GA9:308-310 – O uso consumidor do ente

Ernildo Stein

É por isso que também se torna necessária a formulação do que até agora foi silenciado: situa-se este pensamento já na lei de sua verdade se apenas segue aquele pensamento compreendido pela “lógica”, em suas formas e regras? Por que põe a preleção esta expressão entre aspas? Para assinalar que a “lógica’ é apenas uma das explicações da essência do pensamento; aquela que já, o seu nome o mostra, se funda na experiência do ser realizado pelo pensamento grego. A suspeita contra a lógica – como sua consequente degenerescência pode valer a logística – emana do conhecimento daquele pensamento que tem sua fonte na experiência da verdade do ser e não na consideração da objetividade do ente. De nenhum modo é o pensamento exato o pensamento mais rigoroso, se é verdade que o rigor recebe sua essência daquela espécie de esforço com que o saber sempre observa a relação com o elemento fundamental do ente. O pensamento exato se prende unicamente ao cálculo do ente e a este serve exclusivamente. Qualquer cálculo reduz todo numerável ao enumerado, para utilizá-lo para a próxima enumeração. O cálculo não admite outra coisa que o enumerável. Cada coisa é apenas aquilo que se pode enumerar. O que a cada momento é enumerado assegura o progresso na enumeração. Esta utiliza progressivamente os números e é, em si mesma, um contínuo consumir-se. O resultado do cálculo com o ente vale como o enumerável e consome o enumerado para a enumeração. Este uso consumidor do ente revela o caráter destruidor do cálculo. Apenas pelo fato de o número poder ser multiplicado infinitamente e isto indistintamente na direção do máximo ou do mínimo, pode ocultar-se a essência destruidora do cálculo atrás de seus produtos e emprestar ao pensamento calculador a aparência da produtividade, enquanto, na verdade, faz valer, já antecipando e não em seus resultados subsequentes, todo ente apenas na forma do que pode ser produzido e consumido. 0 pensamento calculador submete-se a si mesmo à ordem de tudo dominar a partir da lógica de seu procedimento. Ele não é capaz de suspeitar que todo o calculável do cálculo já é, antes de suas somas e produtos calculados, num todo cuja unidade, sem dúvida, pertence ao incalculável que se subtrai a si e sua estranheza das garras do cálculo. O que, entretanto, em toda parte e constantemente, se fechou de antemão, às exigências do cálculo e que, contudo, já a todo o momento, é, em sua misteriosa condição de desconhecido, mais próximo do homem que todo ente, no qual ele se instala a si e a seus projetos, pode, de tempos em tempos, dispor a essência do homem para um pensamento cuja verdade nenhuma “lógica” é capaz de compreender. Chamemos de pensamento fundamental aquele cujos pensamentos não apenas calculam, mas são determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o ente sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser. Este pensamento responde ao apelo do ser enquanto o homem entrega sua essência historial à simplicidade da única necessidade que não violenta enquanto submete, mas que cria o despojamento que se plenifica na liberdade do sacrifício.

É preciso que seja preservada a verdade do ser, aconteça o que acontecer ao homem e a todo ente. O sacrifício é destituído de toda violência porque é a dissipação da essência do homem — que emana do abismo da liberdade — para a defesa da verdade do ser para o ente. No sacrifício se realiza o oculto reconhecimento, único capaz de honrar o dom em que o ser se entrega à essência do homem, no pensamento, para que o homem assuma, na referência ao ser, a guarda do ser.

O pensamento originário é o eco do favor do ser pelo qual se ilumina e pode ser apropriado o único acontecimento: que o ente é. Este eco é a resposta humana à palavra da voz silenciosa do ser. A resposta do pensamento é a origem da palavra humana; palavra que primeiramente faz surgir a linguagem como manifestação da palavra nas palavras.

Se, de tempos em tempos, não houvesse um pensamento oculto no fundamento essencial do homem historial, então ele jamais seria capaz do reconhecimento, suposto que, em toda reflexão e em todo agradecimento, deve existir um pensamento que pensa originariamente a verdade do ser. Mas de que outro modo encontraria, um dia, uma humanidade o caminho para o reconhecimento originário que não pelo fato de o favor do ser oferecer ao homem, pela aberta referência a si mesma, a nobreza do despojamento, no qual a liberdade do sacrifício esconde o tesouro de sua essência? O sacrifício é a despedida do ente em marcha para a defesa do favor do ser. O sacrifício pode, sem dúvida, ser preparado e servido pelo agir e produzir na esfera do ente, mas jamais pode ser por ele realizado. Sua realização emana da in-sistência a partir da qual todo homem historial age — também o pensamento essencial é um agir — protegendo o ser-aí instaurado para a defesa da dignidade do ser. Esta in-sistência é a impassibilidade que não permite que seja contestada a oculta disposição para a despedida própria de cada sacrifício. O sacrifício tem sua terra natal na essência daquele acontecimento que é o ser chamando o homem para a verdade do ser. É por isso que o sacrifício não admite cálculo algum pelo qual seria calculada sua utilidade ou inutilidade, sejam os fins visados mesquinhos ou elevados. Tal cálculo desfigura a essência do sacrifício. A mania dos fins confunde a limpeza do respeito humilde (preparado para a angústia) da coragem para o sacrifício, que presume morar na vizinhança do indestrutível.

Cortés & Leyte

Roger Munier

Original

  1. 5.a ed. (1949): calcular: dominio-disposición; pensar: abandono en la transpropiación del uso: desdecir.[↩]
  2. 4.a ed. (1943): «El agradecer originario…».[↩]
  3. 4.a ed. (1943): «… en el que se aclara y se deja acontecer lo único».[↩]
  4. 5.a ed. (1949): acontecimiento propio.[↩]
  5. 4.a ed. (1943): «La respuesta tácita de la gratitud en el sacrificio…».[↩]
  6. N. de los T: téngase en cuenta el irreproducible juego de palabras en alemán entre «Antwort» (respuesta) y «Wort» (palabra).[↩]
  7. 4.a ed. (1943): «agradecer».[↩]
  8. 4.a ed. (1943): «pensar».[↩]
  9. N. de los T: se establece un juego entre «denken»-«danken» (pensar, agradecer) y «bedenken»-«bedan-ken», términos de sentido casi idéntico.[↩]
  10. 4.a ed. (1943): «rememorar».[↩]
  11. N. de los T: traducimos «Inständigkeit»: véase infra el texto donde aparece la nota 30, p. 306. También le daremos líneas más abajo el sentido de ‘insistencia’.[↩]
  12. N. de los T: nótese el juego en alemán entre «bewahren» (conservar), «Wahrung» (preservación, salvaguarda) y, más adelante, «Gewähr» [garantía: eso que preserva].[↩]
  13. N. de los T: «Ereignis».[↩]
  14. 5.a ed. (1949): a-propia, usa.[↩]
  15. Auflage (1943): »Das ursprüngliche Danken«.[↩]
  16. Auflage 1949: Ereignis.[↩]
  17. Auflage (1943): »… in der es sieb liebtet und das Einzige sieb ereignen läßt:«.[↩]
  18. Auflage (1943): »Die sprachlose Antwort des Dankens im Opfer«.[↩]
  19. Auflage (1943): »Danken«.[↩]
  20. Auflage (1943): »Denken«.[↩]
  21. Auflage (1943): »Andenken«.[↩]
  22. Auflage 1949: er-eignet, braucht[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress