GA6T2:168-172 – posições metafísicas fundamentais de Descartes e de Protágoras

Casanova

Estamos finalmente em condições de caracterizar a posição metafísica fundamental de Descartes segundo os quatro aspectos citados e distingui-la da posição metafísica fundamental de Protágoras.

1. Na metafísica cartesiana, como é que o homem é ele mesmo e como ele conhece a si mesmo?

O homem é o fundamento insigne que se encontra na base de toda re-presentação do ente e de sua verdade, o fundamento sobre o qual todo representar e seu re-presentado são e precisam ser posicionados, caso devam ter uma estabilidade e uma consistência. O homem é subiectum nesse sentido insigne. O nome e o conceito de “sujeito” passam agora para a nova significação e se transformam no nome próprio e no termo essencial para o homem. Isso significa: todos os entes não humanos transformam-se em objeto para este sujeito. A partir de então, subiectum não é mais considerado como o nome e o conceito para os animais, as plantas e as pedras.

2. Que projeto do ente com vistas ao ser pertence a essa metafísica? Formulando a questão de uma outra maneira: como é determinada a entidade do ente?

A entidade possui agora o sentido de re-presentidade do sujeito que representa. Isso não significa de maneira alguma que o ente seria uma “mera representação” e que essa representação seria uma ocorrência na “consciência” humana, de modo que todo ente evaporaria na construção nebulosa de simples pensamentos. Tal como Kant mais tarde, Descartes nunca duvidou de que o ente, enquanto algo que é constatado em si e a partir de si em seu sendo, seria real. No entanto, a pergunta persiste: o que significa nesse caso ser e como o ente precisa ser alcançado e assegurado pelo homem enquanto aquele que se tornou sujeito? Ser é a re-presentidade assegurada na re-presentação calculadora, uma re-presentidade por meio da qual são assegurados por toda parte para o homem o seu modo de proceder em meio ao ente, o escrutínio do ente, a conquista, o assenhoreamento e a colocação do ente à disposição; e isso de tal forma que ele mesmo pode ser por si mestre de seu próprio asseguramento e de sua própria segurança.

3. Como é circunscrita na metafísica a essência da verdade?

Um traço fundamental de toda determinação metafísica essencial da verdade expressa-se na sentença que concebe a verdade como concordância do conhecimento com o ente: veritas est adaequatio intellectus et rei.1 Segundo aquilo que foi dito anteriormente, porém, vemos agora claramente que essa “definição” usual da verdade sempre se transforma de acordo com o modo de ser do ente com o qual o conhecimento deve concordar, assim como de acordo com o modo como é concebido o conhecimento, que deve se encontrar em concordância com o ente. O conhecer enquanto percipere e cogitare no sentido de Descartes possui a sua distinção no fato de ele só admitir como conhecimento aquilo que é a-presentado como indubitável ao sujeito por meio do representar e que é calculável a todo momento uma vez mais como algo assim posicionado. Mesmo para Descartes, o conhecimento se orienta pelo ente. Nesse caso, porém, só é válido como ente aquilo que é assegurado sob a forma da re-presentação e da auto-a-presentação caracterizadas. Um ente não é senão aquilo de que o sujeito pode estar seguro no sentido de sua representação. O verdadeiro é apenas o assegurado, o certo. Verdade é certeza, e para essa certeza permanece decisivo o fato de nela o homem estar a cada vez certo e seguro de si mesmo. Por isso, para o asseguramento da verdade enquanto certeza em um sentido essencial, o pro-cedimento e o asseguramento-de-antemão são necessários. O “método” obtém agora um peso metafísico que está por assim dizer atrelado à essência da subjetividade. “Método” não é mais agora apenas a sequência de algum modo ordenada dos diversos passos relativos à consideração, à demonstração, à apresentação e à junção dos conhecimentos e das doutrinas sob a forma de uma “suma” escolástica, com a sua construção regular que sempre retorna. “Método” é agora o nome para o pro-cedimento assegurador e conquistador que se abate sobre o ente, a fim de assegurá-lo como objeto para o sujeito. E nesse sentido metafísico que o termo methodus é visado, quando Descartes apresenta no importante ensaio “Regulae ad directionem ingenii”, ensaio que só foi publicado depois de sua morte, a IV. Regula: “Necessaria est methodus ad rerutn veritatem investigandam.”

“Necessário (essencialmente necessário) é o método, a fim de farejar o rastro da verdade (certeza) do ente e de seguir esse rastro.” No sentido do “método” assim compreendido, todo o pensamento medieval é essencialmente desprovido de método.

4. De que maneira o homem assume e fornece nessa metafísica a medida para a verdade do ente?

Essa pergunta já foi respondida pelo que foi dito anteriormente. Como o homem é essencialmente o subiectum, como a entidade significa o mesmo que re-presentidade e como a verdade se tomou certeza, o homem dispõe aqui essencialmente sobre o ente enquanto tal na totalidade, pois ele fornece a medida para a entidade de todo e qualquer ente. Junto ao homem enquanto subiectum encontra-se agora a decisão quanto àquilo que pode ser efetivamente estabelecido como sendo. O próprio homem é aquele para o qual essa disposição se acha reconhecidamente como tarefa. O sujeito mostra-se como “subjetivo” pelo fato e no fato de a determinação do ente e, com isso, a determinação do próprio homem não serem mais restritas a nenhum limite, mas terem em todos os aspectos os seus limites suprimidos. A relação com o ente é o pro-cedimento de assenhoreamento em meio à conquista e ao domínio do mundo. O homem entrega ao ente a medida, porquanto determina a partir de si e em direção a si mesmo aquilo que pode ser considerado como sendo. O padrão de medida é a presunção da medida , uma presunção por meio da qual o homem é fundado enquanto subiectum como o ponto central do ente na totalidade. Todavia, é preciso certamente considerar o seguinte: o homem não é aqui um eu egoísta isolado, mas “sujeito”, o que significa dizer que ele se coloca a caminho de um descerramento calculador e representador ilimitado do ente. Na essência da nova posição metafísica do homem enquanto subiectum acha-se fundamentado o fato de a execução da descoberta e da conquista do mundo, assim como as respectivas irrupções nessa direção precisarem ser assumidas e realizadas pelos indivíduos singulares excepcionais. A concepção moderna do homem enquanto “gênio” tem por pressuposto metafísico a determinação essencial do homem enquanto sujeito. Por isso, inversamente, o essencial da humanidade moderna não é o culto ao gênio e a sua degeneração – nem tampouco o “liberalismo” e o autogoverno dos estados e das nações no sentido das “democracias” modernas. A suposição de que os gregos teriam pensado algum dia o homem como “gênio” é tão inconcebível, quanto a opinião de que Sófocles teria sido um “homem genial” é a-histórica.

Levamos pouco demais em consideração o fato de justamente o “subjetivismo’” moderno e somente ele descobrir, tornar acessível e controlável o ente na totalidade, viabilizando petições e formas de dominação que a Idade Média não pôde conhecer e que residiam fora do campo de visão do mundo grego.

Aquilo que foi dito até aqui pode ser agora elucidado, na medida em que distinguimos uma em relação à outra, segundo os quatro aspectos diretrizes, as representações metafísicas fundamentais de Protágoras e de Descartes. Para evitarmos repetições, essa elucidação deve acontecer sob a forma da postulação de pequenas sentenças diretrizes:

1. Para Protágoras, o homem é determinado em seu ser-próprio por meio da pertinência à esfera daquilo que é desvelado. Para Descartes, o homem é determinado enquanto si próprio por meio da retomada do mundo no representar do homem.

2. Para Protágoras, a entidade do ente é – no sentido da metafísica grega – o presentar-se no desvelado. Para Descartes, a entidade significa: representidade por meio do e para o sujeito.

3. Para Protágoras, a verdade significa desvelamento daquilo que se presenta. Para Descartes, a certeza da representação que se re-presenta e assegura.

4. Para Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas no sentido da restrição comedida à esfera do desvelado e aos limites do velado. Para Descartes, o homem é a medida de todas as coisas no sentido da presunção da supressão dos limites da representação em direção à certeza que se assegura de si. O padrão de medida submete tudo aquilo que pode valer como sendo ao cálculo da re-presentação. (2007 p. 125-128)

Klossowski

Capuzzi

Original

  1. Em latim no originai: a verdade é adequação entre o intelecto e a coisa. (N.T.)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress