GA9:187-189 – deixar-ser [Sein-lassen]

Ernildo Stein

Entretanto, a indicação de uma conexão essencial entre a verdade como conformidade e a liberdade abala esses preconceitos, suposto, evidentemente, que estejamos dispostos para uma transformação do pensamento. A meditação sobre a conexão essencial entre a verdade e a liberdade leva-nos a perseguir a questão acerca da essência do homem segundo uma perspectiva que nos garantirá a experiência de um fundamento essencial oculto do homem (do ser-aí), e isto de tal modo, com efeito, que essa meditação nos transporta primeiramente para o âmbito no qual a essência da verdade se essencializa originariamente. Também a partir desse fundamento se mostrará: a liberdade só se mostra como o fundamento da possibilidade interna da conformidade, porque recebe a sua própria essência da essência mais originária da única (200) verdade essencial. A liberdade foi primeiramente determinada como liberdade para aquilo que é manifesto de um aberto. Como é preciso pensar esta essência da liberdade? O manifesto ao qual se adequa a enunciação representativa enquanto algo conforme é o ente respectivamente aberto em um comportamento patentemente aberto. A liberdade em face do que se manifesta no interior do aberto deixa que cada ente seja o ente que ele é. A liberdade revela-se, então, como o que deixa-ser1 o ente.

Falamos ordinariamente de “deixar” quando, por exemplo, nos abstemos de uma tarefa que nos havíamos proposto. “Deixamos algo ser” significa: não tocamos mais nisto e com isto não mais nos preocupamos. “Deixar” tem aqui, então, o sentido negativo de desviar a atenção de algo, de renunciar a…; exprime uma indiferença ou mesmo uma omissão.

A palavra aqui necessária para expressar o deixar-ser do ente não visa, entretanto, nem uma omissão nem uma indiferença, mas o contrário delas. Deixar-ser significa entregar-se ao ente2. Isto, todavia, não deve ser compreendido apenas como simples ocupação, proteção, cuidado ou planejamento de cada ente que se encontra ou que se procurou. Deixar-ser o ente – a saber, como o ente que ele é – significa entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo. Esse aberto foi concebido pelo pensamento ocidental, desde o seu início, como τὰ ἀληθέα, o desvelado. Se traduzimos a palavra ἀλήθεια por “desvelamento”, em lugar de “verdade”, essa tradução não é somente mais “literal”, mas ela compreende a indicação de repensar mais originariamente a noção corrente de verdade como conformidade do enunciado, no sentido, ainda incompreendido, do caráter de ser desvelado e (201) do desvelamento do ente. O entregar-se ao caráter de ser desvelado não quer dizer perder-se nele, mas se desdobra em um recuo diante do ente, a fim de que este se manifeste naquilo que é e como é, de tal modo que a adequação representativa dele receba a medida. Como um tal deixar-ser, ele se expõe ao ente enquanto tal e transpõe todo o comportamento para o aberto. O deixar-se, isto é, a liberdade, é, em si mesmo exposição ao ente, isto é, ek-sistente. A essência da liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como ex-posição ao ente enquanto ele tem o caráter de desvelado.

Waelhens & Biemel

Original

  1. 1a edição de 1943: deixar-ser: 1) não negativo, mas conceder – concessão; 2) não como atuação onticamente direcionada. Atentar, fixar atentamente o ser enquanto seer.[↩]
  2. 1a edição de 1943: para o que se presenta deixar o seu presentar-se e não fazer nada para tanto nem trazer algo que se interponha a isto.[↩]
  3. Nous traduisons ici Wesensgrund qui signifie littéralement fondement essentiel par fondement, afin d’éviter en français la répétition renouvelée d’essentiel et d’essence.[↩]
  4. Le texte allemand porte : läszt das jeweilige Seiende das Seiende sein, das es ist.[↩]
  5. Laisser — sein-lassen, le terme allemand a le double sens de laisser être (admettre à l’être) et de laisser au sens d’abandonner.[↩]
  6. Dans cette phrase et celle qui suit, se rencontre une série de mots allemands de même racine, pour lesquels nous avons adopté les traductions suivantes : das Unverborgene — le non-voilé; die Unverborgenheit — le non-voilement; die Entbergung — le dévoilement (l’acte de dévoiler); die Entborgenheit — le caractère d’être dévoilé. Plus loin on trouve aussi : die Verbergung — la dissimulation et die Verborgenheit — l’obnubilation.[↩]
  7. 1. Auflage 1943: Sein-lassen: 1. nicht negativ, sondern gewahren – Wahmis; 2. nicht als ontisch gerichtetes Wirken. Achten, er-achten das Sein als Seyn.[↩]
  8. 1. Auflage 1943: dem Anwesenden sein Anwesen lassen und nichts anderes dazu und dazwischen bringen.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress