Ricoeur (1991:73-78) – O esquema conceitual da ação e a questão quem?

Lucy Moreira Cesar

Na primeira aproximação, a investigação parece promissora quanto à referência da ação a seu agente. Ação e agente pertencem a um mesmo esquema conceitual, que contém noções tais como circunstâncias, intenções, motivos, deliberações, moção voluntária ou involuntária, passividade, constrangimento, resultados desejados etc. O caráter aberto dessa enumeração é aqui menos importante que sua organização em rede. O que importa, com efeito, ao conteúdo de sentido de cada um desses termos é sua dependência à mesma rede que todos os outros; relações de intersignificação regem assim seu respectivo sentido, de tal modo que saber servir-se de um dentre eles é saber servir-se de maneira significante e apropriada da rede inteira. Trata-se de um jogo de linguagem coerente, no qual as regras que governam o emprego de um termo formam sistema com as que governam o emprego de um outro termo. Nesse sentido, a rede nocional da ação partilha o mesmo estatuto transcendental que o quadro conceitual dos particulares de base. De modo diferente, com efeito, dos conceitos empíricos elaborados pelas ciências humanas, da biologia à sociologia, a rede inteira tem por função determinar o que “conta como” ação, por exemplo nas ciências psicológicas do comportamento e nas ciências sociais da conduta. É a especificidade dessa rede em relação à determinação geral do conceito de pessoa adquirida no primeiro estudo que nos importa daqui em diante.

Uma maneira eficaz de proceder à determinação mútua das noções pertencentes a essa rede de ação é identificar a cadeia das questões suscetíveis de serem colocadas ao sujeito da ação: quem faz ou fez o quê, em vista de quê, como, em quais circunstâncias, com quais meios e quais resultados? As noções-chave da rede da ação tiram seu sentido da natureza específica das respostas levadas às questões específicas que elas próprias se entre-significam: quem? quê? por quê? como? onde? quando?.

Vemos em qual sentido este método de análise parece promissor: um acesso privilegiado ao conceito de agente nos é dado pelas (75) respostas que damos à questão quem?. O que Strawson chamava a “mesma coisa” a que são atribuídos predicados psíquicos e predicados físicos torna-se agora um alguém em resposta à questão quem?. Ora, essa questão revela uma certa afinidade com a problemática do si tal como nós a delimitamos na introdução. Em Heidegger, a investigação do quem? 1 pertence à mesma circunscrição ontológica que a do si (Selbstheit). Hannah Arendt 2, fazendo-lhe eco, liga a questão quem? a uma especificação própria à do conceito de ação, que ela opõe ao de trabalho e ao de obra. Enquanto o trabalho exterioriza-se inteiramente na coisa fabricada e a obra muda a cultura encarnando-se nos documentos, nos monumentos, nas instituições, no espaço de manifestação aberto pela política, a ação é esse aspecto do operar humano que se chama narração. Por sua vez, é função da narração determinar o “quê da ação”. A despeito dessas afinidades manifestas entre a teoria da ação e a fenomenologia hermenêutica, não teríamos razão para crer que a primeira possa ir tão longe. Em Heidegger, é a dependência da problemática do Selbst com respeito ao existencial Dasein que introduz o “quem” no mesmo espaço ontológico de gravitação, Quanto ao “quem” de H. Arendt, ele é mediatizado por uma teoria da ação que sai dos limites da presente análise e só encontrará seu lugar muito mais tarde, quando passarmos da ação no sentido restrito à prática no sentido lato anunciado mais acima.

Efetivamente, a contribuição da teoria da ação à pergunta quem? é consideravelmente mais modesta. Por razões que vamos dizer, ela marca até muitas vezes um recuo em relação à problemática de Strawson, visto que este colocava forçosamente a questão da atribuição a um “alguém”, considerado uma “mesma coisa”, de predicados característicos da pessoa. Ora, é essa questão da atribuição que tende a passar às margens, em benefício de uma pergunta tornada muito mais importante. Qual? Em uma palavra, é a relação entre as perguntas o quê? e por quê? que precede aqui a relação entre o par das questões o quê-por quê? e a questão quem?. É antes de tudo como um desafio a uma determinação do quem? heideggeriano que se apresenta a teoria da ação. Nosso problema será no fim deste estudo (76) tornar esse desafio uma vantagem, fazendo da investigação sobre o quê-por quê? da ação o grande circunlóquio no fim do qual a pergunta quem? voltará com força, enriquecida de todas as mediações que a investigação do o quê-por quê? terá atravessado.

Que é que explica o efeito de ocultação da pergunta quem? pela análise das respostas às perguntas o quê? e por quê?? Não é suficiente dizer que, numa perspectiva semântica largamente dominada pela maneira como o discurso se refere a alguma coisa, não se pode quase esperar encontrar para a pergunta quem? respostas suscetíveis de escapar à determinação de alguma coisa compreendida como um componente do mundo dito real. Certamente, a problemática do acontecimento que nós evocaremos daqui a pouco verificará amplamente essa captura do quem? por “alguma coisa”. Essa explicação não basta, todavia, uma vez que nada impede que, no quadro referencial de alguma coisa em geral, a questão quem? conserve uma autonomia com relação às perguntas o quê-por quê?. Nós já dissemos a propósito de Strawson que as respostas específicas à questão quem? apresentam um interesse considerável, não a despeito de, mas graças à limitação da investigação realizada no quadro da referência identificante. A pergunta “quem fez isso?” pode ser respondida ou mencionando um nome próprio, ou usando um dêitico (ele, ela, este aqui, aquele lá) ou dando uma descrição definida (o tal e tal). Essas respostas fazem de alguma coisa em geral um alguém. Isso não é nada, mesmo que falte a essa identificação da pessoa como alguém que faz (ou sofre) a designação por si à qual só a abordagem pragmática dará acesso, fazendo emergir o par “eu-tu” da situação de interlocução. Mas, se a abordagem referencial do agente da ação não puder transpor esse limiar, pelo menos tem em compensação a vantagem de conservar amplamente aberto o leque dos pronomes pessoais (eu, tu, ele/ela etc) e por esse meio conciliar o estatuto conceitual da pessoa à terceira pessoa gramatical. No nível de uma simples semântica da ação, a pergunta quem? admite todas as respostas introduzidas por qualquer pronome pessoal: eu faço, tu fazes, ele faz 3. Esse acolhimento sem (77) discriminação das três pessoas gramaticais, no singular e no plural, é onde subsiste a grande força da análise referencial.

Não é, portanto, a abordagem referencial como tal que impede de desdobrar os recursos contidos nas respostas à pergunta quem? no campo da ação humana. Outrossim, tentaremos no estudo seguinte prosseguir o exame iniciado imediatamente e retomar, com os recursos da análise das respostas às perguntas o quê-por quê?, o problema que ficou em suspenso no fim do presente estudo, a saber, o da atribuição da ação a seu agente.

A ocultação da pergunta quem? deve ser atribuída, na minha opinião, à orientação que a filosofia analítica impôs ao tratamento da pergunta o quê?, pondo-a em relação exclusiva com a pergunta por quê?. A despeito das enormes diferenças que vão progressivamente aparecer entre muitas variedades de filosofias analíticas da ação, podemos dizer que elas têm em comum focalizar a discussão sobre a questão de saber o que vale — no sentido de “o que conta” — como ação entre os acontecimentos do mundo. É com relação à noção de alguma coisa que chega que nos aplicamos a determinar o estatuto descritivo da ação. É essa orientação dada à pergunta o quê?, com relação à noção de acontecimento mundano, que contém em potência a supressão até a ocultação da questão quem?, apesar da resistência obstinada que as respostas a essa pergunta opõem a seu alinhamento sobre a noção eminentemente impessoal do acontecimento. As respostas à pergunta o quê? aplicadas à ação tendem, com efeito, a se dissociar das respostas exigidas pela pergunta quem?, visto que as respostas à pergunta o quê? (qual ação tem sido feita?) estão submetidas a uma categoria ontológica exclusiva pelo princípio da ipseidade, a saber, o acontecimento em geral, o “alguma coisa que chega” 4.

Esta dissociação entre o o quê? e o quem?, a favor da qual a problemática da ação oscila do lado de uma ontologia anônima do acontecimento, foi por sua vez tornada possível por uma coalizão no sentido contrário entre a pergunta o quê? e a pergunta por quê?; a fim de determinar o que vale como ação (pergunta o quê?), temos com efeito procurado no modo da explicação da ação (pergunta por quê?) o próprio critério do que merece ser descrito como ação. O uso do “porquê” na explicação da ação tornou-se, assim, o árbitro da descrição do que conta como ação.

Original

  1. Être et temps, § 25, § 64; trad. fr. de E. Martineau, Authentica, 1985, pp. 114 ss e 316 ss; trad. fr. de F. Vezin, Paris, Gallimard, 1986, pp, 156 ss. e 376 ss.[↩]
  2. Hannah Arendt, The human condition, 1958, trad. fr. de G. Fradier, La condition de l’homme moderne, prefácio de Paul Ricoeur, Paris, Calmann-Lévy, 1961, reed. 1983, reeditado por Agora, Paris, Pocket, 1988, cap. V.[↩]
  3. Caberá à pragmática ordenar à lista dos pronomes pessoais em função de atos de discurso diferenciados pela sua força ilocutória; então poderemos dizer na confissão ou na reivindicação: sou eu que…; no agradecimento ou na acusação: és tu que. .na acusação ou na descrição narrativa: é ele que. . . Mas essas determinações pragmáticas diferenciadas enxertam-se todas no alguém da análise referencial.[↩]
  4. Retomaremos aqui uma discussão começada mais acima, concernente ao estatuto epistemológico e ontológico do acontecimento. Cf. segundo estudo p. 67.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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