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GA27:§36 – Transcendência qua compreensão de ser como jogo

quarta-feira 29 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

Empregamos o termo “jogo” em um sentido originário e ao mesmo tempo amplo. Tomamos a transcendência como jogo: a transcendência mesma é considerada inicialmente em vista do momento da compreensão de ser. Com isso, essa compreensão de ser também tem o caráter de jogo. Ao falarmos de ser-no-mundo como jogar, não queremos dizer aqui um jogar um jogo no sentido vulgar, apenas transposto e como que ampliado para todo o ser-aí; nem visamos tampouco um jogar com o ente ou mesmo um jogar com o ser. Ao contrário, o que está em questão aqui é jogar o ser, pôr o ser em jogo, formá-lo nesse jogo. É muito mais importante tomar o acontecimento específico e sua mobilidade, a mobilidade que temos em vista em geral com o termo “jogar”.

A interpretação do que significa o termo “mundo” exige que coloquemos o fenômeno mundo em uma conexão interna com o próprio ser-aí e visualizemos uma constituição ontológica do ser-aí, uma estrutura que denominamos previamente o ser-no-mundo. Todavia, essa constituição fundamental do ser-aí é ao mesmo tempo a estrutura fundamental da transcendência, que devemos reconhecer.

A transcendência aproximou-se de nós por meio da clarificação da compreensão de ser, isto é, do fato fundamental de que no comportamento [336] com o ente já nos alçamos para além dele e somente nessa medida podemos compreendê-lo como ente. Caracterizamos essa compreensão de ser como transcendência, com a restrição de que a transcendência não é determinada por completo mediante a compreensão de ser. Não obstante, a compreensão de ser deve nos servir agora como fio condutor para interpretar o ser-no-mundo e, com isso, o fenômeno da visão de mundo, assim como para concebê-los como um momento essencial da própria filosofia.

A fim de pôr em obra uma tal interpretação é necessário que, mais do que até aqui, nos desviemos do modo como até agora foi colocado o problema da história da metafísica e da filosofia; e, para tornar esse passo compreensível, tentei elucidar previamente um fenômeno curioso que à primeira vista parece pouco apropriado para caracterizar o fenômeno fundamental do ser-aí, a transcendência: o fenômeno ser-no-mundo ou o mundo como jogo. Tal como a menção ao uso linguístico kantiano já indicou, o termo não é arbitrário.

O fato de considerarmos a vida, o ser-no-mundo, o próprio mundo como jogo tem suas razões. Tudo depende aqui de irmos além do termo vulgar e sua significação, mas não de uma maneira tal que formulemos para nós um conceito de mundo e o apliquemos ao ser-aí, no sentido de que o ser-aí seria um jogo ampliado, em contraposição aos jogos e brincadeiras habituais. Mais que isso, é o fenômeno do jogo que deve nos dar a indicação para a unicidade de um acontecimento que no fundo determina a transcendência.

Podemos uma vez mais resumir em quatro pontos os caracteres fundamentais do que queremos expor como jogo, nomeadamente, para acentuar agora a unicidade e a mobilidade do fenômeno.

1. Jogar é um livre formar [Bilden  ] que sempre tem, a cada vez, a sua própria consonância [Einstimmigkeit] interna, na medida em que ele a forma para si em meio ao jogar.

2. Com isso, apesar de ser um livre formar, jogar é precisamente uma vinculação [Bindung]. Não é uma estrutura [Gebilde] solta, mas constitui o ato formador de se vincular ao e no próprio formar que consiste em um jogo.

3. Desse modo, jogar nunca é um comportamento [Verhalten  ] em relação a um objeto. Jogar não é absolutamente um mero comportamento em relação a, mas jogar o jogo e o jogo do jogar são sobretudo um acontecimento [Geschehen  ] originário e mostram-se indissociáveis.

4. Nesse sentido, denominamos jogar o ser-no-mundo, a transcendência que caracterizamos inicialmente como a ultrapassagem [Uberstieg] do ente. O ser-no-mundo já sempre se lançou para além do ente e o envolveu em seu jogo; nesse jogar, forma-se pela primeiríssima vez o espaço [Raum  ] – e espaço, mesmo no sentido real – no interior do qual encontramos o ente.


Ver online : Einleitung in die Philosophie [GA27]


[HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. Tr. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 336-337]