GA89:292-294 – O corporal é o mais difícil…

Arnhold & Almeida Prado

Boss: Os seminários anteriores sobre o corpo e a psique em 1965 foram um pouco insatisfatórios para os participantes. Eles querem ser mais bem orientados sobre onde está sua limitação, isto é, que eles só podem sempre apreender a relação entre corporal e psíquico como simultaneidade. Além disso, está claro para todos que não é o caso de um discurso sobre uma causalidade. Ninguém acredita mais que a percepção psíquica de uma borboleta, por exemplo, em sua significação como borboleta, possa ser determinada positivamente a partir de impulsos elétrico-nervosos na nuca. Outros concordam com a recriminação de Jean-Paul Sartre, que estranhava que em todo Ser e tempo o senhor só escreveu seis linhas sobre o corpo.

Heidegger: Só posso responder à recriminação de Sartre com a afirmação de que o corporal é o mais difícil e que, na época, simplesmente ainda não tinha mais a dizer a respeito.

Entretanto, continua decisivo o fato de que, também em toda a experiência do corporal na visão daseinsanalítica, deve-se partir sempre da constituição fundamental do existir humano, isto é, o ser-homem como Da-sein, como o existir – no sentido transitivo –, um âmbito de estar-aberto-no-mundo; o estado de abertura, pois, de onde e à luz do qual as significações do que nos vem ao encontro falam ao homem. Graças a tal constituição da essência do homem, o Da-sein é sempre já relacionado com algo que se lhe revela. Mas em seu essencial ser-relacionado perceptivo com o que se lhe laia a partir de sua abertura-no-mundo o homem é também sempre já solicitado a corresponder-lhe com sua relação com o mesmo, isto é, a responder, e, de maneira que ele toma a seu cuidado o que vem ao encontro, ajudando-o na medida do possível para o desenvolvimento da sua essência.

Mas o homem não seria capaz disto se ele só consistisse de um perceber “espiritual’’, se ele não fosse também de natureza corporal. Se não, como poderia ser possível um agarrar, um formar e transformar de outros acontecimentos “materiais” animados ou inanimados que vem ao encontro?

Então tudo o que chamamos a nossa corporeidade, até a última fibra muscular e a molécula hormonal mais oculta, faz parte essencialmente do interior do existir; não é, pois, fundamentalmente matéria inanimada, mas sim um âmbito daquele poder perceber não objetivável, não opticamente visível de significações do que vem ao encontro, do que consiste todo o Da-sein. Este corporal forma-se de tal modo que pode ser utilizado no trato com o “material” do animado e inanimado do que vem ao encontro. Mas ao contrário de uma ferramenta as esferas corporais do existir não são descartadas do ser-homem. Não podem ser guardadas isoladas numa caixa de ferramentas. Ao contrário, elas permanecem permeadas pelo ser-homem, seguras por ele, pertencentes a ele, enquanto um homem viver. No entanto, ao morrer, este âmbito corporal transforma seu modo de ser naquele de uma coisa inanimada, na massa de um cadáver que se decompõe.

Certamente, o corporal do Dasein admite que já em vida ele seja visto como um objeto material, inanimado, como uma espécie de máquina complicada. Tal observador, na verdade, já perdeu de vista para sempre o essencial do corporal. Então, a consequência de tal observação insuficiente é a perplexidade perante todas as manifestações essenciais do corporal.

Por isso, em relação à totalidade da corporeidade, pode-se dizer o mesmo que já foi citado com referência ao ver e os olhos corporais: não podemos “ver” porque temos olhos, mas, antes, só podemos ter olhos porque segundo a nossa natureza fundamental somos seres que veem. Assim, também não poderíamos ser corporais, como de fato somos, se o nosso ser-no-mundo não consistisse fundamentalmente de um sempre já perceptivo estar-relacionado com aquilo que se nos fala a partir do aberto de nosso mundo como o que, aberto, existimos. Além disso, nesta interpelação já estamos sempre orientados para os acontecimentos que se nos revelam. Somente graças a tal orientação essencial do nosso Da-sein podemos diferenciar a frente do verso, o alto do baixo, o esquerdo do direito. Graças ao mesmo ser orientado para algo que se nos fala podemos na verdade ter um corpo, ou melhor, sermos corporais. Não, porém, somos primeiramente corporais tendo, consequentemente, a partir disso uma frente, um atrás, etc. Apenas não podemos confundir nosso ser-corporal existencial com a materialidade-corpórea de um objeto inanimado simplesmente presente.

Boss: Receio que meus colegas preparados de forma científico-natural apenas darão risada de uma tal visão, pois ela pressupõe a possibilidade de que algo invisível puramente “mental”, algo que não pode ser nem pesado nem medido, como o são as possibilidades humanas de relacionamento enquanto tais, seja transformado em algo material que se pode tocar e medir, como os órgãos do corpo.

Heidegger: Já não deveria ser familiar para o cientista-natural a transformação do modo de ser de uma possibilidade de relacionamento não-material, não-opticamente visível no modo de ser de “corporal-material”? Pois já aprenderam com Einstein que “energia” e “matéria” são inteiramente intercambiáveis e, pois, essencialmente o mesmo. Mas Einstein não pode ensinar-nos o que esta e aquela são, essencialmente por si, pois estas questões do “essencial” são questões filosóficas. [GA89AAP:243-245]

Xolocotzi Yáñez

Mayr & Askay

Original

  1. See Heidegger, Being and Time, pp. 135,143. — translators[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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