Henry (2000) – A questão tornada crucial da impressão

Tradução

É essa destruição de toda impressão concebível no “fora de si” da exterioridade pura — onde tudo é sempre exterior a si, de onde toda autoimpressão é banida no princípio que ressaltam as extraordinárias Lições sobre o tempo que Husserl pronuncia em Göttingen no semestre de inverno dos anos 1904-1905. O pôr para fora de si da impressão já não é aqui sua projeção intencional na forma de uma qualidade sensível do objeto — o primeiro momento da edificação do universo (77) objetivo e espacial que é o da percepção dos objetos ordinários e que define, aos olhos de todos, o universo real. O pôr fora de si da impressão de que se trata aqui é muito mais originário, e muito menos evidente também; ele se produz de certo modo em nós, ali onde sentimos o conjunto de nossas impressões e de nossas sensações, no nível disso a que Husserl chama de camada hilética — material, sensual, impressionai — da consciência. Lancemos novamente um olhar para esse estrato por princípio não intencional por exemplo, para um som impressionai experimentado em sua sonoridade pura e reduzido a esta.

Esse som se decompõe, vimos, em diferentes fases sonoras, de modo que, imediatamente assim que experimentadas, cada fase atual desliza para o “passado do instante”, para o “passado imediato” (soeben gewesen), e essa fase passada para o instante desliza por sua vez para um passado cada vez mais longínquo. Porque esse deslizamento para o passado é dado a uma intencionalidade – a retenção –, ele é a vinda para fora em sua forma primitiva, o Ek-stase em seu surgimento original, a Diferença (Différence) que se pode, com efeito, escrever Diferança (Différance) porque não é nada além do puro fato de di-ferir, de afastar, de separar – o primeiro afastamento. Este deslizamento da impressão para fora de si é o próprio decorrer da temporalidade, sua temporalização originária; é o “fluxo” da consciência. Que esta vinda para fora da impressão na retenção signifique sua destruição, vê-se pelo fato de que, “passada ao instante”, “imediato passado”, ela não é menos inteiramente passada — já não do ser, mas do nada: já não é uma impressão atualmente vivida, presente, nenhuma parcela de realidade subsiste nela. É o que declara explicitamente Husserl: “O som retencional não é um som presente (…), ele não se encontra realmente ali, na consciência retencional”.1

É verdade que a consciência retencional não está isolada; ela se entrelaça constantemente com uma consciência de agora que, por sua vez, está ligada a uma protensão, de modo que somente a síntese jamais desfeita dessas três intencionalidades constitui a consciência interna do tempo — essa consciência que nos dá o som que dura através de suas fases sucessivas, em seu decorrer concreto. Para dizê-lo de outro modo, considerando já não a consciência que constitui o som ouvido temporalmente, o som que dura, mas este último: nenhuma fase desse som é separada das outras, nenhuma fase “passada para o instante” é possível sem a fase atual de que ela é o deslocamento imediato para o passado, nenhuma fase atual é dada sem a fase “passada para o instante” em que ela se transforma imediatamente. Diga-se o mesmo das fases vindouras, que se modificam constantemente em fases atuais e depois passadas. Sendo assim, se a consciência retencional não nos dá senão uma fase “passada para o instante” e, todavia, inteiramente passada, não se pode dizer do mesmo modo: a consciência do agora dá a fase atual do som e, assim, a realidade da impressão, a impressão presente em sua presença efetiva?

Duas dificuldades insuperáveis, e aliás correlativas, surgem aqui. Assim como retenção e protensão, a consciência do agora é uma intencionalidade; ela faz ver fora de si, e se nenhuma impressão advém num meio de exterioridade pura porque a realidade da impressão, e assim toda e qualquer realidade impressional, toca a si em cada ponto de seu ser e não difere nunca de si, então a consciência do agora se revela tão incapaz de dar a realidade da impressão, sua presença, sua atualidade quanto o são, por seu lado, a retenção e a protensão. É o que mostra o correlato dessa consciência intencional do agora, o que ela dá precisamente: esse fluxo temporal que é inteiramente escoamento e no qual não há nenhum ponto fixo, nenhum “agora” propriamente dito. “No fluxo e por princípio nenhum fragmento de não fluxo pode aparecer” (Ibidem, p. 152).

Essa incapacidade paradoxal da consciência do agora de dar ao presente o que precisamente não é em si jamais presente, mas sempre fluxo, passagem, deslocamento constante, é o que tenta camuflar a (79) ideia de síntese contínua pela qual uma consciência retencional se enlaça com essa consciência do agora, de maneira que a fase atual não é dada senão deslizando para o passado e o que é dado, afinal de contas, é esse deslizar para o passado como tal. É verdade que a fase “passado para o instante” não é concebível senão como a fase passada de uma fase que acaba de ser atual. Mas o que é essa fase atual além de uma exigência lógica, na medida em que a consciência do agora é, na realidade, incapaz de dá-la? Se, com efeito, se considera que o fluxo em seu conjunto é esse deslizar contínuo das fases impressionais, das fases sonoras, por exemplo, para o passado, então é preciso dizer com Husserl: o presente, “o agora não é senão um limite ideal”. (Ibidem, p. 56) Tomada entre fases por vir e fases passadas que são, umas e outras, irrealidades, nas quais nenhuma sonoridade real ressoa, a fase presente, onde não há nada de presente, que desaba constantemente no não ser do passado, não é mais que o lugar do aniquilamento; reduzida a um limite ideal entre irrealidades e ela própria duplamente irreal, revela-se incapaz de introduzir na audição do som que dura a realidade de uma impressão sonora efetiva, por breve que seja, sem a qual nenhuma audição de espécie alguma jamais pareceu possível.

Que dizer, enfim, da intencionalidade dada pelo presente com esse senso de dar o presente — da consciência do agora? Não é ela mesma — na medida em que escapa à noite do inconsciente onde nenhuma doação se cumpre — uma impressão? Captada inteira, a mesmo título que a impressão sonora, pelo transcurso, como ela escaparia mais que esta ao desvanecimento universal?

Husserl se perguntou o que, no fluxo, escapa ao fluxo. Diz ele: “a forma do fluxo”. (Ibidem, p. 152) A forma do fluxo é a síntese das três intencio-nalidades — protensão, consciência do agora, retenção — que constituem, em conjunto, a estrutura a priori de todo “fluxo” possível. Nela se opera o surgimento da exterioridade, sua exteriorização, (80) o “fora de si” que é identicamente o horizonte tridimensional do tempo e do mundo: seu aparecer. Mas — a mesmo título que o aparecer do mundo, do qual ela não é senão outro nome, e pela mesma razão — a forma do fluxo é vazia, incapaz de produzir seu conteúdo, essa onda de impressões que desfilam através dela — através do futuro, do presente e do passado — mas sem encontrar nela sua realidade. Muito pelo contrário: na medida em que devem aparecer às intencionalidades que compõem a estrutura formal do fluxo, todas essas impressões são igualmente irreais: as fases futuras ou passadas, que não são ainda ou já são do não ser; a fase dita presente, que não é senão um limite ideal entre dois abismos de nada.

De onde vem então a impressão, a impressão real, se não é do futuro nem do passado nem, menos ainda, de um presente reduzido a um ponto ideal? Essa dificuldade incontornável não escapa a Husserl; ela suscita no texto das Lições uma inversão extraordinária: já não é a consciência do agora que dá a impressão real, mas é a impressão real que dá o agora. Tal é a declaração, tão maciça quanto imprevista: “(…) um agora se constitui por uma impressão (…)” (Ibidem, p. 152). Eis outras duas formulações, tão nítidas quanto a anterior: “Para falar propriamente, o próprio instante presente deve ser definido pela sensação originária”; “A impressão originária tem por conteúdo o que significa a palavra agora, na medida em que é tomada no sentido mais originário” (Ibidem, p. 88). Já não é uma intencionalidade, a consciência do agora, o que define o instante presente: é a “impressão originária” que contém a realidade do agora, ou “o que significa a palavra agora na medida em que é tomada no sentido mais originário”.

Longe de ser pensada até o fim, no entanto, essa singular troca de papéis entre a consciência do agora e a impressão constituiu o objeto de um travestimento imediato. A consciência intencional do agora não produz, como o vimos, senão a ideia do agora, a significação (81) de estar aí agora, de estar presente, a forma vazia do agora e do presente, sem que haja ainda nada presente, nenhum conteúdo real no fluxo. A essa consciência vazia, Husserl acrescenta bruscamente o conteúdo real e concreto que lhe falta: a impressão. De onde ela vem? Em que consiste essa vinda? Qual é seu aparecer? Como este último continua a ser pensado como o “fora de si” da forma do fluxo, é a esta que se pede o que, precisamente, ela é incapaz de fornecer, a impressão real que nunca se mostra nela. Então se opera no texto husserliano uma série de deslocamentos: da forma vazia do fluxo à constatação de um conteúdo que supostamente se mostra nela — dessa constatação (em si mesma falaciosa) à ideia de que esse conteúdo estranho à forma, exterior a ela, não lhe é, no entanto, exterior mas ligado, é resultante dela de algum modo, se encontra determinado por ela — ainda que tal determinação não baste para dar plenamente conta dela. Eis a série de equívocos: “O que permanece antes de todas as coisas é a estrutura formal do fluxo, a forma do fluxo (…), mas (…) a forma permanente é sem cessar preenchida novamente por um ‘conteúdo’, mas o conteúdo não é precisamente nada introduzido exteriormente na forma; é, ao contrário, determinado pela forma da lei: com a ressalva de que essa forma não determina o concreto por si só. A forma consiste nisto: que um agora se constitua por uma impressão (…)” (Ibidem, p. 152). A forma vazia estranha a todo conteúdo, tão incapaz de criá-lo quanto de torná-lo manifesto em sua realidade, torna-se por um toque de varinha mágica seu próprio conteúdo, a impressão em si mesma: ela a traz em si, ele lhe pertence. Já não há lugar para questionar a impressão a partir de outra coisa que não seja a forma do fluxo — a partir dela mesma e de sua vinda, de seu modo de revelação próprio. O preconceito grego se fecha sobre o acontecimento radical que o vinha romper.

Mas, quando a impressão supostamente pertencente à forma do fluxo chega a este último, ela o faz numa consciência intencional do agora cujo próprio é, lançando esta impressão para fora de si, (82) destruí-la. Inútil enlaçar a essa consciência do agora uma retenção que faz desabar toda a realidade no não ser do passado: a consciência do agora já se encarregou disso. Pois a vinda da impressão no fluxo da consciência não é, com efeito, senão isto: a introdução nela do afastamento pelo qual é separada de si, cortada ao meio — como a criança que as duas mulheres puxavam sob os olhos do rei Salomão, que propôs cortá-la ao meio, com efeito, para dar uma metade a cada uma —, des-feita e, portanto, privada de seu fruir interior que a diferencia para sempre de todas as coisas inertes, de todas as que se dão a nós no aparecer do mundo.

Conjurar o desmoronamento ontológico da impressão e, com ela, de toda realidade e de toda presença efetiva — é para isso que se esforça a descrição husserliana que faz renascer a cada instante do fluxo a realidade que ele aniquila sem dificuldade. No próprio lugar onde a impressão acaba de ser condenada à morte, afastada no “fora de si” do Ek-stase do tempo, surge uma nova impressão, vinda de alhures, mas imediatamente aniquilada. Donde o caráter alucinante do fluxo husserliano, esse brotar contínuo de ser sobre o abismo de um nada que se abre constantemente sob ele para devorá-lo — o pretenso continuum desse fluxo constantemente destruído, sua realidade soi-disant homogênea despedaçada, em pedaços de ser e de não ser que se comutam numa descontinuidade quase impensável. O último texto citado continua assim: “A forma consiste em que um agora se constitui por uma impressão e em que a esta se articula uma fila de retenções e um horizonte de protensões. Mas essa forma permanente (a forma do fluxo) encerra em si a consciência da mutação permanente que é um fato originário: a consciência da mutação da impressão em retenção, enquanto de novo continuamente uma impressão está aí” (Ibidem). O texto incoerente que pretendia imputar à forma vazia do fluxo o conteúdo que lhe falta tão cruelmente — a impressão real que ela empurra imediatamente para sua sepultura — não pode senão oferecer à nossa admiração a ressurreição tão (83) milagrosa quanto permanente de uma impressão sempre nova e que, sempre e a cada instante, vem salvar-nos do nada.

De onde vem ela, com efeito? Como? Como se apoderaria de nós, estreitando-nos contra ela para fazer de nós, viventes?

Original

(MH2000)

  1. HUSSERL, Edmund. Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps. Paris: PUF, 1964, p. 42.[↩]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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