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Zum Ereignis-Denken [GA73.1]

GA73T1:875-877 – o espírito

Tr. Ana Falcato

quinta-feira 16 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

Que relação sublime é essa em que o homem está com aquilo que o rodeia? Na experiência desta relação experimentamos o espírito e o espiritual.

O espírito não é, porém, só a vontade activa como substância; ele foi também pensado, sobretudo desde Descartes   e ao longo da Modernidade, como consciência de si, quer dizer, como sujeito e como intelecto, razão, entendimento, que é superior ou do mesmo nível ou oposto à Alma enquanto princípio de vida, no sentido meramente vital e corpóreo (veja-se a interpretação de Nietzsche   feita por Klages: o espírito como o adversário da alma; espírito como “entendimento”; de forma que é esquecido o elemento “pneumático” e “espiritual”, sobre o qual Nietzsche estava bastante bem informado). A essência do espírito é a vontade originária, que se quer a si mesma, e que é pensada, ora como “substância”, ora como “sujeito”, ora como unidade de ambos. Devemos agora recordar-nos, abreviadamente, das várias representações que tomou a essência do espírito, mais ou menos correntes, mas sempre dominantes — que são as da metafísica — para podermos, então, atender, ao que significa o facto de Hölderlin   pensar a essência do espírito de um modo totalmente diverso.

O que é, para Hölderlin, um espírito? Em que consiste, para ele, o espiritual? O que quer dizer: concentra-se-nos tudo no espiritual?

Mais ou menos da mesma altura da sentença citada é um apontamento filosófico de Hölderlin, de onde se extraem o seguinte trecho:

«Nem só por si próprio, nem apenas a partir dos objectos que o rodeiam, pode o Homem experimentar que, mais do que um processo maquinal, haja um espírito, um Deus no mundo, mas [só pode mesmo experimentá-lo] numa relação sublime que se eleve acima das necessidades em que ele está com tudo aquilo que o rodeia.» (”Über die Religion  ”, IN, 263)

Que relação sublime é essa em que o homem está com aquilo que o rodeia? Na experiência desta relação experimentamos o espírito e o espiritual. Hölderlin não diz nada mais pormenorizado sobre esta relação — por isso devemos nós, indo ao seu encontro, procurar pensá-la mais claramente. Segundo Hölderlin, a relação não diz respeito aos objectos, não é a relação do sujeito aos objectos, a qual [é], na maioria das vezes, determinada pelo [domínio] das necessidades [Notdurft], contando que os objectos são aquilo que elaboramos e utilizamos como fins e metas para satisfazer as carências [Bedürfnisse] que a necessidade [Not  ] [1] desperta em nós.

O homem mantém uma relação com aquilo que o rodeia, relação que é sublime, elevando-se sobre a relação do “sujeito” com o “objecto”. «Sublime», aqui, não significa apenas “estar suspenso sobre”, mas alcançar o cume, acerca do qual Hölderlin disse uma vez que o Homem — e, sobretudo, o poeta — poderia “cair” nele. A altura deste cume do sublime é, por isso, em si mesma e simultaneamente, a profundidade. A relação sublime dá para aquilo que excede todos os homens e objectos e, que, ao mesmo tempo, suporta tudo isso. E o que é, então? Hölderlin não o diz; é por isso que estamos nós incumbidos de o pensar expressamente, isto é, de ir para além do dito poético. Àquilo que, de costume, nos rodeia, aos objectos singulares (= os “objectos”), chamamos também o ente, aquilo que é. Mas este “é” do próprio ente não é em si mesmo nenhum ente, mas aquilo que deixa todo o ente [Seiendes  ] ser um Ente [Seyendes] e, por isso, o envolve e o protege. Chamamos-lhe o Ser [Seyn  ]. A relação sublime em que o homem se encontra é a relação do Ser ao homem, de tal modo que o próprio Ser é a relação que liga a si a essência do homem, como aquela essência que está nessa relação e, estando aí, a guarda e a habita. No aberto desta relação do Ser com a essência do homem, experimentamos o “espírito” — é ele que reina a partir do Ser e, presumivelmente, para o Ser.

A sentença de Hölderlin diz: «concentra-se-nos tudo no espiritual». Isso quer, agora, dizer: dá-se uma concentração, isto é, uma reunião da relação ao Ser com a nossa essência, e essa relação é o centro, o meio, que está em todo o lado, tal como o centro de um círculo, cuja periferia não se encontra em lado nenhum.

«Concentra-se-nos tudo no espiritual» — isto não é nenhuma constatação histórica dos factos de uma época passada; mas um dar nome, em pensamento e em poesia, a um acontecimento encoberto [verborgenes Ereignis  ] no próprio Ser, que avança bem longe na direcção do porvir e que só poucos, ou talvez só apenas aquele que o diz e pensa, possam pressentir.


Ver online : Zum Ereignis-Denken [GA73.1]


[1O sentido fundamental de Not é o de “necessidade”, na acepção existencial de miséria, penúria ou urgência, passar necessidade. Heidegger inicia aqui uma intensa exploração da riqueza semântica do termo, que começa por emparentar com Bedürfnis (aqui traduzido por “carência”), cuja raiz está presente em Notdurft (traduzido, em plural, como “necessidades”, para acentuar o carácter de urgência primária e compulsiva). O comentário, que deverá aclarar expressamente a sentença-mote de Hölderlin, trata de pôr a descoberto todas as variantes de sentido desse radical, que conceptualmente se estreita, mais adiante, na necessidade lógica e práxica, Notwendigkeit, que induz o virar (wenden) da necessidade em liberdade.