Nancy (1996:19-21) – sentido e “nós”

nossa tradução

Hoje se repete que perdemos o sentido, que estamos em falta e, consequentemente, em necessidade e expectativa de sentido. O “se” (fr. «on», impessoal, das Man) que fala assim negligencia apenas pensar que ainda faz sentido ao propagar esse discurso. O lamento de um sentido ausente ainda faz sentido. Mas não o faz apenas de modo negativo, negando a presença do sentido, afirmando, portanto, que se sabe o que seria o sentido, se ele estivesse presente, e mantendo, desse modo, o controle e a verdade do sentido (essa é a pretensão dos discursos humanistas que pedem ou propõem “reencontrar” o sentido). O discurso contemporâneo sobre o sentido faz mais. Queira ou não, ele faz muito mais e faz algo completamente diferente: ele revela que “o sentido”, assim empregado de forma absoluta, tornou-se o nome despojado do nosso ser-uns-com-os-outros. Nós não “temos” mais sentido porque nós mesmos somos o sentido, inteiramente, sem reservas, infinitamente, sem outro sentido além de “nós”.

Isso não significa que seríamos o conteúdo do sentido, seu preenchimento ou sua realização, como se disséssemos que o homem é o sentido (o fim, a substância ou o valor) do ser, da natureza ou da história. O sentido nesse sentido, ou seja, a significação à qual se refere e mede um estado de fato, é precisamente o que dizemos ter perdido. Mas o sentido como o elemento no qual as significações podem ser produzidas e circular, isso é o que somos. A menor significação, assim como a mais elevada (o sentido de “prego” assim como o sentido de “Deus”), só tem sentido, e consequentemente só é o que é, ou faz o que faz, na medida em que é comunicada — mesmo que seja de “mim” para “mim mesmo”. O sentido é sua própria comunicação, ou sua própria circulação. O “sentido do ser” não é uma propriedade que viria qualificar, preencher ou finalizar a “dado bruto” do ser puro e simples 1. É, antes, o fato de que não há um “dado bruto” do ser, que não há o “há” desesperadamente pobre que se representa quando se diz que há um prego ali abandonado… Mas o dado do ser, o dado que é dado com o próprio fato de que entendemos algo — seja o que for e por mais confuso que seja — quando dizemos “ser”, e o dado (o mesmo) que é dado com o fato, consubstancial ao anterior, de que nos entendemos uns aos outros ao dizê-lo — por mais confusamente que seja —, esse dado é o seguinte: o ser mesmo nos é dado como sentido. O ser não tem sentido, mas o ser mesmo, o fenômeno do ser, é o sentido, que por sua vez é sua própria circulação — e nós somos essa circulação.

Não há sentido se o sentido não for compartilhado, e isso não porque haveria uma significação, última ou primeira, que todos os entes teriam em comum, mas porque o sentido é ele mesmo o compartilhamento do ser. O sentido começa onde a presença não é pura presença, mas se desdobra para ser ela mesma como tal. Esse “como tal” pressupõe afastamento, espaçamento e partilha da presença. O próprio conceito de “presença” contém a necessidade dessa partilha. A pura presença não compartilhada, presença de nada, para nada, não é nem presente nem ausente: simples implosão sem vestígios de um ser que nunca teria existido.

É por isso que o que se chama de “a criação do mundo” não é a produção a partir do nada de um puro algo, que [20] apenas implodiria no nada de onde nunca teria saído, mas é a explosão da presença na multiplicidade originária de sua partilha. Explosão do nada, de fato: espaçamento do sentido, espaçamento como sentido e circulação. O nihil da criação é a verdade do sentido, mas o sentido é a partilha originária dessa verdade. O que também se expressa assim: o ser só pode ser sendo-uns-com-outros, circulando no com e como o com dessa coexistência singularmente plural.

Não há outro sentido, se assim for permitido dizer, senão o sentido da circulação — e esta vai em todas as direções simultaneamente, em todos os sentidos de todos os espaços-tempos abertos pela presença à presença. Todas as coisas, todos os entes, todos os existentes, os passados e os futuros, os vivos e os mortos, os inanimados, as pedras, as plantas, os pregos, os deuses — e “os homens”, ou seja, aqueles que expõem como tal a partilha e a circulação, dizendo “nós”, dizendo-se nós em todos os sentidos possíveis dessa expressão, e dizendo-se nós para a totalidade do ente.

Davide Tarizzo

Richardson & O’Byrne

Original

  1. Reconhecer-se-á facilmente o que provém aqui do § 32 de Ser e Tempo. Mas importa-me menos, de maneira geral e exceto em casos de necessidade, desenvolver o que caberia a um comentário de Heidegger, do que avançar a partir dele, e de alguns outros — ou seja, no fundo, a partir de nós. Nesse “nós”, e nessa relação com Heidegger, é preciso recordar a contribuição singular de Hannah Arendt e de sua reflexão sobre a “pluralidade humana”, agora acessível em francês (O que é a política?, tradução e prefácio de Sylvie Courtine-Denamy, Paris, Le Seuil, 1995).[↩]
  2. On reconnaîtra facilement ce qui provient ici du § 32 de Être et temps. Mais il m’importe moins, de manière générale et sauf cas de nécessité, de développer be qui relèverait d’un commentaire de Heidegger, que d’avancer à partir de lui, et de quelques autres — c’est-à-dire au fond à partir de nous. Dans ce nous, et dans ce rapport à Heidegger, il faut rappeler la part singulière de Hannah Arendt et de sa réflexion sur la « pluralité humaine », désormais accessible en français (Qu’est-ce que la politique ?, trad, et préface de Sylvie Courtine-Denamy, Paris, Le Seuil, 1995).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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