GA9:365-384 – verdade do ser

Wahrheit des Seins

Seja qual for o modo de explicação do ente, como espírito no sentido do espiritualismo, como matéria e força no sentido do materialismo, como vir-a-ser e vida, como representação, como vontade, como substância, como sujeito, como energeia, como eterno retorno do mesmo, sempre o ente enquanto ente aparece na luz do ser. Em toda parte, se iluminou o ser, quando a metafísica representa o ente. O ser se manifestou num desvelamento (aletheia). Permanece velado o fato e o modo como o ser traz consigo tal desvelamento, o fato e o modo como o ser mesmo se situa na metafísica e a assinala enquanto tal. O ser não é pensado em sua essência desveladora, isto é, em sua verdade. Entretanto, a metafísica fala da inadvertida revelação do ser quando responde a suas perguntas pelo ente enquanto tal. A verdade do ser pode chamar-se, por isso, o chão no qual a metafísica, como raiz da árvore da filosofia, se apoia e do qual retira seu alimento. (MHeidegger O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA GA9EWM)


Com o advento ou a ausência da verdade do ser, está em jogo outra coisa: não a constituição da filosofia, não apenas a própria filosofia, mas a proximidade ou distância daquilo de que a filosofia, com o pensamento que representa o ente enquanto tal, recebe sua essência e sua necessidade. O que se deve decidir é se o próprio ser pode realizar, a partir da verdade que lhe é própria, sua relação com a essência do homem ou se a metafísica, desviando-se de seu fundamento, impedirá, no futuro, que a relação do ser com o homem chegue, através da essência desta mesma relação, a uma claridade que leve o homem à pertença ao ser. (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)


Já antes de suas respostas à questão do ente enquanto tal a metafísica representou o ser. Ela expressa necessariamente o ser e, por isso mesmo, o faz constantemente. Mas a metafísica não leva o ser mesmo a falar, porque não considera o ser em sua verdade e a verdade como o desvelamento e este em sua essência. A essência da verdade sempre aparece à metafísica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da enunciação. O desvelamento, porém, poderia ser algo mais originário que a verdade no sentido da veritas. Aletheia talvez fosse a palavra que dá o aceno ainda não experimentado para a essência impensada do esse. Se a coisa fosse assim, sem dúvida o pensamento da metafísica que apenas representa jamais poderia alcançar esta essência da verdade, por mais afanosamente que se empenhasse historicamente pela filosofia pré-socrática; pois não se trata de algum renascimento do pensamento pré-socrático – tal projeto seria vão e sem sentido -, trata-se, isto sim, de prestar atenção ao advento da ainda não enunciada essência do desvelamento que é o modo como o ser se anunciou. Entretanto, velada permanece para a metafísica a verdade do ser ao longo de sua história, de Anaximandro (79) a Nietzsche. Por que não pensa a metafísica na verdade do ser? Depende uma tal omissão apenas da espécie de pensamento que é o metafísico? Ou pertence ao destino essencial da metafísica, que se lhe subtraia seu próprio fundamento, porque em toda a eclosão do desvelamento permanece ausente sua essência, o velamento, e isto em favor do que foi desvelado e aparece como o ente? MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA


Para reunir, ao mesmo tempo, numa palavra a revelação do ser com a essência do homem, como também a referência fundamental do homem à abertura (“aí’) do ser enquanto tal, foi escolhido para o âmbito essencial, em que se situa o homem enquanto homem, o nome “ser-aí”. Isto foi feito, apesar de a metafísica usar este nome para aquilo que em geral é designado existentia, atualidade, realidade e objetividade, não obstante até se falar, na linguagem comum, em “ser-aí humano”, repetindo o significado metafísico da palavra. Por isso obvia toda possibilidade de se pensar o que nós entendemos quem se contenta apenas em averiguar que em Ser e Tempo usa-se, em vez de “consciência”, a palavra “ser-aí”. Como se aqui estivesse apenas em jogo o uso de palavras diferentes, como se não se tratasse desta coisa única: da relação do ser com a essência do homem e com isto, visto a partir de nós, como se não se tratasse de levar o pensamento (81) primeiramente diante da experiência essencial do homem, suficiente para a interrogação decisiva. Nem a palavra “ser-aí” tomou o lugar da palavra “consciência”, nem a “coisa” chamada “ser-aí” passou a ocupar o lugar daquilo que é representado sob o nome “consciência”. Muito antes, com o “ser-aí’ é designado aquilo que, pela primeira vez aqui, foi experimentado como âmbito, a saber, como o lugar da verdade do ser e que assim deve ser adequadamente pensado. (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)


Se se considera que na linguagem da metafísica a palavra “existência” designa o mesmo que “ser-aí”, a saber, a atualidade de tudo o que é atual, desde Deus até o grão de areia, é claro que apenas se desloca – quando se entende a frase linearmente – a dificuldade do que deve ser pensado da palavra “ser-aí” para a palavra “existência”. O nome “existência” é usado, em Ser e Tempo, exclusivamente como caracterização do ser do homem. A partir da “existência” corretamente pensada se revela a “essência” do ser-aí, em cuja abertura o ser se revela e oculta, se oferece e subtrai, sem que esta verdade do ser no ser-aí se esgote ou se deixe identificar com o ser-aí ao modo do princípio metafísico: toda objetividade é, enquanto tal, subjetividade. (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)


Uma tentativa de passar da representação do ente enquanto tal para o pensamento da verdade do ser deve, partindo daquela representação, também representar ainda, de certa maneira, a verdade do ser, para que esta, finalmente, se mostre como representação inadequada para aquilo que deve ser pensado. Esta relação que vem da metafísica e que procura penetrar na referência da verdade do ser ao ser humano é concebida como compreensão. Mas a compreensão é pensada aqui, ao mesmo tempo, a partir do desvelamento do ser. A compreensão é o projeto ekstático jogado, quer dizer, o projeto in-sistente no âmbito do aberto. O âmbito que no projeto se oferece como o aberto, para que nele algo (aqui o ser) se mostre enquanto algo (aqui o ser enquanto tal em seu desvelamento) se chama sentido (cf. Ser e Tempo, p. 151). “Sentido do ser” e “verdade do ser” dizem a mesma coisa. (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)


Se a metafísica realmente dedica sua representação ao on he on, ela permanece fundada sobre este elemento velado no on. A interrogação que retorna a este elemento velado procura, por isto, do ponto de vista da metafísica, o fundamento para a ontologia. E por isso que o procedimento em Ser e Tempo (p.13) se chama ‘ontologia fundamental’. Mas a expressão se mostra, em pouco tempo, embaraçosa, como, aliás, qualquer expressão neste caso. Ela diz algo certo se pensava a partir da metafísica; mas, justamente, por isso induz a erro; pois trata-se de conquistar a passagem da metafísica para dentro do pensamento de ser. E enquanto este pensamento se caracteriza a si mesmo como ontologia fundamental, ele se interpõe, com tal designação, seu próprio caminho e o obscurece. A expressão “ontologia fundamental’ parece induzir à opinião de que o pensamento que procura pensar a verdade do ser e não como toda ontologia, a verdade do ente, é, enquanto antologia fundamental, ela mesma ainda uma espécie de ontologia. Entretanto, já desde seus primeiros passos, o pensamento da verdade do ser, enquanto retorno ao fundamento da metafísica, abandonou o âmbito de toda ontologia. Mas toda filosofia que se movimenta na representação mediata ou imediata da “transcendência” permanece necessariamente ontologia no sentido essencial, procure ela preparar uma fundamentação da ontologia ou rejeitar ela a ontologia que para sua segurança busca apenas uma crispação conceitual de vivências. (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)


Se, entretanto, está fora de dúvida que o pensamento que procura pensar a verdade do ser trazendo consigo, é verdade, o peso do antigo costume da representação do ente enquanto tal, se perde até a si mesmo, nesta representação, então nada mais se torna tão necessário, seja para a primeira reflexão, seja para a preparação da passagem do pensamento que representa para aquele que realmente pensa, quanto à pergunta: Que é metafísica? (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)


O teor da questão é o seguinte: Por que afinal ente e não antes Nada? Suposto que não pensamos a verdade do ser mais no âmbito da metafísica e metafisicamente como de costume, mas a partir da essência e da verdade da metafísica, então o sentido da questão que encerra a preleção pode ser o seguinte: Donde vem, que, em toda parte, o ente tem a hegemonia e reivindica para si todo o “é”, enquanto fica esquecido aquilo que não é um ente, o nada aqui pensado como o próprio ser. Donde vem que propriamente nada é com o ser e que o nada propriamente não é (west)? Não vem daqui a aparência inabalável para a metafísica de que o “ser” é evidente e que, em consequência disso, o nada se torna menos problemático que o ente? Tal é realmente a situação em torno do ser e do nada. Se as coisas fossem diferentes para a metafísica, então Leibniz não poderia dizer, na passagem referida, esclarecendo: “Car le rien est plus simple et plus facile que quelque chose”. (MHeidegger: O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA)

 

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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