- Ribeiro de Moura
- Original
Ribeiro de Moura
Mais uma vez, é evidente que não é concebível nenhuma relação de causalidade entre o sujeito e seu corpo, seu mundo ou sua sociedade. Sob pena de perder o fundamento de todas as minhas certezas, não posso pôr em dúvida aquilo que minha presença a mim mesmo me ensina. Ora, no momento em que me dirijo a mim mesmo para me descrever, entrevejo um fluxo anônimo, um projeto global em que ainda não existem “estados de consciência” nem, com mais razão ainda, qualificações de qualquer tipo. Não sou para mim mesmo nem “ciumento”, nem “curioso”, nem “corcunda” nem “funcionário”. Frequentemente nos espantamos de que o enfermo ou o doente possam suportar-se. E que para si mesmos eles não são enfermos ou moribundos. Até o momento do coma, o moribundo é habitado por uma consciência, ele é tudo aquilo que vê, ele tem este meio de escape. A consciência nunca pode objetivar-se em consciência-de-doente ou consciência-de-enfermo e, mesmo se o velho se queixa de sua velhice ou o enfermo de sua enfermidade, eles só podem fazê-lo quando se comparam aos outros ou quando se veem pelos olhos dos outros, quer dizer, quando têm de si mesmos uma (582) visão estatística e objetiva, e essas queixas nunca são inteiramente de boa-fé: regressando ao interior de sua consciência, cada um se sente além de suas qualificações e no mesmo instante se resigna a elas. Elas são o preço que pagamos, sem nem mesmo pensar nisso, para ser no mundo, uma formalidade sem problemas. Daí provém o fato de que podemos falar mal de nosso rosto e que todavia não desejaríamos trocá-lo por um outro. Ao que parece, nenhuma particularidade pode ser ligada à insuperável generalidade da consciência, nenhum limite pode ser imposto a esse poder desmedido de evasão. Para que algo pudesse determinar-me do exterior (nos dois sentidos da palavra determinar), seria preciso que eu fosse uma coisa. Minha liberdade e minha universalidade não poderiam admitir eclipse. É inconcebível que eu seja livre em algumas de minhas ações e determinado em outras: o que seria esta liberdade ociosa que deixa os determinismos funcionarem? Se se supõe que ela se abole quando não age, de onde ela renasceria? Se, por uma circunstância improvável, eu tivesse podido fazer-me coisa, como em seguida eu tornaria a fazer-me consciência? Se, por uma única vez, sou livre é porque não faço parte das coisas, e é preciso que eu o seja sem cessar. Se uma única vez minhas ações deixam de ser minhas, elas nunca voltarão a sê-lo; se perco meu poder sobre o mundo, não o recuperarei. Também é inconcebível que minha liberdade possa ser atenuada; não se poderia ser um pouco livre, e, como se diz frequentemente, se motivos me inclinam em uma direção, de duas coisas uma: ou eles têm a força de me fazer agir, e então não existe liberdade, ou eles não a têm, e então ela é inteira, tão grande nas piores torturas quanto na paz da minha casa. Deveríamos então renunciar não apenas à ideia de causalidade, mas ainda à de motivação. O pretenso motivo não pesa em minha decisão, ao contrário é minha decisão que lhe empresta sua força. Tudo o que “sou” graças à natureza ou à história — corcunda, belo ou judeu (583) — nunca o sou inteiramente para mim mesmo, como o explicávamos há pouco. E sem dúvida eu o sou para outrem, mas permaneço livre de pôr outrem como uma consciência cujas visões me alcançam até em meu ser, ou ao contrário como um simples objeto. É verdade ainda que esta própria alternativa é um constrangimento: se sou feio, tenho a escolha de ser reprovado ou de reprovar os outros, deixam-me livre entre o masoquismo e o sadismo, e não livre para ignorar os outros. Mas essa alternativa, que é um dado da condição humana, não o é para mim enquanto pura consciência: ainda sou eu quem faz outrem ser para mim e quem nos faz um e outro sermos como homens. Aliás, mesmo se o ser humano me fosse imposto, apenas a maneira de ser sendo deixada à minha escolha, a se considerar esta própria escolha e sem distinção do pequeno número de possíveis, ela ainda seria uma escolha livre. Se se diz que meu temperamento me inclina mais para o sadismo ou antes para o masoquismo, trata-se ainda de uma maneira de falar, pois meu temperamento só existe para o conhecimento secundário de mim mesmo que tenho pelos olhos de outrem, e contanto que eu o reconheça, o valorize e, neste sentido, o escolha. O que engana sobre isso é o fato de que frequentemente procuramos a liberdade na deliberação voluntária que examina alternadamente os motivos e parece render-se ao mais forte ou ao mais convincente. Na realidade, a deliberação decorre da decisão, é minha decisão secreta que faz os motivos aparecerem e nem mesmo se conceberia o que pode ser a força de um motivo sem uma decisão que ele confirma ou contraria. Quando renunciei a um projeto, repentinamente os motivos que eu acreditava ter para mantê-lo tornam a cair sem força. Para restituir-lhes uma força, é preciso que eu faça o esforço de reabrir o tempo e de me recolocar no momento em que a decisão ainda não estava tomada. Mesmo enquanto delibero, já é por um esforço que consigo suspender o tempo, manter aberta (584) uma situação que sinto fechada por uma decisão que está ali e à qual resisto. É por isso que tão frequentemente, após ter renunciado a um projeto, experimento uma libertação: “Afinal, eu não me prendia tanto a ele”, só havia debate quanto à forma, a deliberação era uma paródia, eu já tinha decidido contra. Frequentemente cita-se a impotência da vontade como um argumento contra a liberdade. E com efeito, se posso voluntariamente adotar uma conduta e me improvisar guerreiro ou sedutor, não depende de mim ser guerreiro ou sedutor com facilidade e “naturalidade”, quer dizer, sê-lo verdadeiramente. Mas também não se deve procurar a liberdade no ato voluntário que é, segundo seu próprio sentido, um ato fracassado. Só recorremos ao ato voluntário para ir contra nossa verdadeira decisão, e como que com o propósito de provar nossa impotência. Se verdadeiramente tivéssemos assumido a conduta do guerreiro ou do sedutor, seríamos guerreiro ou sedutor. Mesmo aquilo que se chama de obstáculos à liberdade são na realidade desdobrados por ela. Um rochedo intransponível, um rochedo grande ou pequeno, vertical ou oblíquo, isso só tem sentido para alguém que se proponha a transpô-lo, para um sujeito cujos projetos recortem essas determinações na massa uniforme do em si e façam surgir um mundo orientado, um sentido das coisas. Portanto, finalmente não há nada que possa limitar a liberdade, senão aquilo que ela mesma determinou como limite por suas iniciativas, e o sujeito só tem o exterior que ele se dá. Como é ele que, surgindo, faz aparecer sentido e valor nas coisas, e como nenhuma coisa pode atingi-lo senão fazendo-se, por ele, sentido e valor, não existe ação das coisas sobre o sujeito, só existe uma significação (no sentido ativo), uma Sinngebung centrífuga. A escolha parece ser entre uma concepção cientificista da causalidade, incompatível com a consciência que temos de nós mesmos, e a afirmação de uma liberdade absoluta sem exterior. Impossível marcar um ponto para além do qual (585) as coisas deixariam de ser έφ᾿ἤμιν. Ou estão todas em nosso poder, ou nenhuma.
Original
- Au sens que nous avons, avec HUSSERL, donné à ce mot.[
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- Voir J.-P. SARTRE, L’Être et le Néant, pp. 508 et suivantes.[
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