O espírito não é, porém, só a vontade activa como substância; ele foi também pensado, sobretudo desde Descartes e ao longo da Modernidade, como consciência de si, quer dizer, como sujeito e como intelecto, razão, entendimento, que é superior ou do mesmo nível ou oposto à Alma enquanto princípio de vida, no sentido meramente vital e corpóreo (veja-se a interpretação de Nietzsche feita por Klages: o espírito como o adversário da alma; espírito como “entendimento”; de forma que é esquecido o elemento “pneumático” e “espiritual”, sobre o qual Nietzsche estava bastante bem informado). A essência do espírito é a vontade originária, que se quer a si mesma, e que é pensada, ora como “substância”, ora como “sujeito”, ora como unidade de ambos. Devemos agora recordar-nos, abreviadamente, das várias representações que tomou a essência do espírito, mais ou menos correntes, mas sempre dominantes — que são as da metafísica — para podermos, então, atender, ao que significa o facto de Hölderlin pensar a essência do espírito de um modo totalmente diverso.
O que é, para Hölderlin, um espírito? Em que consiste, para ele, o espiritual? O que quer dizer: concentra-se-nos tudo no espiritual?
Mais ou menos da mesma altura da sentença citada é um apontamento filosófico de Hölderlin, de onde se extraem o seguinte trecho:
«Nem só por si próprio, nem apenas a partir dos objectos que o rodeiam, pode o Homem experimentar que, mais do que um processo maquinal, haja um espírito, um Deus no mundo, mas [só pode mesmo experimentá-lo] numa relação sublime que se eleve acima das necessidades em que ele está com tudo aquilo que o rodeia.» (”Über die Religion ”, IN, 263)
Que relação sublime é essa em que o homem está com aquilo que o rodeia? Na experiência desta relação experimentamos o espírito e o espiritual. Hölderlin não diz nada mais pormenorizado sobre esta relação — por isso devemos nós, indo ao seu encontro, procurar pensá-la mais claramente. Segundo Hölderlin, a relação não diz respeito aos objectos, não é a relação do sujeito aos objectos, a qual [é], na maioria das vezes, determinada pelo [domínio] das necessidades [Notdurft], contando que os objectos são aquilo que elaboramos e utilizamos como fins e metas para satisfazer as carências [Bedürfnisse] que a necessidade [Not ] [1] desperta em nós.
O homem mantém uma relação com aquilo que o rodeia, relação que é sublime, elevando-se sobre a relação do “sujeito” com o “objecto”. «Sublime», aqui, não significa apenas “estar suspenso sobre”, mas alcançar o cume, acerca do qual Hölderlin disse uma vez que o Homem — e, sobretudo, o poeta — poderia “cair” nele. A altura deste cume do sublime é, por isso, em si mesma e simultaneamente, a profundidade. A relação sublime dá para aquilo que excede todos os homens e objectos e, que, ao mesmo tempo, suporta tudo isso. E o que é, então? Hölderlin não o diz; é por isso que estamos nós incumbidos de o pensar expressamente, isto é, de ir para além do dito poético. Àquilo que, de costume, nos rodeia, aos objectos singulares (= os “objectos”), chamamos também o ente, aquilo que é. Mas este “é” do próprio ente não é em si mesmo nenhum ente, mas aquilo que deixa todo o ente [Seiendes ] ser um Ente [Seyendes] e, por isso, o envolve e o protege. Chamamos-lhe o Ser [Seyn ]. A relação sublime em que o homem se encontra é a relação do Ser ao homem, de tal modo que o próprio Ser é a relação que liga a si a essência do homem, como aquela essência que está nessa relação e, estando aí, a guarda e a habita. No aberto desta relação do Ser com a essência do homem, experimentamos o “espírito” — é ele que reina a partir do Ser e, presumivelmente, para o Ser.
A sentença de Hölderlin diz: «concentra-se-nos tudo no espiritual». Isso quer, agora, dizer: dá-se uma concentração, isto é, uma reunião da relação ao Ser com a nossa essência, e essa relação é o centro, o meio, que está em todo o lado, tal como o centro de um círculo, cuja periferia não se encontra em lado nenhum.
«Concentra-se-nos tudo no espiritual» — isto não é nenhuma constatação histórica dos factos de uma época passada; mas um dar nome, em pensamento e em poesia, a um acontecimento encoberto [verborgenes Ereignis ] no próprio Ser, que avança bem longe na direcção do porvir e que só poucos, ou talvez só apenas aquele que o diz e pensa, possam pressentir.