GA9:352-359 – ethos e ontologia

Giachini & Stein

Se a humanitas é levada em consideração de modo tão essencial para o pensar do ser, porém, então não será preciso que a “ontologia” seja complementada com a “ética” ? Neste caso, não é totalmente essencial o vosso esforço, um esforço que o senhor expressa na sentença : “Ce que je cherche à faire, depuis longtemps, c’est préciser le rapport de l’ontologie avec une éthique possible” ?

Logo depois que Ser e tempo foi lançado, um jovem amigo me perguntou : “Quando é que o Senhor irá escrever uma ética” ? Onde a essência do homem é pensada de modo tão essencial, a saber, unicamente a partir da pergunta acerca da verdade do ser, onde apesar disto o homem não é colocado como o centro do ente, deve despertar o desejo por indicações vinculantes e por regras que rezem qual o modo adequado de viver do homem que, partindo da ek-sistência, se dirige para experimentar o ser. O desejo por uma ética se vê impingido a buscar sua realização com tanto mais ardor, quanto mais aumenta a perplexidade do homem, a manifesta não menos do que a velada, até atingir a desmedida. É preciso dedicar todo cuidado à vinculação por meio da ética, visto que o (366) homem da técnica, exposto às instituições de massa, só poderá ainda ser levado a uma estabilidade confiável por meio de uma reunião e ordenação da totalidade de seus planos e ações que seja correspondente à técnica.

Quem poderia negligenciar e não ver esta situação de penúria ? Não deveríamos conservar e assegurar os vínculos existentes, mesmo quando mantêm o ser humano unido de modo tão pobre e voltado apenas para o mero momento presente ? Certamente. Mas será que essa necessidade desincumbe o pensar de ocupar-se com aquilo que por enquanto continua sendo o que deve ser pensado e que, enquanto ser, precedendo todo ente, é a garantia e a verdade ? E ademais, o pensar poderá subtrair-se de pensar o ser, depois que este se ocultou em um longo esquecimento, e, agora, nesse momento da atualidade do mundo, se anuncia por meio do abalo de todo ente ?

Antes de tentarmos definir com mais precisão a relação entre “a ontologia” e “a ética”, precisamos perguntar o que são “a ontologia” e “a ética” elas mesmas. Será necessário sopesar com vagar se aquilo que pode ser denominado em ambos os títulos continua sendo adequado e próximo à tarefa do pensar que, enquanto pensar, antes de qualquer outra coisa, deve pensar a verdade do ser.

Mas se tanto “a ontologia” quanto a “ética”, juntamente com todo pensar estruturado em disciplinas, devessem se tornar obsoletos, e se, com isto, nosso pensar devesse se tornar mais disciplinado, o que aconteceria, então, com a pergunta sobre a relação entre as duas mencionadas disciplinas da filosofia?

A “ética” surgiu pela primeira vez junto com a “lógica” e a “física” na escola de Platão. Estas disciplinas surgem em uma época em que ao pensar é permitido tornar-se “filosofia” e em que a filosofia, porém, se transforma em ἐπιστήμη (ciência) e a própria ciência, em assunto de escola e de atividades escolares. Nesta passagem pelo que se compreende assim como filosofia vem à tona a ciência, perece o pensar. Os pensadores anteriores a essa época não conhecem nenhuma (367) “lógica”, nem “ética” e nem “física”. Mas nem por isto seu pensar é ilógico ou amoral. No entanto, eles pensaram a φύσις em uma profundidade e amplidão nunca mais alcançada por toda a “física” posterior. Caso seja permitido uma tal comparação, em suas sagas, as tragédias de Sófocles guardam o ἦθος de modo mais originário do que as preleções de Aristóteles sobre “ética”. Uma sentença de Heráclito, composta de três palavras apenas, diz algo tão simples, que a partir dela se manifesta a essência do ethos de maneira imediata.

A sentença de Heráclito diz (Fragm. 119): ἦθος ἄνθρωπω δαίμων. Em geral, costuma-se traduzir essa sentença da seguinte forma: “Para o homem, o seu modo próprio de ser é seu demônio”. Essa tradução pensa de modo moderno, mas não grego, ἦθος significa morada, lugar onde morar. A palavra nomeia o âmbito aberto, no qual mora o homem. O aberto de sua morada permite a manifestação do que advém à essência do homem, ou seja, o que, advindo, se estabelece em sua proximidade. A morada do homem contém e guarda o advento daquilo ao que pertence o homem em sua essência. Segundo as palavras de Heráclito, isto é ο δαίμων, o deus. A sentença diz: o homem, enquanto é homem, mora nas cercanias de deus. Concorda com essa sentença de Heráclito uma história narrada por Aristóteles (De pari. anim. A 5, 645 a 17). Ela diz assim: (…)

De Heráclito conta-se que ele teria dito uma palavra a estrangeiros que queriam visitá-lo. Aproximando-se dele, viram-no esquentando-se junto a um forno. Ficaram de pé surpresos, e isto sobretudo porque ele os encorajou ainda, estando eles vacilantes, convidando-os a se aproximarem com as palavras: “Também aqui estão presentes os deuses”.

É bem verdade que a história fala por si. No entanto, vamos destacar alguns pontos.

Em sua curiosidade e intromissão junto ao pensador, a multidão dos visitantes estrangeiros, no primeiro vislumbre (368) de sua morada, encontram-se decepcionados e desconcertados. A multidão acredita dever encontrar o pensador em situações nas quais, em contraposição ao cotidiano usual do homem, se mostram por toda parte as marcas do extraordinário e raro, situações que, por isto, devem ser emocionantes. Em sua visita ao pensador, a multidão espera encontrar coisas que – pelo menos por certo espaço de tempo – forneçam material para uma boa conversa e entretenimento. Os estrangeiros, que querem visitar o pensador, esperam talvez encontrá-lo precisamente no momento em que, mergulhado em um sentido profundo, está a pensar. Os visitantes querem “vi-venciar” isto; em verdade, não para serem atingidos pelo pensamento, mas simplesmente para poderem afirmar já terem visto e ouvido alguém de quem se diz reiteradamente ser um pensador.

Em vez disto, os curiosos encontram Heráclito junto ao forno. Trata-se de um lugar muito cotidiano e que não chama a atenção. Todavia, é aqui que se assa o pão. Porém, Heráclito não está ocupado nem sequer com o assar. Só está ali de pé para se esquentar. E assim, neste lugar cotidiano e simplório, ele denuncia sem mais toda a pobreza de sua vida. A visão de um pensador com frio tem pouca coisa a oferecer de interessante. Nessa visão decepcionante, os curiosos acabam perdendo inclusive e de imediato o prazer de se achegar mais perto. O que deveríam também procurar ali? Uma ocorrência assim cotidiana e sem atrativo como o fato de alguém ter frio e estar junto ao forno pode ser encontrada por qualquer um em sua própria casa e a qualquer hora. Para que deveríam, então, procurar um pensador? Os visitantes já estão em vias de se retirarem. Heráclito vê a curiosidade frustrada em seus semblantes. Se dá conta que já o fato de não ter se realizado uma sensação esperada é o suficiente para que esse grupo que acabara de chegar dê logo meia volta e parta em retirada. Por isto, encoraja-os. Ele os convida a entrar, apesar de tudo, dizendo-lhes: εἶναι γαρ καί ενταύθα – ϑεούς, “Também aqui estão presentes os deuses”.

Esta sentença coloca sob uma outra luz a morada (ἦθος) do pensador e seu fazer. Se os visitantes compreenderam (369) imediatamente essa palavra ou se chegaram mesmo algum dia a compreendê-la, vendo, então, tudo a partir dessa nova luz, isto o relato não nos conta. Mas o que fundamenta o fato de essa história ter sido contada e continuar sendo transmitida a nós, homens de hoje, é o fato de aquilo que ela narra provir da e caracterizar a atmosfera deste pensador. Καί ἐνταυϑα, “também aqui”, junto ao forno, neste lugar comum, onde qualquer coisa e qualquer circunstância, todo fazer e pensar é familiar e usual, isto é, ordinário, “também aqui”, no círculo do pacato e ordinário, εἶναι ϑεούς, as coisas se dão de tal modo “que os deuses estão presentes”.

ἦθος ἀνθρώπω δαίμων, diz o próprio Heráclito: “a morada (ordinária) é para o homem o aberto para a presentificação do deus (do ex-traordinário)”.

Agora então, se, de acordo com o significado fundamental da palavra ἦθος, a palavra ética significa que com ela se está pensando a morada do homem, então aquele pensar que pensa a verdade do ser como o elemento originário do homem, enquanto ek-sistente, já é em si ética. Mas esse pensar não é ética só porque é ontologia, pois a ontologia pensa sempre somente o ente (ὄν) em seu ser. Todavia, enquanto não se pensa a verdade do ser, toda ontologia continua sem fundamento. É por isto que o pensar, que em Ser e tempo se procurou pensar previamente na verdade do ser, é designado como ontologia fundamental. Essa ontologia busca retornar ao fundamento essencial a partir do qual surge o pensar da verdade do ser. Já por meio do ponto de partida do outro perguntar, esse pensar se exclui da “ontologia” da metafísica (inclusive daquela de Kant). “A ontologia”, porém, seja ela transcendental ou pré-crítica, está submetida à crítica não por pensar o ser do ente, forçando, assim, o ser a entrar no conceito, mas porque não pensa a verdade do ser e, com isto, desconhece que há um pensar que é mais rigoroso do que o conceitual. Na penúria de sua primeira investida, o pensar que procura pensar previamente a verdade do ser traz à fala uma parte muito pequena dessa dimensão totalmente diversa. Essa linguagem falsifica ainda a si mesma, na medida em que ainda não consegue manter o auxílio do modo de ver fenomenológico (370), renunciando ao mesmo tempo à pretensão incabida de ser “ciência” e “investigação”. Todavia, para tornar conhecida e ao mesmo tempo compreensível essa tentativa do pensar dentro da filosofia vigente, só foi possível falar de início a partir do horizonte daquilo que está em vigência e do uso dos termos que lhe são usuais.

Neste meio tempo, aprendi a perceber que justo estes títulos deveríam levar direta e inevitavelmente ao erro. Pois os termos e a linguagem conceitual que lhes está subordinada não foram re-pensados pelo leitor a partir da coisa em questão a ser primeiramente pensada, mas essa coisa em questão foi representada a partir dos termos fixados em sua significação usual. O pensar que pergunta pela verdade do ser, determinando aí a morada essencial do homem a partir do ser e na direção do mesmo, não é ética nem ontologia. Por isto, a pergunta pela relação entre as duas não tem mais qualquer fundamento neste âmbito. No entanto, a pergunta que você coloca, pensada de modo mais originário, contém um sentido e uma importância essencial.

É preciso realmente perguntar: se o pensar, refletindo sobre a verdade do ser, determina a essência da humanitas como ek-sistência a partir de seu pertencimento ao ser, esse pensar continua sendo apenas uma representação teórica do ser e do homem ou será possível retirar desse conhecimento algumas orientações para a vida prática e aplicá-las aí?

A resposta é: este pensar não é nem teórico nem prático. Ele acontece antes desta distinção. Este pensamento, enquanto é tal pensamento, é o pensar rememorante do ser e nada além disto. Ele pertence ao ser porque, jogado pelo ser na guarda de sua verdade e convocado para ela, ele pensa o ser. Esse pensar não produz nenhum resultado. Não tem efeitos. É suficiente para sua essência quando é. Mas só é enquanto diz a coisa que lhe está em questão. Historicamente, à coisa do pensamento pertence apenas e a cada vez uma saga, aquela adequada à sua determinação coisal. O caráter vinculativo da coisa que está para ele em questão é essencialmente superior à validade das ciências por ser mais livre. Pois deixa o ser – ser.

(371) O pensar trabalha construindo a casa do ser que, enquanto a junção fugidia do ser, dispõe a cada vez de modo adequado ao destino a essência do homem para o morar na verdade do ser. Esse morar é a essência do “ser-no-mundo” (cf. Ser e tempo, p. 54). A referência ao “ser-em” enquanto “morar”, que é lá encontrada, não é um jogo de palavras. A referência que se encontra na conferência de 1936 sobre a sentença de Hölderlin “Pleno de merecimento, mas poeticamente mora / nesta terra o homem”, não é nenhum enfeite de um pensar que, fugindo da ciência, busca refúgio na poesia. Ao falar da casa do ser, não se está transpondo a imagem da “casa” para o ser. Ao contrário, a partir da essência do ser, pensada de acordo com a coisa em questão, chegará o dia em que poderemos pensar melhor o que são “casa” e “morar”.

Mesmo assim, o pensar jamais cria a casa do ser. O pensar conduz a ek-sistência histórica, isto é, a humanitas do homo humano, para o âmbito do despontar da salvação.

Cortés & Leyte

Munier

  1. In die Wahmis seiner Wahrheit. Heidegger rapproche Wahmis à la fois du verbe wahren (= bewahren): garder, protéger, mettre à l’abri, et de l’adjectif wahr: vrai.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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