veritas

O verdadeiro, seja uma coisa verdadeira ou uma proposição verdadeira, é aquilo que está de acordo, que concorda. Ser verdadeiro e verdade significam aqui: estar de acordo, e isto de duas maneiras: de um lado, a concordância (Einstimmigkeit) entre uma coisa e o que dela previamente se presume, e, de outro lado, a conformidade entre o que é significado pela enunciação e a coisa.

Este duplo caráter da concordância traz à luz a definição tradicional da essência da verdade: Veritas est adaequatio rei et intellectus. Isto pode significar: Verdade é a adequação da coisa com o conhecimento. Mas pode se entender também assim: Verdade é a adequação do conhecimento com a coisa. Ordinariamente a mencionada definição é apenas apresentada pela fórmula: Veritas est adaequatio intellectus ad rem. Contudo, a verdade assim entendida, a verdade da proposição, somente é possível quando fundada na verdade da coisa, a adaequatio rei ad intellectum. Estas duas concepções da essência da veritas significam um conformar-se com… (Sichrichten nach) e pensam, assim, a verdade como conformidade (correção = Richtigkeit).

Todavia, uma destas concepções não resulta simplesmente da conversão da outra. Pelo contrário, intellectus e res são pensados de modo diferente, num caso e noutro. Para reconhecer isto é preciso que conduzamos a expressão corrente do conceito ordinário de verdade à sua origem imediata (medieval). A veritas, interpretada como adaequatio rei ad intellectum, não exprime ainda o pensamento transcendental de Kant, que é posterior e somente se tornará possível a partir da essência humana enquanto subjetividade, segundo a qual “os objetos se conformam com nosso conhecimento”. Mas a fórmula acima decorre da fé cristã e da ideia teológica segundo as quais as coisas, em sua essência e existência, na medida em que, como criaturas singulares (ens creatum), correspondem à ideia previamente concebida pelo intellectus divinus, isto é, pelo espírito de Deus. Assim, elas concordam com a ideia e com ela se conformam, sendo neste sentido “verdadeiras”. Também o intellectus humanus é um ens creatum. Como faculdade concedida por Deus, o intelecto humano deve adequar-se à ideia. Ora, o intelecto somente é conforme com a ideia porque realiza a adequação do que pensa com a coisa, tendo esta que ser conforme com a ideia. A possibilidade da verdade do conhecimento humano se funda, se todo ente é “criado”, sobre o fato de a coisa e a proposição serem igualmente conformes com a ideia e serem, por isso, coordenados um ao outro a partir da unidade do plano da criação. A veritas enquanto adaequatio rei (creandae) ad intellectum (divinum) garante a veritas enquanto adaequatio intellectus (humani) ad rem (creatam). Veritas significa por toda parte e essencialmente a convenientia e a concordância dos entes entre si que, por sua vez, se fundam sobre a concordância das criaturas com o criador, “harmonia” determinada pela ordem da criação.

Mas esta ordem pode também – desligada da ideia de criação – ser representada de modo geral e indeterminado como ordem do mundo. Em lugar da ordem da criação teologicamente, surge a ordenação possível de todos os objetos pelo espírito que, como razão universal (mathesis universalis (Weltvernunft)), se dá a si mesmo sua lei e postula, assim, a inteligibilidade imediata das articulações de seu processo (aquilo que se considera como “lógico”). Não é então mais necessário que se justifique, de maneira especial, por que a essência da verdade da proposição reside na conformidade da enunciação. Mesmo lá, onde, com notório insucesso, se procura esclarecer o modo como se fixou esta conformidade, ela já sempre está pressuposta como a essência da verdade. Paralelamente, a verdade da coisa significa sempre o acordo da coisa dada com seu conceito essencial, tal como o “espírito” (a razão) o concebe. Assim, pode parecer que esta concepção de essência da verdade seja independente da interpretação relativa à essência do ser de todo ente: esta última inclui, entretanto, necessariamente uma interpretação correspondente da essência do homem como sujeito que é portador e realizador do intellectus. Assim, a fórmula da essência da verdade (veritas est adaequatio intellectus et rei) adquire, para cada um e imediatamente, uma evidente validez. Sob o império da evidência (Selbstverständlichkeit) deste conceito de essência da verdade, mal e mal meditada em seus fundamentos essenciais, admite-se como igualmente evidente que a verdade tem um contrário e que há a não-verdade. A não-verdade da proposição (não-conformidade) é a não concordância (Nichtübereinstimmen) da enunciação com a coisa. A não-verdade da coisa (inautenticidade) significa o desacordo (Nichteinstimmen) de um ente com sua essência. A não-verdade pode ser compreendida cada vez como não estar de acordo (Nichtstimmen). Isto fica excluído da essência da verdade. É por isso que a não-verdade, enquanto pensada como parte contrária da verdade, por ser negligenciada quando se trata de apreender a pura essência da verdade.

Mas, afinal, é preciso ainda proceder-se a um especial desvelamento da essência da verdade? Não está a essência pura da verdade suficientemente explicitada por esta noção comumente válida que nenhuma teoria perturba e que protege sua evidência (Selbstverständlichkeit). Se, enfim, tomarmos a redução da verdade da proposição à verdade da coisa, por aquilo que ela significa ordinariamente, a saber, por uma explicação teológica, e se procurarmos manter inteiramente depurada a determinação filosófica da essência de qualquer intromissão da teologia e se restringirmos o conceito de verdade à verdade da proposição, então nos encontramos, ao mesmo tempo, com uma tradição antiga do pensamento, ainda que não a mais antiga, segundo a qual a verdade consiste na concordância (homoiosis) de uma enunciação (logos) com o seu objeto (pragma). Que nos restará para investigar se admitirmos que sabemos o que significa a concordância de uma enunciação com uma coisa? Mas sabemos nós isto? (MHeidegger – SOBRE A ESSÊNCIA DA VERDADE)


Já antes de suas respostas à questão do ente enquanto tal a metafísica representou o ser. Ela expressa necessariamente o ser e, por isso mesmo, o faz constantemente. Mas a metafísica não leva o ser mesmo a falar, porque não considera o ser em sua verdade e a verdade como o desvelamento e este em sua essência. A essência da verdade sempre aparece à metafísica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da enunciação. O desvelamento, porém, poderia ser algo mais originário que a verdade no sentido da veritas. Alétheia talvez fosse a palavra que dá o aceno ainda não experimentado para a essência impensada do esse. Se a coisa fosse assim, sem dúvida o pensamento da metafísica que apenas representa jamais poderia alcançar esta essência da verdade, por mais afanosamente que se empenhasse historicamente pela filosofia pré-socrática; pois não se trata de algum renascimento do pensamento pré-socrático — tal projeto seria vão e sem sentido — , trata-se, isto sim, de prestar atenção ao advento da ainda não enunciada essência do desvelamento que é o modo como o ser se anunciou. Entretanto, velada permanece para a metafísica a verdade do ser ao longo de sua história, de Anaximandro (79) a Nietzsche. Por que não pensa a metafísica na verdade do ser? Depende uma tal omissão apenas da espécie de pensamento que é o metafísico? Ou pertence ao destino essencial da metafísica, que se lhe subtraia seu próprio fundamento, porque em toda a eclosão do desvelamento permanece ausente sua essência, o velamento, e isto em favor do que foi desvelado e aparece como o ente? 215 MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA