GA71:§202 – a morte

Casanova

Por que é que, na preparação da questão acerca da verdade do ser, pensa-se na essência da morte? (Cf. Ser e tempo.) Porque (192) só o homem tem a morte e morre, de tal modo que ele também se mostra como sendo o único a respectivamente precisar e poder morrer a sua morte.

O homem, porém, tem a morte porque só o homem é apropriado em meio à relação com o ser pelo ser.

O ser, contudo, é, como acontecimento apropriativo, dotado de uma essência marcada pela despedida. Na morte temos a possibilidade extrema da ligação com o ser.

O que é a morte? Despedindo-se o a-bismo em relação ao início.

Ainda não sabemos nada sobre a essência conforme ao ser da morte, porque nós, pensando metafisicamente, tomamos o homem como ζῷον e explicamos a morte a partir da oposição à vida e como transição para a “vida” eterna. Pensar em termos da história do seer: a partir do seer o ser-aí, como ser-aí a morte.

A morte é inicial, o que significa que ela precisa ser pensada em sintonia com o caráter de ser-aí a partir do acontecimento apropriativo.

A morte é a consumação da insistência no ser-aí, a morte é o sacrifício.

O fim – no sentido da consumação – refere-se ao ser-aí (não à vida).

A essência em termos de despedida diz respeito à despedida do ente comto tal, despedida essa, porém, que se mostra como o preenchimento da ligação com o seer.

A morte não se essencia apenas quando o homem está morto, mas quando a despedida na insistência do ser-aí ganha sua consumação. A morte também não se essencia, por isso, quando o homem “morre”, mas o morrer só é a extinção da “vida”.

A morte é o ponto de partida insistente do ser-aí na proximidade da clareira do seer.

A morte “é” rara e velada. Com frequência, ela não é menos obstruída e deslocada pelo morrer do que pela mera vida. A morte é a proximidade mais pura do homem em relação ao ser (e, por isso, em relação ao “nada”).

Nós desertificamos a essência abismante, que acontece apropriativamente como despedida, da morte, quando procuramos (194) o acontecimento apropriativo e o ser do homem contabilizar aquilo que haveria “depois” dela. Desse modo, rebaixamos a morte a uma travessia nula. Não pressentimos nada do fundamento da dor na morte, dor essa que não “é” uma dor entre outras, mas o abismo essenciante da dor como a essência da experiência do ser.

A morte é o ponto de partida em direção à pura proximidade do seer. Sua essência como “fim” não pode ser pensada de maneira calculadora, nem como “cifras” da vida nem como começo de outra vida. Assim, desviamos o olhar da essência da morte e não compreendemos o “fim” em sintonia com o ser-aí, isto é, na ligação única com a clareira do seer.

A lei da inevitabilidade do seer preenche-se puramente na morte.

A morte torna, ao que parece, todos iguais; a observância dessa aparência é a maior ilusão possível em relação a sua essência e se nutre da ignorância sobre a unicidade da morte. Essa opinião é o consolo barato daqueles que desvirtuaram a morte e, para tanto, se servem do modo de falar da “majestade da morte”.

Rojcewicz

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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