GA6T2:116-121 – a falácia do “homem bom”

Casanova

Se a “verdade”, isto é, o verdadeiro e o real, é transplantada para o alto e para o além em um mundo em si, então o ente propriamente dito aparece como aquilo a que toda a vida humana precisa se submeter. O verdadeiro é aquilo que deve ser em si e é desejável. A vida humana só presta para alguma coisa, só é determinada por meio de virtudes corretas, se essas virtudes nos impelirem e nos colocarem em condições de realizar isso que é desejável e que deve ser, de seguir e de nos submetermos, com isso, aos ideais.

O homem que se curva ante os ideais e aspira aplicadamente a realizá-los é o homem virtuoso, o homem digno, ou seja, o “homem bom”. Pensado no sentido de Nietzsche, isso quer dizer: o homem que quer a si mesmo como esse “homem bom” erige sobre si ideais supra-sensíveis que lhe fornecem aquilo ao que ele pode se submeter, a fim de assegurar para si mesmo no preenchimento desses ideais uma meta de vida.

A vontade que quer esse “homem bom” é uma vontade de submissão aos ideais como uma submissão a algo que subsiste em si e sobre o que o homem não deve ter mais poder algum. A vontade que quer o “homem bom” e seus ideais é uma vontade de poder desses ideais e, com isso, uma vontade de impotência do homem. A vontade que quer o homem bom também é, em verdade, vontade de poder, mas sob a figura da impotência para o poder do homem. É a essa impotência para o poder própria ao homem que os valores supremos até aqui devem a sua projeção para o interior do supra-sensível e a sua elevação a um mundo “em si” como o único mundo verdadeiro. A vontade que quer o “homem bom” e o “bem” entendido nesse sentido é a vontade “moral”.

(…)

A moral do “homem bom” é a origem dos valores supremos até aqui. O homem bom estabelece esses valores como incondicionados. Desse modo, eles são as condições de sua “vida”, da vida que, enquanto impotente para o poder, exige para si a possibilidade de poder alçar o olhar em direção ao mundo supra-sensível. A partir daí, então, também concebemos aquilo que Nietzsche tem em vista na seção final do número 12 com a “ingenuidade hiperbólica” do homem.

Pensado em termos metafísicos, o “homem bom” da moral é aquele homem que não suspeita de modo algum qual é a origem dos valores aos quais ele se submete enquanto ideais incondicionados. Dessa forma, esse não suspeitar qual é a origem dos valores mantém o homem afastado de toda meditação expressa sobre a proveniência dos valores: sobre o fato justamente de eles serem condições da vontade de poder estabelecidas pela própria vontade de poder. A “ingenuidade” significa o mesmo que “inocência psicológica”; segundo o que foi dito anteriormente, essa expressão significa: não ser tocado por nenhuma contabilização do ente, e, com isso, da vida e de suas condições, em função da vontade de poder. Na medida em que permanece assim velada para o homem psicologicamente inocente (“ingênuo”) a proveniência dos valores a partir da avaliação pautada pelo poder que é levada a termo pelo homem, o homem ingênuo toma os valores (meta, unidade, totalidade, verdade) como se eles chegassem até ele vindos de um lugar qualquer, como se caíssem do céu e se encontrassem em si sobre ele como algo ao que ele não tem senão de se curvar. Por isso, a ingenuidade como desconhecimento da origem dos valores a partir da vontade de poder humana é em si “hiperbólica” (de ὑπερ-βάλλειν). O “homem bom” lança, sem saber, os valores para além de si e os projeta para aquilo que é em si. Aquilo que não é condicionado senão pelo próprio homem é tomado por ele inversamente pelo incondicionado que requisita o homem com exigências. E por isso que Nietzsche conclui a sua recalculagem da origem da crença nos valores supremos e nas categorias da razão, assim como todo o fragmento número 12, com a seguinte sentença: “Continua sendo sempre a ingenuidade hiperbólica do homem posicionar a si mesmo como o sentido e como o critério de valor das coisas.”

Klossovski

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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