como algo que é através da objectivação representadora, é vinculativo para qualquer um. Contudo, a esta objectivação, que, ao mesmo tempo, permanece a decisão (134) sobre aquilo que deve poder valer como objecto, nada se pode furtar. A essência da subjectividade do subjectum, e do homem enquanto sujeito, pertence a desobstrução incondicional do âmbito da objectivação possível, e do direito para a decisão sobre esta.

Esclareceu-se também agora em que sentido o homem, enquanto sujeito, quer ser e tem de ser medida e centro do ente, isto é, agora, medida e centro dos objectos1.

O homem já não é agora μέτρον no sentido do comedimento do percepcionar ao respectivo círculo do não-estar-encoberto do que-está-presente, face ao qual cada homem está sempre presente. Enquanto subjectum, o homem é a co-agitatio do ego. O homem funda-se a si mesmo como medida para todas as escalas com as quais se mede (se calcula) aquilo que pode valer como certo, isto é, como verdadeiro, como algo que é. A liberdade é nova enquanto liberdade do subjectum. Nas Meditationes de prima philosophia, a libertação do homem para a nova liberdade é trazida ao seu fundamento, ao subjectum. A libertação do homem moderno não só não começa com o ego cogicogito ergo sum, nem a metafísica de Descartes é apenas a metafísica posteriormente fornecida para esta liberdade, que, portanto, seria apenas um anexo exterior, no sentido de uma ideologia. Na co-agitatio, o representar reúne tudo o que é objectivo no conjunto do estar-representado. O ego do cogiatare encontra agora a sua essência em estar junto do estar-representado, em assegurar-se dele na con-scientia. Esta é a reunião representadora daquilo que é objectivo com o homem representador, no círculo do estar-representado guardado por ele. Tudo o que-está-presente recebe a partir (135) deste estar-representado o sentido e o tipo do seu estar-em-presença, nomeadamente o da presença (Praesenz) na repraesentatio. A con-scientia do ego, enquanto subjectum da coagitatio, determina o ser do ente enquanto subjectividade do subjectum assim destacado.

As Meditationes de prima philosophia fornecem o modelo para a ontologia do subjectum a partir da visão da subjectividade determinada enquanto conscientia. O homem tornou-se o subjectum. Daí que ele possa determinar e preencher a essência da subjectividade, sempre de acordo com o modo como ele se concebe e quer a si mesmo. O homem enquanto ser racional do tempo do iluminismo não é menos sujeito que o homem que se concebe como nação, que se quer como povo, que se cultiva selectivamente como raça e, finalmente, que se autoriza como senhor do globo terrestre. Em todas estas posições fundamentais da subjectividade é então também possível um tipo diferente da egoidade e do egoísmo, porque o homem permanece determinado constantemente como eu e tu, como nós e vós. O egoísmo subjectivo, no qual, na maioria das vezes sem o saber, o eu é determinado de antemão como sujeito, pode ser derrubado através do alinhamento do egóico ao nós. Através disso, a subjectividade só ganha em poder. No imperialismo planetário do homem organizado tecnicamente, o subjectivismo do homem atinge o seu mais elevado cume, a partir do qual ele se estabelecerá na planície da homogeneidade organizada, e aí se instalará. Esta homogeneidade torna-se o mais seguro instrumento do domínio completo, isto é, do domínio técnico sobre a Terra. A liberdade moderna da subjectividade é completamente absorvida na objectividade que lhe é adequada. O homem não pode abandonar por si próprio este destino (Geschick) da sua essência moderna, nem quebrá-lo por uma sentença soberana (Machtspruch). Mas o homem pode pensar, pensando antecipadamente, que o ser-sujeito da (136) humanidade nem jamais foi a única possibilidade da essência inicial do homem histórico, nem alguma vez o será.

Uma sombra de nuvem fugaz sobre uma terra encoberta, tal é o obscurecimento que aquela verdade, enquanto certeza da subjectividade, preparada pela certeza de salvação do cristianismo, estende sobre um acontecimento de apropriação (Ereignis) cuja experiência lhe permanece recusada. (p. 131-137)

Brokmeier

Original

  1. N.T. No original alemão, Heidegger repete duas palavras, Objekte e Gegenstände, a primeira de origem latina (Ob-jekt, o que está lançado diante de nós) e a segunda de origem germânica (Gegen-stand, o que está contra nós) que só podem ser traduzidas por objectos.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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