Ricoeur (Jarczyk) – Sobre “Eu mesmo como um outro”

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Gwendoline JARCZYK. — Seu último livro, com o sugestivo título Soi-même comme un autre (Eu mesmo como um outro), é uma importante contribuição para sua pesquisa ao longo da vida. Como você encontra o “sujeito”?

Paul RICŒUR. — Eu o encontro sob um título que foi deliberadamente escolhido: distinto do “eu”. Nas discussões filosóficas, a filosofia do sujeito é geralmente elogiada ou atacada. Como se ela fosse necessariamente uma “egologia”, uma teoria do “eu”. Portanto, escolhi um termo menos afetado por essas discussões e talvez mais disponível por esse motivo: “Si”. Ele tem duas peculiaridades gramaticais — e vou começar por aí: em primeiro lugar, ‘Si’ não aparece na lista de pronomes pessoais; não é ‘eu’, nem ‘tu’, nem ‘ele’, nem ‘ela’, mas o reflexo de todos esses pronomes pessoais. Esse reflexivo — e essa é minha segunda observação sobre gramática — é especialmente perceptível em conjunto com infinitivos. Em outras palavras, como Guillaume observou anteriormente, o infinitivo expressa o verbo “em potencial”, antes de ser empregado nos tempos verbais. De fato, quando dizemos “conhecer-se”, “compreender-se”, “valorizar-se”, o “se” é o reflexivo do verbo que pode ser distribuído em todas as pessoas. Portanto, é esse caráter do reflexivo que pode ser distribuído a todos os pronomes pessoais, incluindo pronomes “não pessoais” como (no francês) “on” e “chacun”, que chamou minha atenção. Veja a fórmula do direito “a cada um o que lhe é devido”… Assim, o ‘se’ me pareceu um termo extremamente forte que talvez tenha escapado das discussões filosóficas centradas na primazia da primeira pessoa. Como o ‘se’ pode ser o reflexivo da terceira pessoa, entendo perfeitamente as seguintes frases: “ele se lembrou”, “ela se disse”. Para deixar a gramática de lado e passar para a discussão filosófica, o que me chamou a atenção nesse termo ‘si’ e ‘si mesmo’ (em que o ‘mesmo’ reforça o ‘si’) é que ele é sempre indireto; se, por exemplo, eu disser ‘o cuidado de si’ [‘le souci de soi’] — um dos últimos grandes títulos de Michel Foucault —, veremos que ‘si’ é o reflexivo e o complemento de um infinitivo implícito: se preocupar (se soucier). Isso está de acordo com minha hermenêutica, segundo a qual não há autoconhecimento imediato, mas nos conhecemos por meio, como já disse muitas vezes, de sinais, obras e textos que entendemos e amamos. Portanto, é uma questão desse caráter indireto da obtenção do “eu”: por meio da ação — eu me conheço como o agente da minha ação —, por meio das minhas histórias — eu me conheço como o narrador ou como o personagem das histórias que conto sobre mim mesmo, que os outros contam sobre mim —, e também sou o objeto ou o termo de apreciações morais, em estima, em respeito. Quando digo, por exemplo, “autoestima”, não estou dizendo “estima de mim mesmo”, mas estou pensando na estima do “eu” em qualquer outra pessoa; e quando falo de autorrespeito, estou me referindo, em primeiro lugar, aos outros, mas também a mim mesmo. Portanto, o “tu” e o “eu” também estão de alguma forma envolvidos nesse “Eu” refletido.

original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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