GA6T1:53-57 – afetos são configurações da vontade de poder

Casanova

Na passagem que acabamos de citar, Nietzsche diz: todos os afetos são “configurações” da vontade de poder. Se perguntarmos o que é a vontade de poder, Nietzsche então responderá: ela é o afeto originário. Os afetos são formas da vontade; a vontade é afeto. Denomina-se tal procedimento uma definição circular. O senso comum se acha superior ao descobrir tais “erros lógicos” mesmo em um filósofo. Afeto é vontade e vontade é afeto. Já sabemos agora – ao menos aproximadamente – que o que está em jogo em meio à pergunta sobre a vontade de poder é a pergunta sobre o ser do ente, sobre o que não é mais determinável a partir de um outro ente porque ele mesmo determina esses entes. Com isso, se uma caracterização do ser é, em geral, aduzida e se essa caracterização não deve dizer simplesmente o mesmo de uma maneira vazia, a determinação aduzida precisa ser haurida emergencialmente a partir do ente, e o círculo está completo. Não obstante, a coisa não é tão simples assim. No caso presente, Nietzsche diz com uma boa razão que a vontade de poder é a forma originária de afeto; ele não diz simplesmente que ela é um afeto, apesar de frequentemente encontrarmos essas formulações em suas apresentações superficiais e defensivas.

Em que medida a vontade de poder é a forma originária de afeto, ou seja, em que medida ela é aquilo que constitui absolutamente o ser do afeto? O que é um afeto? Nietzsche não dá quanto a isso nenhuma resposta clara e exata, assim como não responde à pergunta sobre o que é uma paixão e o que é um sentimento. A resposta dada por ele (“configurações” da vontade de poder) não nos leva imediatamente adiante, mas nos coloca diante de uma tarefa: procurar vislumbrar pela primeira vez a partir do que é conhecido como afeto, paixão e sentimento aquilo que caracteriza a essência da vontade de poder. Por meio daí residiam determinados caracteres que são apropriados para tornar mais clara e mais rica a delimitação do conceito essencial de vontade até aqui. Nós mesmos precisamos levar a cabo esse trabalho. No entanto, (42) as perguntas (o que é afeto, paixão e sentimento?) permanecem sem solução. O próprio Nietzsche chega mesmo, frequentemente, a equipar essas três questões e segue, com isso, o modo habitual de representação ainda hoje vigente. Com essas três noções, que podem ser indiscriminadamente substituídas umas pelas outras, circunscreve-se o assim chamado lado não racional da vida psíquica. Tal asserção pode ser suficiente para a representação habitual, mas não é certamente suficiente para um saber verdadeiro, nem tampouco para um saber que está empenhado em determinar o ser do ente. Todavia, isso não significa que o que temos de fazer é aprimorar as explicações “psicológicas” correntes acerca dos afetos, das paixões e do sentimento. Precisamos perceber, antes de mais nada, que não se trata aqui nem de psicologia em termos gerais, nem tampouco de uma psicologia alicerçada por meio da fisiologia e da biologia, mas sim de modos fundamentais sobre os quais repousa o ser-aí humano, de modos fundamentais como o homem confronta o “aí”, a abertura e o velamento do ente no interior do qual ele se encontra.

(…)

Como devemos tomar então a essência do afeto, da paixão e do sentimento? Como devemos tomar essa essência de modo a torná-la frutífera para a interpretação da essência da vontade no sentido nietzschiano? Nós não desdobraremos aqui nossa consideração senão até o ponto em que ela é necessária para a iluminação da caracterização nietzschiana da vontade de poder.

Por exemplo, a ira é um afeto; em contrapartida, não visamos, com o ódio, a algo apenas em geral diverso do que é designado com o termo “ira”. O ódio não é apenas um outro afeto. Ao contrário, ele não é absolutamente nenhum afeto, mas sim uma paixão. No entanto, denominamos os dois sentimentos. Falamos do sentimento de ódio e do sentimento de ira. Não podemos nos propor e nos decidir a ficar irados. A (43) ira se abate sobre nós, nos acomete, nos “afeta”. Esse acometimento é repentino e tempestuoso; nossa essência é movida por uma espécie de excitação; a ira nos excita, isto é, ela nos alça para além de nós mesmos. No entanto, ela faz isso de uma maneira tal, que em meio ao acometimento da excitação não somos mais senhores de nós mesmos. Diz-se: agiu-se impulsivamente (afetivamente). A linguagem popular demonstra uma grande perspicácia ao dizer o seguinte acerca de alguém excitado e que age sob excitação: ele age de modo efetivamente dividido.1 No acometimento da excitação desaparece a própria ação consonante,2 e essa ação se transforma em ação dissonante. Costumamos dizer: a alegria o deixou fora de si.

Nietzsche está visivelmente pensando nesse momento essencial do afeto ao buscar caracterizar a vontade a partir daí. Esse ser alçado para além de si mesmo, o acometimento de toda a essência de modo que não somos senhores de nós mesmos em meio à ira, esse “não” não significa de maneira alguma que na ira não somos lançados para fora de nós mesmos; justamente o não-ser-senhor no afeto, na ira, distingue muito mais o afeto do assenhoramente no sentido da vontade, pois no afeto o ser-senhor-sobre-si é transformado em um modo do ser-para-fora-de-nós-mesmos no qual perdemos algo. Denominamos o que é adverso algo que pode não acabar bem. Também denominamos a ira algo contra-a-vontade que se lança para fora de nós mesmos. No entanto, isso se dá de tal modo que não nos mantemos juntos a nós mesmos na ira como nos mantemos em meio à vontade, mas como que nos perdemos aí; a vontade é, nesse caso, uma contravontade. Nietzsche inverte esse estado de coisas: a essência formal do afeto é a vontade. Todavia, não se considera agora na vontade senão o ser-excitado, o ser lançado para além de si mesmo.

Como Nietzsche diz que o querer é um querer-para-além-de-si, ele pode dizer em vista desse estar-para-além-de-si-no-afeto que a vontade de poder é a forma originária do afeto. Todavia, Nietzsche também quer aduzir agora manifestamente o outro momento do afeto para o delineamento essencial da vontade, aquele abater-se sobre nós e aquele acometer-nos que tem lugar em meio ao afeto. Isso também, e (44) justamente isso, pertence à vontade em um sentido, sem dúvida alguma, múltiplo que incessantemente se altera. Isso só é possível porque a vontade mesma – vista com relação à essência do homem – é o acometimento puro e simples que viabiliza em geral que nós, quer dessa ou daquela maneira, possamos estar e estejamos mesmo efetivamente para além de nós mesmos.

Klossowski

Krell

Original

  1. Heidegger refere-se à seguinte expressão alemã: “er ist nicht recht ‘beieinander’”. Traduzida ao pé da letra, essa expressão diz “ele não está propriamente ‘junto consigo mesmo’”. A fim de manter o sentido do texto heideggeriano, optamos por lançar mão de uma expressão similar. Cotidianamente, fala-se de um “estar dividido”, e tratam-se os afetos como elementos que provocam uma ação plena de dissonâncias. (N.T.)[↩]
  2. Das rechte Beieinander: o correto estar-consigo-mesmo. (N.T.)[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

Designed with WordPress