GA6T1:57-59 – afetos e paixões

Casanova

Tão frequente quanto a caracterização nietzschiana da vontade como afeto (Affekt) é sua caracterização da vontade como paixão (Leidenschaft). Daí não se pode concluir sem mais que Nietzsche identificaria afeto e paixão, mesmo que ele não tenha chegado a uma clarificação expressa e abrangente da diferença essencial e da conexão do afeto com a paixão. Como é possível supor, Nietzsche conhece a diferença entre o afeto e a paixão. Por volta de 1882, ele diz o seguinte sobre o seu tempo: “Nossa época é uma época agitada e, exatamente por isso, não é nenhuma época de paixão; ela se aquece continuamente porque sente a falta de calor – no fundo, está congelando. Não acredito na grandeza de todos esses ‘grandes acontecimentos’ dos quais vós falais” (XII, 343). “Apesar de tudo isso, a época dos grandes acontecimentos será a época dos menores efeitos, uma vez que os homens são feitos de borracha e se mostram por demais elásticos.” “Agora, os eventos só se tornam ‘grandes’ por meio de um eco – o eco dos jornais” (XII, 344).

Na maioria das vezes, Nietzsche emprega a palavra paixão como possuindo o mesmo significado de afeto. No entanto, se ira (Zorn) e ódio [Haß], ou alegria e amor (Freude und Liebe), por exemplo, não são apenas diferentes como um afeto é distinto de outro, mas são diferentes como um afeto e uma paixão, então também precisamos aqui de uma determinação mais exata. Um ódio tampouco pode ser gerado por uma resolução, ele também parece se abater sobre nós como o acometimento da ira. Não obstante, esse acometimento é essencialmente diverso. O ódio pode explodir (45) repentinamente em um feito ou em uma exclamação, mas isso apenas porque ele já se abateu sobre nós, porque ele já veio à tona em nós e foi alimentado, como dissemos, em nós mesmos; só pode ser alimentado aquilo que já está aí e vive. Em contrapartida, não dizemos e nunca temos em vista: uma ira é alimentada. Como o ódio nos transpassa em toda a nossa essência muito mais originariamente, ele também nos mantém coesos; tal como o amor, ele traz consigo uma coesão originária e um estado durável para o interior de nosso ser essencial. A ira, por outro lado, assim como ela nos acomete, logo se esvai – logo vira fumaça, como costumamos dizer. Um ódio não vira fumaça e se dissipa depois de uma irrupção, mas cresce e se solidifica, dilacera e consome nosso ser. Todavia, essa coesão constante que ganha por meio do ódio o cerne da existência humana não a torna reclusa nem cega. Ao contrário, ela garante visão e reflexão. O homem irado perde o poder de reflexão. O homem tomado pelo ódio tem o seu poder de meditação e de reflexão aumentados até a “mais fina” maldade. O ódio nunca é cego, mas clarividente; somente a ira é cega. O amor nunca é cego, mas clarividente; somente o estado daquele que está enamorado é cego, fugidio e brusco, um afeto e não uma paixão. À paixão pertence uma ampla expansão de seu campo de vinculação e uma abertura de si mesmo; também no ódio acontece uma tal expansão, na medida em que ele persegue o odiado constantemente por toda parte. Essa expansão do campo de vinculação em meio à paixão não nos eleva, porém, simplesmente para fora de nós mesmos, ela reúne, sim, muito mais o nosso ser sobre o seu solo próprio, ela abre esse solo pela primeira vez em meio a essa reunião, de modo que a paixão é aquilo por meio do que e em que tomamos pé sobre nós mesmos e de maneira clarividente nos apoderamos do ente a nosso redor e em nós.

A paixão assim compreendida lança novamente uma luz sobre o que Nietzsche denomina vontade de poder. A vontade como o ser-senhor-sobre-si-mesmo (Über-sich-Herrsein) nunca é uma encapsulação do eu em seus estados (Abkapselung des Ich auf seine Zustände). A vontade é, como dissemos, de-cisão (Ent-schlossenheit) na qual o que quer se expõe da maneira mais ampla possível ao ente, a fim de mantê-lo na esfera de seu comportamento. Não o acometimento e a excitação são agora característicos, mas a expansão clarividente do campo de vinculação que é ao mesmo tempo uma reunião da essência que se encontra na paixão. (GA6PT:37-38)

Klossowski

Krell

Original

  1. Perhaps a word is needed concerning the traditional translation of Entschlossenheit, “resoluteness.” Heidegger now hyphenates the German word to emphasize that Entschlossenheit, far from being a sealing-off or closing-up of the will in decision, means unclosedness, hence a “resolute openness.” The word thus retains its essential ties to Erschlossenheit, the disclosure of Being in Dasein. On Entschlossenheit see Martin Heidegger, Sein und Zeit, 12th ed. (Tübingen: M. Niemeyer, 1972), esp. p. 297; “Vom Wesen der Wahrheit,” in Wegmarken (Frankfurt/Main: V. Klostermann, 1967), p. 90; and Gelassenheit (Pfullingen: G. Neske, 1959), p. 59. Cf. Martin Heidegger: Basic Writings, ed. D. F. Krell (New York: Harper & Row, 1977), p. 133 n.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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