Ernildo Stein – A recepção crítica da fenomenologia na obra de Heidegger

Ernildo Stein, A questão do método na filosofia – um estudo do modelo heideggeriano

1 Na introdução de Ser e Tempo, que trata da exposição da questão do sentido do ser, após mostrar a meta da analítica ontológica do ser-aí e de apresentar a tarefa de uma destruição da historia da antologia, Heidegger desdobra o método de sua investigação.

Desde o início o autor previne contra a tentação que é aproximar da tradição filosófica a análise esboçada. Ainda que a “característica do objeto temático da investigação (ser do ente, sentido do ser em geral)” pareça apontar para os métodos da ontologia tradicional, é preciso atentar que o método da ontologia permanece muito problemático se se procura conselho junto às ontologias históricas da tradição ou tentativas congêneres. Heidegger toma o termo ontologia num sentido formal e amplo. Assim, o método não pode ser fornecido por nenhuma das ontologias existentes. Isto porque Heidegger usa a palavra ontologia num sentido que não coincide com nenhuma disciplina filosófica até aí existente. Não quer corresponder à tarefa de uma disciplina já constituída. Pelo contrário, anuncia que aqui só é possível construir uma disciplina a partir das necessidades inerentes a questões precisas e a partir de um método inspirado pelas exigências das “coisas mesmas”.

O filósofo não se liga a nenhuma posição ontológica da História da Filosofia. Procura situar sua reflexão e análise dentro da problemática fundamental da filosofia em geral. Tomando a análise como guia, a questão do sentido do ser se insere na questão fundamental da filosofia. Fenomenologicamente será tratada esta questão, diz Heidegger; e acentua logo sua posição pessoal diante da fenomenologia, mostrando que em seu trabalho não seguirá um ponto de vista qualquer ou uma determinada tendência. “Porque a fenomenologia, enquanto continuar a compreender a si mesma, não é nem pode tornar-se uma ou outra coisa”. Com a expressão “fenomenologia” Heidegger determina um conceito de método. Ela não visa caracterizar os conteúdos dos objetos da pesquisa filosófica. Apenas caracteriza o “como”, a maneira de proceder da filosofia. Mas o método não é algo exterior e puramente técnico. Ele se liga tanto mais à discussão das coisas mesmas quanto mais amplamente determina o movimento básico de uma ciência. Com tais pressupostos recebe Heidegger o conceito husserliano de fenomenologia e o transforma criticamente submetendo-o a um processo de interpretação etimológica.

Para fugir às sistematizações infundadas, às descobertas casuais, ao uso de conceitos apenas aparentemente elaborados, às questões imaginárias, que durante gerações se divulgam como problemas, é que Heidegger assume a fenomenologia enquanto lhe traz a máxima: “às coisas mesmas”. Ainda que este apelo oculto na fenomenologia pareça algo óbvio, enquanto expressão do princípio de todo conhecimento científico, o Filósofo diz que vai precisá-lo na medida em que se faz necessário para iluminar a marcha de seu trabalho. “Exporemos apenas um conceito provisório de fenomenologia”. O motivo que o leva a fazer esta exposição provisória do conceito de fenomenologia não é decisão arbitrária, mas imposição do próprio caminho da reflexão. Somente a Terceira Seção da Primeira Parte possibilitaria ir além de uma determinação provisória. No fim da segunda seção Heidegger acena para esta questão; somente quando elucidados o sentido do ser e as relações entre ser e verdade a partir da temporalidade da existência, seria possível o desenvolvimento de “uma ideia da fenomenologia diferente do conceito provisório exposto na Introdução”. Esta terceira seção nunca apareceu como havia sido planejado. É talvez por isso que uma ampla explicitação do conceito de fenomenologia não foi realizada até hoje. Mas como veremos mais adiante, é possível descobrir em obras posteriores de Heidegger a presença implícita de um conceito de fenomenologia que é mais definitivo que aquele elaborado na obra Ser e Tempo. Este conceito que se faz presente, sobretudo no Segundo Heidegger, vem profundamente imbricado com a própria análise da questão do ser.

2 Heidegger fará a exposição provisória do conceito de fenomenologia partindo de uma interpretação etimológica dos radicais que compõem a palavra: phainomenon e logos.

Aparentemente a palavra “fenomenologia” se constituiu de modo igual como teologia, biologia, sociologia e seria assim a ciência dos fenômenos.

2. 1 Primeiro vem analisado o conceito de fenômeno. “A palavra grega phainomenon, à qual remete o termo “fenômeno”, deriva do verbo phainesthai, que significa: mostrar-se; então phainomenon significa: aquilo que se mostra, o manifesto. Phainesthai é o infinitivo médio de phaino: trazer ao dia, colocar na luz; phaino pertence à raiz pha como phos, a luz, a claridade, isto é, aquilo em que algo pode tornar-se manifesto, visível em si mesmo. Devemos reter como significação da palavra “fenômeno”: aquilo que se mostra em si mesmo, o manifesto. Os phainomenon, “fenômenos”, são, portanto, o conjunto daquilo que está ou pode ser trazido à luz e que os gregos, por vezes, identificavam simplesmente com tà ónta (os entes, o ente). O ente, portanto, pode mostrar-se, a partir de si mesmo de diversas maneiras, conforme o modo de acesso a ele”.

Mas o ente pode parecer aquilo que realmente não é. Assim, se mostra como aquilo que ele não é. Tal maneira de se mostrar se designa o parecer. Desta maneira o segundo sentido grego de phainomenon aponta para o que aparece, “o aparente”, “a aparência”. Os dois significados de phainomenon — “fenômeno” como aquilo que se mostra e “fenômeno” como aparência, estão unidos pela própria estrutura do conceito; o primeiro, porém, fundamenta o segundo. Atribuímos, diz Heidegger, à palavra “fenômeno” o sentido positivo e original de phainomenon e distinguimos o fenômeno da aparência, que é uma modificação privativa do “fenômeno”.

Após esta distinção inicial, Heidegger procura distinguir, do fenômeno enquanto aquilo que se mostra e do fenômeno enquanto aparência, o fenômeno-índice ou o puro fenômeno. O fenômeno-índice pode ter quatro conotações. Primeiro, é o anúncio daquilo que não se manifesta. Todos os sintomas, símbolos, indicações, apresentações possuem a estrutura fundamental formal do fenômeno-índice no primeiro sentido. Em segundo lugar é o anúncio enquanto ele próprio é um fenômeno — aquilo que, em sua manifestação, aponta aquilo que não se manifesta. Em terceiro lugar, fenômeno-índice pode ser usado para designar o significado primário de fenômeno, entendido como manifestação em si. Em quarto lugar, fenômeno-índice pode ter o sentido de puro fenômeno. Isto acontece quando o anúncio fenomenal que na manifestação de si indica o não-manifesto é alguma coisa que surge ou emana do não-manifesto, de tal maneira que o não-manifesto é pensado como aquilo que é essencialmente incapaz de se manifestar. Assim o fenômeno-índice torna-se sinônimo de produção ou coisa produzida, sem que estas constituam o verdadeiro ser do que produz. “Esta não-manifestação dissimuladora não é contudo uma simples aparência”. Afinal o fenômeno-índice pode transformar-se em pura aparência. Isto acontece quando este, enquanto anúncio fenomenal, implica em sua constituição um fenômeno que pode transformar-se privativamente numa aparência.

Mas o que Heidegger visa é a determinação do conceito fenomenológico de fenômeno. Se no conceito de fenômeno enquanto aquilo que se mostra em si mesmo permanece indeterminado qual o ente que é tido como fenômeno e se não se decide se o que se mostra é um ente ou o caráter ontológico de um ente, então se conquistou o sentido puramente formal do conceito de fenômeno. Tal conceito formal pode ser aplicado e então tem-se o conceito vulgar e o conceito fenomenológico de fenômeno. Heidegger traz dois exemplos elaborados no horizonte da problemática kantiana. “Quando se entende por aquilo que se manifesta o ente que segundo Kant é acessível à intuição empírica, faz-se uma aplicação correta da noção formal de fenômeno. Segundo este uso, a ideia de fenômeno corresponde à noção vulgar desta palavra”. (…) “No horizonte da problemática kantiana, se poderia caracterizar o que se entende fenomenologicamente por fenômeno (reserva feita sobre outras distinções), dizendo-se: o que no fenômeno, em sentido vulgar, se manifesta sempre de modo prévio e implícito, ainda que não tematicamente, pode ser levado a manifestar-se tematicamente; e o que assim se manifesta por si mesmo (“as formas da intuição”) é fenômeno da fenomenologia”.

Para a compreensão geral do conceito fenomenológico de fenômeno é necessário penetrar, segundo Heidegger, no sentido formal do conceito de fenômeno e sua aplicação correta no sentido vulgar.

2. 2 Antes de estabelecer o conceito provisório de fenomenologia o Filósofo passa à determinação do significado de logos. Mostra que as divergências sobre o conceito de logos resultam da falta de uma interpretação que revele seu significado fundamental. Mesmo quando o significado fundamental é reduzido ao discurso, logos só é explicado, em sua denotação radical, pela determinação do que se entende por discurso. A história do significado atribuído a logos e as interpretações múltiplas e arbitrárias da filosofia mascaram de tal maneira o sentido de discurso, que logos passa a ser interpretado como razão, juízo, conceito, definição, razão suficiente ou relação. Enunciação e juízo eram o significado fundamental de logos. Isto ocorreu, sem dúvida, devido às variações semânticas por que passaram os diversos termos com que logos foi traduzido. A passagem do grego para o latim e deste para as línguas nacionais terminou obstruindo profundamente o acesso às dimensões originárias das palavras primitivas.

“Pois logos, no sentido de discurso, significa deloun, tornar manifesto aquilo sobre que se discorre no discurso. Aristóteles explicou mais precisamente esta função como apophalnesthai. O logos faz ver (phainesthal) alguma coisa, a saber, aquilo sobre que se discorreu; ele o faz ver àquele que discorre (forma média) ou àqueles que discorrem entre si. O discurso “faz ver” apò. . ., a partir daquilo sobre que se discorre. No discurso (apóphansis), enquanto é autêntico, o que é dito se deve haurir daquilo de que se fala, de tal modo que a comunicação discursiva torne manifesto e assim acessível aos outros naquilo que é dito aquilo de que se fala. Tal é a estrutura do logos como apóphansis”.

Após afirmar que a realização concreta do discurso acontece na linguagem, na notificação vocal, em que alguma coisa é dada a ver; depois de mostrar que o logos somente é capaz de revestir a função estrutural de synthesis porque como apóphansis consiste em fazer ver mostrando, Heidegger liga o mesmo logos a verdadeiro e falso. O logos pelo fato de fazer ver pode ser verdadeiro e falso. O elemento original da aletheia não se encontra na adequação. “O ser-verdadeiro de logos como aletheúein significa que este logos retira do velamento o ente do qual fala, através do legein como apophainesthai; ele o faz ver, o descobre como desvelado (alethés)”. A importância decisiva do sentido da aletheia para a elaboração do conceito de fenomenologia consiste no fato de ter conduzido à descoberta do binômio velamento-desvelamento.

O logos não é o lugar primordial da verdade porque é um modo determinado de fazer ver. Ainda que se determine que a verdade faz parte do juízo, para os gregos o verdadeiro reside mais originalmente na aisthesis, enquanto apreensão sensível de alguma coisa. É nela e no noein, incapaz de encobrir, que se dá o verdadeiro desvelamento. A síntese já explica e faz ver um ente mediante outro ente e assim mais facilmente pode ocultar. Por isso a verdade do juízo é sob muitos aspectos derivada. O logos não significa apenas legein; sendo também aquilo que ele indica, o legómenon como hypokeimenon, pode significar fundamento, ratio.

Assim, Heidegger encerra a análise da interpretação do discurso apofântico que procurou elucidar a função primária do logos.

3 Determinados os dois elementos que compõem a palavra fenomenologia, Heidegger passa a determinar o conceito provisório de fenomenologia. “A palavra fenomenologia pode ser assim formulada em grego: legeinphainomenon; ora, legein significa apophainesthai. Fenomenologia significa então: apophainesthaiphainomenon: fazer ver a partir de si mesmo aquilo que se manifesta, tal como a partir de si mesmo se manifesta. Este é o sentido formal que se dá ao nome de fenomenologia. Não outra coisa que o que vem expresso na máxima acima formulada, é assim enunciado: “às coisas mesmas”.

Dentro da tradição metafísica, sobretudo da escolástica, levantam-se objeções contra a aplicação do método fenomenológico heideggeriano à análise da questão do ser; baseiam-se elas na afirmação de que este não é o caminho adequado para analisar a questão do ser. O impulso fenomenológico não seria capaz de romper a imanência, e por isso toda sua interrogação se perderia no piano finito e histórico. O método fenomenológico poderia ser admitido como preparador do terreno para uma posterior e necessária reflexão metafísica.

Husserl e alguns de sua escola viam por sua vez na conceituação de fenomenologia heideggeriana um perigoso desvio para o antropologismo; sobretudo porque se recusavam a aceitar a redução transcendental, não alcançando desta maneira a universalidade necessária para a abordagem da questão do ser.

Ainda que o longo caminho de Heidegger tenha trazido novos elementos para a formulação do conceito de fenomenologia e tenha mesmo levado o autor a silenciar sobre o método, acenando apenas de passagem para alguns aspectos novos, devemos ver, contudo, na análise que vem esboçada na letra C do § 7, ao mesmo tempo uma resposta às objeções que vinham de ambos os lados e uma abertura para uma nova posição dentro da História da Filosofia. Aqui permanecem latentes elementos que silenciosamente desabrocharão em trabalhos posteriores; sem eles as últimas posições do Filósofo são incompreensíveis.

A simplicidade do esboço provisório da fenomenologia é apenas aparente. O que desnorteia é que Heidegger procede mais por afirmações taxativas que por explicações, o que muito esconde o clima histórico e o contexto de problemas em que emergiu sua fenomenologia. A violência na interpretação etimológica do termo já indica a decisão de impor um conceito novo. É preciso, aliás, que se constate, já desde o início de Ser e Tempo, que o conceito de interpretação que nascerá das discussões do problema hermenêutico já está presente na provisória elaboração do método. Por isso a própria análise do conceito de fenomenologia é projetiva e antecipadora. A palavra é carregada com um sentido que progressivamente se imporá no contexto.

3.1 A clareza exige que examinemos primeiro o que Ser e Tempo diz sobre a fenomenologia a fim de nos voltarmos depois para as considerações esparsas nas obrâs posteriores.

Heidegger procura dar à dimensão formal da fenomenologia aquela envergadura que a comensure com o apelo para a volta às coisas mesmas, lançado pelo movimento fenomenológico iniciado por Husserl, Mas no sentido que dá à fenomenologia já vai implícita uma renúncia ao movimento fenomenológico, A palavra não traz mais a conotação objetiva das “coisas mesmas”, dos fenômenos em seu sentido vulgar. Ela indica o modo de acesso, de tratamento daquilo que deve ser questionado.

Heidegger, porém, procura transformar este conceito formal de fenomenologia no conceito fenomenológico. Fenômeno, em sentido privilegiado, é aquilo que, “primeiramente e o mais das vezes, justamente não se manifesta, o que está velado em face do que primeiramente e o mais das vezes se manifesta, ainda que pertença ao mesmo tempo e essencialmente àquilo que primeiramente e o mais das vezes se manifesta, e de tal maneira que constitua seu sentido e fundamento”. A fenomenologia é, portanto, o instrumento e método que dá acesso, não só ao fenômeno no sentido vulgar, mas ao fenômeno no sentido fenomenológico. E este é o que primeiramente e o mais das vezes não se dá como manifesto. A este visa a fenomenologia heideggeriana.

Os primeiros parágrafos de Ser e Tempo mostraram a situação concreta da questão do ser, a necessidade de uma repetição explícita da questão do sentido do ser; provaram a necessidade de partir da analítica existencial; expuseram o sentido positivo da tarefa de uma destruição da história da ontologia. A fenomenologia pretende precisamente ser o método que permita o encaminhamento destas questões. Ela é assim formulada ern sua estrutura formal para poder ser aplicada no âmbito da obstrução da questão do ser, na esfera do esquecimento do sentido do ser, no horizonte da determinação desveladora do sentido do ser. O que em sentido mais próprio permanece velado, cai no estado de dissimulação ou se manifesta de maneira distorcida, não são determinados entes, mas o ser do ente. “A fenomenologia tomou como tarefa, como seu objeto temático, aquilo que reclama ser fenômeno em sentido privilegiado e em virtude de seu conteúdo inalienável”. O ser não é fenômeno. A fenomenologia procurará transformá-lo em fenômeno no sentido fenomenológico, como aquilo que se oculta no que se manifesta, e contudo, constitui o fundamento de tudo o que assim se manifesta. O método deve adequar-se, portanto, ao modo de manifestação do ser, deve ser o caminho para recolocar a questão do sentido do ser.

A explicitação do sentido do ser será o papel da ontologia em seu sentido lato. Esta explicitação não pode tomar como instrumento nenhum método tradicional. Pois foi a tradição que permitiu o velamento, a dissimulação e a distorção do sentido do ser do ente. Desta maneira, a ontologia que é a meta de Heidegger recebe um novo instrumento. “A fenomenologia é o modo de acesso ao que deve tornar-se o tema da ontologia; ela é o método que permite determinar o objeto da ontologia, legitimando-o. A ontologia somente é possível como fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno visa o ser do ente enquanto aquilo que se manifesta, seu sentido, suas modificações e derivações”.

É difícil que esta afirmação tome seu sentido radical e inequívoco neste contexto. Ela foi acompanhada desde o começo de críticas vindas de várias direções. Somente sua aplicação na análise da questão do ser poderia mostrar em seus resultados a positividade desta afirmação. O fato mais claro que vem atestar esta situação talvez resida na aceitação dos resultados da reflexão de Heidegger por parte daqueles que não admitem seu método. Mesmo as profundas considerações de Heidegger sobre o ser são fruto da aplicação da fenomenologia; progressivamente, porém, esta vai sendo calada em favor do próprio objeto da ontologia heideggeriana.

Os equívocos surgem particularmente da interpretação da exposição provisória do conceito de fenomenologia; esta parecia lançar o pensamento de Heidegger contra toda a tradição. Sua finalidade no entanto era penetrar no chão esquecido da tradição, recolocando a questão do sentido do ser. A ontologia na mente de Heidegger, somente era possível como fenomenologia. A determinação do horizonte para a manifestação do ser, através da analítica existencial, somente podia ser realizada mediante o método fenomenológico. A elaboração do sentido do ser, partindo do modo de o ser se desvelar no homem, velando-se naquilo que constitui em sua radicalidade, somente era possível como fenomenologia. O ser que se manifesta de múltiplos modos somente podia ser captado mediante um instrumento adequado às diversas condições de sua eclosão. Afinal a ontologia no sentido lato que Heidegger lhe dava exigia a fenomenologia para corresponder às exigências de seu objeto. Heidegger transformou a fenomenologia husserliana radicalizando-a: Isto significa a superação da ontologia ingênua de Husserl por uma nova ontologia.

Entretanto, a análise do sentido do ser não pode ser visada diretamente. Ainda que o fenômeno em seu sentido fenomenológico seja sempre o ser e as estruturas ontológicas, este, contudo, se apresenta enquanto ser do ente. Assim, a manifestação do ser exige que primeiro se analise o ente. Por isso o fenômeno em sentido vulgar adquire relevância fenomenológica. Daí o sempre estar incluída na meta de tal análise a tarefa preliminar de assegurar fenomenologicamente o ente exemplar de onde possa partir o questionamento propriamente dito. Portanto, ainda que a fenomenologia pretenda ser um instrumento, o método da ontologia, ela exige, contudo, que seja precedida por uma análise fenomenológica do ente privilegiado a partir do qual se possa então realizar a análise fenomenológica do fenômeno do ser. Já no início Heidegger tem isto presente, quando as explicações dadas sobre as tarefas da ontologia estabelecem a necessidade de uma ontologia fundamental que tome por tema um ente privilegiado tanto no plano ontológico como no ôntico: o ser-aí. As estruturas deste ente serão analisadas para que desvelem o horizonte em que se afirma a questão do sentido do ser em geral. É na analítica do ser-aí que a fenomenologia assume uma dimensão hermenêutica, explicitadora. Esta hermenêutica das estruturas fundamentais do ser-aí adquire quatro dimensões como ainda se mostrará.

3. 2 Ao fim da exposição provisória da fenomenologia o Filósofo mostra como é possível que o ser, enquanto “o transcendens por excelência”, pode, contudo, e deve mesmo ser problematizado a partir do ser-aí. “O ser e a estrutura ontológica estão além de todo ente e de toda determinação ôntica possível que seja da ordem do ente”. A transcendência do ser-aí implica privilegiadamente a possibilidade e necessidade da individuação mais radical. “A questão do sentido do ser é a mais universal e a mais vazia; contém, entretanto, ao mesmo tempo, a possibilidade de se concretizar e de se concentrar num ser-aí, individual”. É por isso que se torna possível analisar o ser a partir do ser-aí. “A universalidade do conceito de ser não exclui o caráter “especializado” de nosso estudo; este se propõe, realmente, ascender ao ser pelo caminho de uma interpretação particular, de um ente determinado, o ser-aí, esperando obter através dele o horizonte necessário a uma compreensão e a uma explicitação possíveis do ser em geral”. Esta individualização do estudo do ser no ser-aí, como ponto de partida, é mesmo necessária. Desta maneira, a fenomenologia deve ser primeiramente hermenêutica. “Toda a exploração do ser como transcenderas é conhecimento transcendental. A verdade fenomenológica (enquanto ela é uma revelação do ser) é veritas transcendentalis”. Conhecimento transcendental é aquele que parte do ser-aí. Assim o estudo e a análise do transcendente por excelência é transcendental, isto é, se individualiza na transcendência do ser do ser-aí. A verdade fenomenológica, que é o desvelamento fenomenológico do ser, somente é possível a partir do desvelamento das estruturas do ser-aí, sendo por isso verdade transcendental.

“Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas diferentes, que, entre outras, pertencem à filosofia. Estas duas expressões caracterizam a própria filosofia, segundo seu objeto e seu método. A filosofia é ontologia fenomenológica universal, que parte da hermenêutica do ser-aí; esta, enquanto analítica existencial, dá o fio condutor de toda a problemática filosófica, fundamentando-a sobre a existência, de onde brota toda a problemática e sobre a qual ela repercute”.

O esboço provisório da fenomenologia levou Heidegger à elaboração formal do conceito de fenomenologia, que, no fim do § 7, recebe seu conteúdo pela determinação da hermenêutica. A analítica do ser-aí é a concretização da dimensão formal da fenomenologia, imposta pela privilegiada situação ôntico-ontológica do ser-aí. A máxima individualização do “ens como o transcendens por excelência” é exigida como ponto de partida. Por isso a verdade (o horizonte, a abertura, o sentido) do ser será necessariamente veritas transcendentalis que parte da analítica do ser-aí. A fenomenologia hermenêutica funda, portanto, a veritas transcendentalis, o horizonte de abertura no ser-aí concreto, que permite a interrogação pelo sentido, pela verdade do ser em si mesmo. A verdade que emerge da fenomenologia hermenêutica é verdade transcendental. Especialmente a fenomenologia hermenêutica do ser-aí, em suas estruturas e sua temporalidade, visa uma abertura para a questão do ser. O tempo fundado na temporalidade do ser-aí, analisada pela analítica existencial, é transcendental. A meta da fenomenologia hermenêutica do ser-aí é a explicação do tempo como o horizonte transcendental da questão do sentido do ser. O tempo fundado na temporalidade do ser-aí é transcendental porque conota a abertura do ser-aí. O desvelamento apofântico das estruturas e da temporalidade do ser-aí descobre as condições em que a transcendência do ser emerge na transcendência do ser-aí. Isto, porém, não é uma análise abstrata da origem da transcendência. É uma análise da facticidade, da dimensão fenomenológica da existência em seu acontecer concreto.

3. 3 Após haver explorado o acontecer fático da transcendência do ser-aí e de a partir dela ter determinado a temporalidade das estruturas do ser-aí, Heidegger estabeleceria o tempo como horizonte transcendental da questão do sentido do ser. Isto, no entanto, permaneceu projeto. Deve-se ver nisto o impasse do método fenomenológico hermenêutico? Se visava desvelar as estruturas do ser-aí fático, ele contudo não pôde penetrar na gênese do acontecer do ser-aí, na raiz da existência fática, porque ela não se dá como facticidade. A pergunta que se impõe imediatamente é a seguinte: tem a explicação do tempo possibilidade de ser o horizonte transcendental da questão do sentido do ser? E ainda: é possível a interrogação pelo sentido do ser num horizonte transcendental? E afinal: não é o ser o lugar da emergência deste horizonte transcendental e, portanto, não está seu sentido aquém deste horizonte?

O problema reside na questão: é possível ou não que a explicitação do tempo leve ao sentido do ser? A explicação do sentido de ousia no pensamento de Heidegger e a análise da viravolta melhor situariam a questão. O que, porém, nos interessa agora diretamente é a atitude de Heidegger diante da fenomenologia, depois que ela, enquanto fenomenologia hermenêutica, levou a um impasse. As análises da fenomenologia hermenêutica cessaram após as tentativas nos trabalhos que surgiram em torno de Ser e Tempo. Isto, porém, não representa uma renúncia e uma rejeição da fenomenologia como momento necessário no caminho da reflexão.

No prefácio da nona edição de Ser e Tempo, Heidegger explica: “Entretanto, o caminho traçado, ainda hoje permanece necessário, se a questão do ser deve inspirar nossa existência”. Uma carta de 1962 confirma-o: “A problematização de Ser e Tempo, contudo, de modo algum é abandonada”. “A problematização de Ser e Tempo é completada de modo decisivo no pensamento da viravolta. Completar somente pode aquele que abarca o todo. Somente esta complementação oferece a determinação suficiente do ser-aí, quer dizer da essência do homem pensada a partir da verdade do ser enquanto tal”.

Ser e Tempo visava desdobrar a verdade do ser a partir da analítica do ser-aí realizada pela fenomenologia hermenêutica. Já aí, porém, se afirmava a necessidade de esta analítica ser refeita após uma profunda discussão do conceito de ser. Nesta discussão do sentido do ser não seria aplicável o método fenomenológico hermenêutico. Continuaria Heidegger com o método fenomenológico para determinar e esclarecer a ideia de ser em geral? Os trabalhos posteriores mostram que o método continua comandando a interrogação, apesar das poucas referências explícitas.

4 Num texto que se originou da visita do professor Tezuka da Universidade Imperial de Tokio em 1953/1954, Heidegger aponta certos elementos que nos podem conduzir na abordagem da fenomenologia que surge diante da tarefa da viravolta: determinar a verdade do ser e, assim, a partir dela, a verdade do homem. A conversa tratava do sentido do título de uma preleção que Heidegger realizara em 1923: Expressão e Fenômeno. Falava ele de uma nova dimensão da hermenêutica enquanto esta descobre uma nova relação do homem com a diferença ontológica entre presença e presente. O professor japonês diz que Heidegger abandonou o âmbito da subjetividade “através do aprofundamento da relação hermenêutica com a diferença ontológica”. “Procurei-o ao menos, replica Heidegger. As representações principais, que sob os nomes “expressão”, “vivência” e “consciência”, determinam o pensamento moderno, se deveriam tornar problemáticas no que se refere a seu papel determinante”. O interlocutor, porém, objeta que o título da preleção de 1923: Expressão e Fenômeno, parece situar a problemática dentro da relação sujeito-objeto. Heidegger reconhece que muitas coisas ficaram obscuras naquelas aulas e diz que não é possível sair de um salto da esfera de representação dominante. Além disto o pensamento de Heidegger, na sua discussão com o pensamento moderno, pretendia, antes de tudo, recuperar mais originariamente o passado-presente. Ele chama atenção para a palavra “repetição” que vem no título do § 1 de Ser e Tempo. Esta repetição aponta para um retomar, um recuperar, um reunir daquilo que se esconde no pensamento antigo. E para isto se exige “atenção para os indícios que conduzem o pensamento para o âmbito de sua origem”. Estes indícios não são do autor e são apenas poucas vezes perceptíveis como o eco apagado de longínquo apelo. Para mostrar que não mais coloca a relação sujeito-objeto como fundamento da distinção Expressão e Fenômeno ele recorre a Kant. O conceito de fenômeno em Kant repousa no fato de que tudo o que se apresenta já se transformou em objeto da representação. Todo o fenômeno em Kant deve ser experimentado como ligado à oposição ao sujeito. Isto é necessário para, antes de mais nada, podermos experimentar originariamente o aparecer do fenômeno.

“Os gregos, diz Heidegger, foram os que, pela primeira vez, experimentaram, enquanto tais, os phainomenon, os fenômenos. Mas nisto é-lhes absolutamente estranha a caracterização do que se presenta pela objetividade; phainesthai significa para eles: chegar a se manifestar e assim aparecer como fenômeno. O aparecer como fenômeno permanece o traço básico da presença do que se presenta, na medida em que o que se presenta emerge no desvelamento”. O Filósofo usa a palavra “fenômeno” no sentido grego, ao menos na medida em que este exclui o sentido kantiano. Mas, a distinção feita contra Kant não basta. Quando se usa a palavra “objeto” para o que se presenta, querendo dizer que o que se presenta subsiste em si e por si, rejeitando-se assim a explicação kantiana da objetividade, ainda não se pensa o aparecer enquanto fenômeno no sentido grego; porém, ainda que em sentido muito velado, no sentido cartesiano: a partir do eu enquanto sujeito.

Heidegger, entretanto, também não pensa o aparecer do fenômeno no sentido grego. “Nosso pensamento atual, afirma ele, tem a tarefa de pensar mais radicalmente que os gregos o que eles pensaram”. “Pensando a presença mesma como o aparecer enquanto fenômeno, então, reina na presença o emergir na clareira (abertura) no sentido do desvelamento. Isto acontece no desvelar enquanto abertura de uma clareira. Esta abertura de uma clareira permanece, contudo, em si mesma, sob qualquer ponto de vista enquanto acontecimento. Inserir-se no pensamento deste impensado significa: ocupar-se mais radicalmente daquilo que foi pensado em grego, descobri-lo na origem de seu ser. O olhar que descobre isto é, a seu modo, grego e, contudo, sob o ponto de vista do que foi descoberto, não mais, nunca mais grego”.

Aquilo que é assim descoberto pelo olhar desvelador apresenta-se como o fenômeno no sentido fenomenológico, no Segundo Heidegger, após a viravolta. Aqui se mostra algo fundamental. Manifesta-se a mesma relação que pouco acima fora apontada como resultado da nova dimensão hermenêutica. O sentido fenomenológico de fenômeno desponta aqui ligado novamente ao hermenêutico. Isto, porém, não acontece mais no horizonte de problematização de Ser e Tempo. Pode-se observar aqui claramente a presença da viravolta. Nela a relação sujeito-objeto está superada e a dimensão do método fenomenológico, tanto como a da hermenêutica são transportadas para outro plano. A dimensão hermenêutica brota do próprio ser, assumindo o homem como mensageiro. “Pois, na origem do aparecimento do fenômeno, dirige-se ao homem aquilo em que se esconde a diferença de presença e do que se presenta”. Esta diferença já sempre se comunicou ao homem, ainda que ocultamente. Na medida em que o homem é homem ele ouve esta mensagem. O homem mesmo, sem prestar atenção, ouve esta mensagem. Ele é obrigado a ouvi-la. Assim, o homem está numa relação hermenêutica de sentido novo. Ele traz a notícia da mensagem. “O homem é o mensageiro da mensagem que lhe inspira o desvelamento da diferença”.

Esta análise realizada por Heidegger em A Caminho da Linguagem entreabre o âmbito no qual podemos situar o método fenomenológico após a viravolta. O fenômeno no sentido fenomenológico se instaura numa nova relação entre ser e homem em que o ser assume a hegemonia na sua manifestação, fazendo com que o próprio homem o atinja como fenômeno. A verdade transcendental mergulha agora na verdade fenomenológica enquanto ontológica. A abertura transcendental emerge da clareira do próprio ser, enquanto velamento e desvelamento. A verdade, o sentido, a abertura, a esfera do projeto do próprio ser fazem do homem seu mensageiro.

4.1 Se no texto examinado, o fenômeno e a fenomenologia assumem uma forma que os insere no próprio acontecer do ser, no texto que examinaremos a seguir, eles emergem na esfera do questionamento do pensamento. O mostrar e manifestar do fenômeno se apresenta, aqui, como traço especificador e fundamental do pensamento. A fenomenologia coincide com o próprio binômio velamento-desvelamento do ser. Pensar o que se presenta enquanto se retira é coincidir com o ser enquanto fenômeno.

Heidegger enfoca a questão a partir da afirmação de que a ciência não pensa. Mas o fato de não pensar é uma vantagem para a ciência, pois lhe assegura um acesso possível ao domínio dos objetos que corresponde a seus modos de pesquisa. Ainda que a ciência não pense, ela, contudo, nada pode sem o pensamento. “A relação da ciência com o pensamento é somente então autêntica e fecunda, quando se tornou visível o abismo que separa as ciências e o pensamento e quando aparece que não se pode estender sobre ele nenhuma ponte. Não há ponte que conduza das ciências para o pensamento, a não ser o salto”. O salto não nos revela apenas o outro lado, porém, uma região absolutamente nova. A região do pensamento nunca pode ser objeto de demonstração se esta significa: “derivar proposições conforme a questão dada, a partir de premissas adequadas, através de cadeias de raciocínios”. Heidegger reduz assim o pensamento a uma dimensão original. Falando da fuga do pensamento em que se movimenta o homem moderno, distingue dois tipos de pensamento: o pensamento que calcula e o pensamento que medita: “Existem dois tipos de pensamentos; ambos por sua vez e a seu modo justificados e necessários: o pensamento que calcula e o pensamento que medita o sentido”. O pensamento que medita o sentido é o pensamento “não científico”. É somente este pensamento que pode buscar o sentido do ser. Portanto, se a fenomenologia visa o desvelamento do sentido do ser é deste pensamento que ela se alimentará.

“Quando uma coisa se manifesta apenas enquanto ela aparece a partir de si mesma, permanecendo ao mesmo tempo velada, querer ainda provar ou exigir que seja provada tal coisa, de modo algum é julgar conforme a regra superior e mais rigorosa de conhecimento: é unicamente fazer uma conta utilizando um certo sistema de medida, um sistema inapropriado”. Eis um outro modo de expressão do sentido heideggeriano de fenômeno. A ontologia é fenomenologia, porque seu “objeto”, o ser, é o que se manifesta, velando-se nos entes. O ser somente se manifesta quando a partir de si é mostrado, assim como em si mesmo se mostra: isto é apophainesthaiphainomena. O ser é fenômeno no sentido fenomenológico: mostra-se, portanto, ocultando-se.

Heidegger aprofunda mais sua explicação: “Pois, há uma coisa que somente se manifesta de modo que apareça no próprio ato pelo qual se esconde, nós só respondemos bem se atraímos a atenção sobre ela e se nos impomos a nós mesmos a regra de deixar aparecer, no desvelamento que lhe é próprio, aquilo que se mostra. Mostrar assim simplesmente è um traço fundamental do pensamento. É o caminho em direção daquilo que desde sempre e para sempre dá que pensar ao homem”. Demonstrar é a via comum de acesso a todas as verdades científicas. Mostrar, porém, podemos poucas coisas. Somente estas podem ser liberadas através de um ato indicador que as convida a vir ao nosso encontro. Mas estas coisas não são apenas raras. Raramente elas se deixam mostrar assim. Aquilo que faz o homem pensar é o ser, o ser no estranho modo de entrar em relação com ele. Pois, seu desvelamento próprio é ocultar-se. É por isso que o método fenomenológico que se aplica ao fenômeno no sentido fenomenológico consiste em mostrar aquilo que em seu próprio ato de manifestação se vela.

Todo o pensamento se exerce, portanto, diante daquilo que se nos presenta enquanto se retrai. Este presentar-se do ser se dá sempre no movimento de velamento, de reserva. Ele sempre permanece enigma porque sua plenitude mais reserva em si do que mostra. O homem está envolto e atraído por aquilo que se mostra enquanto se retira. Assim, ele é aquele que mostra o que se esconde. A essência do homem consiste em mostrar no ente o ser que nele se desvela e nele se retrai.

É preciso observar o fato de que Heidegger liga sua fenomenologia ao problema do pensamento. Pensar para ele é, entretanto, pensar o ser. O verdadeiro, o único pensamento essencial é o pensamento do ser. O ser enquanto fenômeno no sentido fenomenológico é determinante do pensamento. É o fenômeno do ser que nos faz pensar e é o único digno de ser pensado. Heidegger resumirá toda a sua posição diante do pensamento ocidental na questão: Que significa pensar?

4.2 A presença da fenomenologia na obra de Heidegger assume um alcance que abarca e envolve toda a temática central do filósofo: o pensamento do ser. A condição provisória que é retratada em Ser e Tempo evoluiu para um desdobramento imanente à própria discussão do objeto da ontologia heideggeriana. As metamorfoses da fenomenologia heideggeriana estão condicionadas pelas mudanças de perspectiva em torno da mesma preocupação central. Da análise até agora realizada já ressalta a necessidade de penetração mais radical em alguns ângulos novos que a fenomenologia foi tomando ao longo do caminho do pensamento do Filósofo. A fenomenologia hermenêutica aplicada à analítica existencial teve uma presença decisiva no ponto de partida de Heidegger e no confronto do pensamento fenomenológico deste com o de Husserl. Depois silenciou, para apenas de passagem se referir a ela, apontando para uma radical mudança de sentido da hermenêutica nos últimos anos. Se continuou presente a inspiração primeira da fenomenologia como hermenêutica, a dimensão formal de fenomenologia no sentido fenomenológico se concretizou envolta nas reflexões de Heidegger sobre o problema do ser. Já não se tratava mais de discutir a analítica existencial como ponto de partida escolhido para a interrogação pelo sentido do ser; o decisivo então se tornara a análise e meditação do próprio sentido do ser. Nesta meditação a fenomenologia tomou força nova e silenciosamente orientou a lenta progressão da discussão do próprio sentido do ser. O ser como fenômeno no sentido fenomenológico envolve em si os novos horizontes da fenomenologia. Surge, porém, uma terceira perspectiva do contexto da obra de Heidegger como ontologia fenomenológica; suas análises da História da Filosofia, enquanto procuram penetrar no impensado dos textos da Tradição (o que se vela no que foi pensado) são reflexões fenomenológicas sobre as especulações dos filósofos. A partir desta direção a fenomenologia assume uma perspectiva riquíssima para a compreensão da obra do Filósofo. Sem dúvida aqui se faz notar a presença da destruição fenomenológica da história da ontologia que fora projetada em Ser e Tempo, sobretudo em seu sentido positivo. O importante é verificar que “a fenomenologia oferecia as possibilidades de um caminho”. Enquanto caminho ela se confunde com o próprio caminhar. “Ela é a possibilidade do pensamento — que periodicamente se transforma e, somente assim, permanece — de corresponder ao apelo do que deve ser pensado. É a fenomenologia assim compreendida e guardada, então, ela pode desaparecer como título, em favor do objeto de pensamento, cuja manifestação permanece um mistério”.

5 Já em 1926, Heidegger apresentara a fenomenologia num âmbito que procurava deixá-la aberta às surpresas da fortuna andeja de um longo caminho filosófico: “Nossas explicações relativas ao conceito provisório de fenomenologia mostram que para ela o essencial não consiste em se realizar como “movimento filosófico”. Além da atualidade situa-se a possibilidade. Compreender a fenomenologia quer dizer: captar suas possibilidades”.

Antes de encerrarmos a análise da recepção crítica da fenomenologia na obra de Heidegger é necessário que assinalemos a importância da aletheia na gênese da fenomenologia heideggeriana. Em 1962 o Filósofo confessa: “Com a provisória elucidação de aletheia esclareceram-se o sentido e o alcance do princípio da fenomenologia: “às coisas mesmas”. E qual o sentido que Heidegger descobriu na aletheia? “Um novo estudo dos tratados de Aristóteles (em particular do Livro Nono da Metafísica e Sexto Livro da Ética a Nicômaco) propiciou uma nova compreensão do aletheuein como desocultar e a caracterização da verdade como desvelamento ao qual pertence todo o mostrar-se do ente”. Com estas palavras Heidegger descreve sua evolução antes de Ser e Tempo. Portanto, a ideia de fenomenologia como o mostrar das coisas mesmas, assim como a partir de si se mostram, está vinculada à interpretação heideggeriana de aletheia. Da aletheia advém, sobretudo, a dimensão de ambiguidade da fenomenologia, enquanto ela deve desvelar aquilo que a partir de si sempre se oculta e vela nos entes.

Na Introdução de Ser e Tempo o Filósofo já aproxima aletheúein e apophainesthai. “O “ser-verdadeiro” do logos como aletheúein significa que este logos retira da obscuridade o ente do qual fala, pelo legein como apophainesthai; ele o faz ver, o descobre como desvelado (elethés)”. E no §44 Heidegger repete: o ser-verdadeiro do logos como apóphansis é o aletheúein conforme o modo do apophainesthai: fazer ver o ente — retirado da dissimulação — na sua não-dissimulação (ser-des-coberto). A aletheia que Aristóteles identifica com o pragma, com os phainomenon, significa as “coisas mesmas”, o que se mostra, o ente segundo seu modo de ser-descoberto”.

Numa declaração de 1963 Heidegger confirma ainda uma vez mais a ligação entre fenomenologia e aletheia: “O que se realiza para a fenomenologia dos atos conscientes, como o auto-mostrar-se dos fenômenos, é pensado mais originariamente por Aristóteles e por todo o pensamento e existência dos gregos como aletheia, como des-velamento do que se presenta, seu desocultamento, seu mostrar-se”. Não é, entretanto, esta aproximação externa que mostra a dependência essencial entre fenomenologia e aletheia em sua profundidade. aletheia e fenomenologia perpassam todo o movimento fundamental do pensamento de Heidegger; da aletheia a ambivalência passa pela fenomenologia para caracterizar radicalmente a analítica da circularidade do ser-aí e o problema da viravolta enquanto pensamento do ser como história. Não se pode conceber a fenomenologia heideggeriana sem a presença da aletheia já no início da elaboração provisória de seu método fenomenológico. Somente na medida em que a aletheia perpassa toda a obra de Heidegger está nela também presente a fenomenologia. A aletheia inspira a fenomenologia, mas, esta é a via de acesso ao ser que acontece como aletheia, como velamento e desvela-mento.

A fenomenologia atingiu Heidegger não só quando este já estava munido de poderosas intuições; a recepção do método foi construída através de muitos anos. Como resultado temos uma fenomenologia levada a sua extrema radicalização e que com Husserl tem apenas em comum a mesma palavra de ordem: “às coisas mesmas”.

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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