Henry (1990) – sociedade

Tradução

(…) O que caracteriza o marxismo do ponto de vista teórico é a substituição do indivíduo vivo por um número de entidades abstratas, através das quais ele afirma explicar a totalidade dos fenômenos econômicos, históricos e sociais e, finalmente, esses próprios indivíduos. Isso leva a uma reversão extraordinária da ordem das coisas no final das quais o princípio, o indivíduo vivo, se tornou o resultado de abstrações que tomaram seu lugar. Essas abstrações são os produtos do pensamento, os objetos do pensamento. Eles se referem a ele, indivíduo vivo, e não existiriam sem ele. Como objetos, são coisas mortas no sentido rigoroso do termo: a vida não está presente nos conteúdos representados que tomaram seu lugar. Como objetos, eles não sentem e não sentem a si mesmos, não experimentam, não sofrem e não são animados por nenhum impulso que conduz à sua felicidade – em suma, não obedecem à lei geral de prazer e dor. Eles não estão vivos. Os objetos de pensamento pelos quais o marxismo substituiu os indivíduos vivos são a história da sociedade e as classes sociais. E agora podemos entender por que regimes construídos sobre abstrações como essas só podem ser regimes de morte, como pode ser visto em qualquer lugar em que os comunistas se apoderassem do poder e o marxismo se tornasse o princípio organizador da sociedade.

(…) Um objeto de pensamento no sentido adequado é um conceito, por exemplo, o conceito de “história”, “sociedade” ou “classe social”. Um conceito é uma objetividade ideal e, como tal, é estranho à realidade e notavelmente à realidade da vida. É por isso que é despojado de todas as propriedades reais ou vivas: de acordo com a famosa proposição de Espinosa, o conceito de um cão não late. Poder-se-ia de fato reprovar o marxismo por usar conceitos e por falar em forças produtivas, relações de produção, etc. Mas não é esse o caso de toda teoria? Não é uma teoria uma cadeia conceitual que se justifica teoricamente, ou seja, conceitualmente? No entanto, há algo mais acontecendo no marxismo e nas ciências humanas com o qual ele é tão próximo e que tantas vezes o inspiraram. É a crença de que a realidade pensada no conceito é do mesmo tipo que o conceito. Como o conceito, é uma realidade geral. A sociedade é assim entendida ilusoriamente no modelo de e no mesmo molde que o conceito de sociedade. E assim como a extensão do conceito inclui todos os entes que lhe correspondem empiricamente (da maneira que a extensão do conceito da árvore inclui todas as árvores reais), a sociedade real também é coberta pelo conceito de sociedade. É apresentada como uma realidade geral definida por um conjunto de características e que inclui nela todos os entes que compartilham as mesmas características – todos os indivíduos. Essa sociedade se tornou sociedade: uma realidade singular e única cujos constituintes, indivíduos, são seu espelho e reflexo. É uma reflexão específica porque reflete e se assemelha à Sociedade, assim como cada árvore se assemelha à Árvore. Cada indivíduo é a imagem da sociedade à qual pertence; cada um é um filho dos tempos. Ou melhor, a sociedade é o todo e o indivíduo é a parte, uma parte que é uma função do todo. O indivíduo é definido e determinado por ele.

Como o indivíduo é definido pela Sociedade dos tempos? Como o indivíduo é determinado por ela a ponto de parecer um mero produto dela? Essas perguntas podem ser respondidas rapidamente, uma vez que esse é um dos lugares comuns repetidos por meio século pelos professores de todos os países. Desde a infância, ou mais precisamente desde o início da escola, o indivíduo fala a língua dessa sociedade, uma língua que já existe e na qual está imerso. Essa linguagem carrega toda uma série de significados e, finalmente, uma ideologia que o estudante inspira e expira com cada palavra que é ouvida ou proferida. Essa permeação vai tão longe que seria mais preciso dizer que não é o indivíduo que fala, mas a linguagem que fala dentro do indivíduo. É assim que se adquire um corpo inteiro de conhecimento junto com uma linguagem, o conhecimento da sociedade dos tempos. Mais precisamente, esse conhecimento é o que permite ocupar o lugar designado, seguir uma carreira, função estabelecida pela rede de relações sociais que compõem a sociedade – “relações sociais” – e que resulta de suas interseções. Um ocupará um lugar predefinido pela sociedade e outro será o funcionário para esta função. Tudo isso é tão simples e claro …

Para Marx, a sociedade não existe. Esta tese aparentemente paradoxal é afirmada com uma força irresistível, uma vez que a reconecta com a intuição fundamental de seu pensamento, a saber, que a realidade reside na vida e somente nela e que, além disso, essa vida existe apenas de forma individual, na forma de indivíduos vivos. Posteriormente, torna-se evidente, não através de uma evidência ingênua que apenas olha para a superfície das “coisas” e não as compreende em si mesmas, mas através da evidência metafísica de que Descartes fala. É um conhecimento interior da realidade delas. Torna-se então evidente que a sociedade é apenas uma palavra ou, na melhor das hipóteses, um conceito para designar outro tipo de realidade: a realidade dos indivíduos vivos que constituem sua substância. Esse é outro tipo de realidade que não o de uma idealidade ou de um conceito, uma vez que nunca é objeto de uma consideração. Em vez disto, a realidade da vida é irredutível sob qualquer aspecto; é esmagada sobre si mesma e sucumbe sob o peso de seu próprio pathos – é uma realidade como da fome, dor, sofrimento, esforço para carregar algo, ganhar peso, bater em algo com um martelo, ou até mesmo a irresistível felicidade de existir. O fato da sociedade não ter uma realidade própria, específica ou geral, diferente da realidade dos indivíduos é o que resulta da polêmica de Marx contra Stirner: “Com a ajuda de algumas aspas, Sancho (Stirner) aqui transforma todos’ indivíduos] em uma pessoa, sociedade como pessoa, como sujeito, etc.” 1.

Seria errado considerar esta discussão sobre a natureza da sociedade como se fosse o resultado de alguma disputa medieval. Tem um impacto duplo, teórico e prático, que se refere diretamente aos eventos que estamos observando hoje. No nível teórico, a tese de que a sociedade constitui uma realidade específica, diferente da dos indivíduos, significa que há necessariamente uma mudança de níveis na passagem de um para o outro. Salta-se, de certo modo, de um nível qualitativo para outro. Segue-se que as leis da sociedade e dos fenômenos sociais são diferentes das leis pertencentes aos próprios indivíduos, por exemplo, as leis de suas mentes. Uma afirmação como essa é feita, por exemplo, por Dürkheim e sua escola. Ele afirmou que ele não apenas é uma lei sociológica essencial, mas o princípio fundador da própria sociologia, pois é apenas se a sociedade constitui uma realidade sui generis, estruturada por um sistema de regras absolutamente próprias, que alguém poderia instituir uma disciplina autônoma com estruturas e leis próprias e com domínio próprio de objetos irredutíveis a quaisquer outros domínios. A sociologia durkheimiana, como é sabido, foi recebida favoravelmente pelo marxismo devido à semelhança, e até à mesmice, de sua hipótese fundamental.

A partir desta tese, segue-se outra consequência que é de importância direta para nós. Se a sociedade é constituída por um sistema de regulamentos heterogêneo àqueles cuja fonte está na vida subjetiva dos indivíduos, então entre esses dois sistemas de regulamentos – aqueles que são sociais e coletivos e aqueles que são individuais e subjetivos – uma dissimetria mais séria é introduzido: uma diferença de peso. O indivíduo, com seus desejos infantis e suas aspirações desapontadas, parece bastante frágil em comparação com o grande poder da sociedade cujos imperativos – trabalhar, agir de uma maneira estritamente determinada por ele e, primeiro, falar sua língua, submeter-se ao ensino, à ideologia etc. – são impostas invencivelmente ao indivíduo. Essa pressão social é tão forte que se põe em dúvida se, diante disso, alguma realidade adequadamente individual pode permanecer, como um domínio em que o indivíduo estaria em casa. Os próprios psicólogos foram levados a reconhecer a presença de normas e representações sociais na mente do indivíduo, e isso ocorre através de uma internalização dos ideais da coletividade. Essa internalização, por exemplo, é a origem do superego freudiano, o que significa que os imperativos da sociedade se tornam os do indivíduo, quaisquer que sejam os preconceitos que possam resultar para o indivíduo.

Com uma violência extraordinária, Marx rejeitou antecipadamente as bem conhecidas teses que acabamos de reafirmar. Ele não apenas nega a realidade da sociedade como uma entidade substancial e autônoma; ele tira consequências decisivas dessa negação. Pois, se a realidade da sociedade pode ser totalmente decomposta na subjetividade viva dos indivíduos que a compõem, então as leis da sociedade só podem ser as leis dessas subjetividades vivas. Essas leis dizem respeito à reiteração contínua de desejos e impulsos, bem como à satisfação bem-sucedida, diferida ou fracassada – as leis de uma história cujo princípio é afetivo. Essas leis, como a história que elas determinam, na verdade não têm relação com as leis de uma realidade objetiva externa ao indivíduo, como a sociedade de Dürkheim ou dos marxistas. Em sua polêmica contra Proudhon, Marx desafia a existência da sociedade como uma realidade posta além dos indivíduos e independente deles, guiando-os em virtude de suas próprias normas, pelas quais eles, conscientemente ou não, seriam seus brinquedos. Imediatamente depois disso, Marx rejeita o absurdo dessa noção de que a sociedade poderia seguir outras leis além daquelas originadas no indivíduo: “M Proudhon personifica a sociedade; ele a transforma em uma pessoa, sociedade – uma sociedade que não é de modo algum uma sociedade de pessoas, uma vez que possui leis separadas, que nada têm em comum com as pessoas de que a sociedade é composta e sua própria “inteligência”. que não é a inteligência de homens comuns, mas uma inteligência desprovida de bom senso” 2.

Original

(MH1990)

  1. Marx, The German Ideology, 271.[↩]
  2. Karl Marx, The Poverty of Philosophy (New York: International Publishers), 91.[↩]
  3. L’Idéologie allemande, op.cit., Costes, VII, 200-201; Éditions Sociales, 233.[↩]
  4. Marx, Œuvres, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, Paris I, p. 62-63, souligné par nous.[↩]

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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