GA6T1:62-64 – aquele que quer + o querer + o querido

Casanova

(…) “Querer: um sentimento que compele, muito agradável!” Um sentimento é a maneira na qual nos encontramos em nossa ligação com o ente, e, com isso, também ao mesmo tempo em nossa ligação conosco mesmo; a maneira como nos encontramos afinados em relação ao ente que nós mesmos não somos e em relação ao ente que nós mesmos somos. No sentimento abre-se e mantém-se aberto o estado no qual nos encontramos concomitantemente em relação às coisas, em relação a nós mesmos e em relação aos homens que convivem conosco. O sentimento é efetivamente esse estado aberto para si mesmo, no qual nossa existência se agita. O homem não é um ser pensante que também quer e que, além disso, teria sentimentos acrescentados ao pensar e ao querer – e isso com a finalidade de embelezamento ou de embrutecimento. Ao contrário, o estado do sentimento é originário, mas o é de tal modo que a ele compertencem o pensar e o querer. A única coisa importante agora é ver que o sentimento tem o caráter do abrir e do manter aberto, e, por isso, sempre à sua maneira, também o caráter do fechamento.

No entanto, se a vontade é um querer-para-além-de-si, então reside nesse para-além-de-si-mesmo o fato de a vontade não se estender simplesmente para fora de si, mas se inserir concomitantemente no querer. O fato de aquele que quer querer se inserir em sua vontade significa: no querer torna-se manifesto o querer e, juntamente com ele, aquele que quer e aquilo que é querido. Na essência da vontade, na de-cisão, reside o fato de a vontade descerrar a si mesma.1 Portanto, ela não possui esse caráter apenas por meio de um comportamento que se lhe acrescenta, por meio de uma observação do processo da vontade e de uma reflexão quanto a isso, mas a vontade mesma tem muito mais o caráter do manter aberto que abre. Por mais penetrante que sejam, uma auto-observação e uma auto-análise instauradas arbitrariamente nunca trazem à tona nosso si próprio e o modo como as coisas se encontram em relação a ele. Em contrapartida, trazemos nós mesmos à luz em meio ao querer e, correspondentemente, também em meio ao não-querer; e, em verdade, trazemos nós mesmos a uma luz que é acesa pela primeira vez por meio do próprio querer. Querer é sempre um trazer-se-a-si-mesmo, e, com isso, um encontrar-se em meio ao para-fora-de-si, um manter-se no ímpeto para fora de algo e em direção a algo. Dessa forma, a vontade tem aquele caráter do sentimento, do manter aberto o estado mesmo. Junto ao querer – junto a essa dinâmica para-fora-de-si – , esse estado é um compelir. Com isso, a vontade pode ser tomada como um ‘‘sentimento que compele”. Ela não é apenas o sentimento de algo que compele. Ao contrário, ela mesma é algo que compele, e mesmo algo “muito agradável”. O que se abre na vontade – o querer mesmo como de-cisão – é agradável àquele para o qual ele se abre, é agradável para aquele mesmo que quer. No querer vamos ao encontro de nós mesmos como aqueles que propriamente somos. Somente na própria vontade capturamos a nós mesmos em nossa essência mais própria. Aquele que quer é como tal aquele que-quer-para-além-de-si; no querer sabemos que nós mesmos estamos voltados para fora de nós; nós sentimos de algum modo um ser senhor sobre…; um prazer dá a saber o poder que foi alcançado e que se eleva. Por isso, Nietzsche fala de uma “consciência da diferença”.

Se aqui o sentimento e a vontade são tomados como uma “consciência”, como um “saber”, então se mostra aí da forma mais incisiva possível aquele momento da abertura de algo no interior da própria vontade. No entanto, a abertura não é nenhuma consideração, mas um sentimento. Isso diz: o querer mesmo é um tipo de estado, ele se encontra aberto para e em si mesmo. Querer é sentimento (um estado como um estar afinado). Na medida em que a vontade mesma tem, contudo, aquela pluralidade de figuras já indicada que é intrínseca ao querer-para-além-de-si; e na medida em que tudo isso se torna manifesto na totalidade, pode-se constatar o seguinte: na vontade esconde-se uma multiplicidade de sentimentos. É o que nos diz Nietzsche em Para além do bem e do mal:

“em todo querer há, primeiramente, uma multiplicidade de sentimentos: o sentimento de um estado do qual saímos, o sentimento de um estado para o qual tendemos, o sentimento dessa ‘saída’ e dessa ‘tendência’, então ainda um sentimento muscular paralelo que se coloca em jogo por meio de um tipo de hábito, mesmo quando não movemos ‘pernas e braços”’. (GA6PT:48-50)

Vermal

Klossowski

Farrell Krell

Original

  1. Heidegger acentua, nessa passagem, a relação entre dois termos centrais de Ser e tempo: os termos Entschlossenheit e Erschlossenheit, que traduzo respectivamente por decisão e descerramento. O que ele procura frisar com esse acento é justamente o fato de a decisão inerente à vontade não ter nada em comum com uma certa resolução da subjetividade por um certo modo de ação, mas sim com a inserção do que quer e do que é querido no campo de jogo descerrado pela vontade. Cf., quanto a esse ponto, Ser e tempo, § 41. (N.T.)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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