GA6T1:347-354 – caos

Casanova

9. Precisamos pensar agora uma vez mais conjuntamente todas essas caracterizações do mundo que apenas listamos: força, finitude, devir constante, caráter inumerável dos fenômenos, limitação do espaço, infinitude do tempo; e isso em vista da determinação central com a qual Nietzsche define o “caráter conjunto do mundo”. Com essa determinação conquistamos o solo para a interpretação conclusiva do mundo que deve ser estabelecida no n. 10 a seguir. Faremos referência (244) aqui a uma sentença nietzschiana que se acha no (mais ou menos da mesma época) importante aforismo n. 109 de A gaia ciência:

“Em contrapartida, o caráter conjunto do mundo é em toda eternidade caos.”

Essa representação fundamental do ente na totalidade como caos, uma representação que guiou Nietzsche mesmo antes da doutrina do retorno, tem uma significação dupla: por um lado, trata-se de fixar a representação diretriz do que constantemente vem-a-ser no sentido da representação habitual do πάντα ρει, do eterno fluir das coisas, uma representação que Nietzsche também tomou falsamente como própria a Heráclito, assim como o fizera a tradição corrente; nós a denominamos mais corretamente pseudo-heraclítica. Por outro lado, porém, trata-se de deixar o que constantemente vem-a-ser ficar consigo mesmo e não continuar sendo derivado enquanto um múltiplo a partir do “uno”, quer esse uno seja representado como o criador ou o demiurgo, como o espírito ou como uma matéria-prima fundamental. De acordo com isso, caos é o nome para aquela representação do ente na totalidade que posiciona esse ente enquanto um devir necessário juntamente com uma multiplicidade, de tal modo, em verdade, que permanecem excluídas originariamente “unidade” e “forma”. A exclusão parece ser, inicialmente, a determinação central da representação do caos, uma vez que deve se estender sobre tudo o que traz consigo de algum modo a inserção do modo de ser do homem no todo do mundo.

Por mais que Nietzsche tenha distinguido o seu conceito de caos de toda representação de uma confusão fortuita, arbitrariamente assumida, e de uma espécie de magma universal do mundo, ele não consegue se libertar da significação tradicional de caos que visa ao espaço desprovido de ordem e de lei. Já se acha encoberta aqui, e, em verdade, juntamente com outros conceitos diretrizes essenciais, a experiência mesma que orienta o pensamento de Nietzsche. Caos, χάος, χαίνω significa bocejar, o que boceja, o que se abre largamente ou se fende em dois. Entendemos χάος em uma conexão maximamente estreita com uma interpretação originária da essência da ἀλήθεια enquanto o abismo que se abre (cf. Hesiodo, Teogonia). (…)

No entanto, cometeríamos um erro grosseiro se quiséssemos definir essa representação diretriz do pensamento nietzschiano, essa representação do mundo como caos, por meio de chavões baratos como “naturalismo” e “materialismo”, ou se pensássemos mesmo que essas denominações esclarecem essa representação de uma vez por todas. A “matéria” (isto é, a recondução de tudo à matéria-prima) é tanto um erro quanto “o deus dos eleatas” (isto é, a recondução de tudo ao que não possui o caráter da matéria-prima).1 Em termos principiais, é preciso dizer da representação nietzschiana do caos o seguinte: só um pensamento dotado de baixa capacidade respiratória deduzirá a partir da leitura dessa vontade de desdivinização do ente a vontade de ateização. Em contrapartida, o pensamento verdadeiramente metafísico, na desdivinização mais extrema, que não se permite mais esconderijo algum e não se deixa enlevar por uma atmosfera nebulosa, é capaz de descobrir um caminho sobre o qual unicamente os deuses vêm ao encontro – se é que eles ainda podem efetivamente vir ao encontro uma vez mais na história do homem.

(…)

No vocabulário nietzschiano, a palavra “caos” designa uma representação defensiva, em consequência da qual nada pode ser enunciado do ente na totalidade. A totalidade do mundo torna-se, assim, algo fundamentalmente ininterpelável discursivamente e indizível – um άρρητον. O que Nietzsche empreende aqui em relação à totalidade do mundo é uma espécie de “teologia negativa”, que também procura apreender o absoluto da maneira mais pura possível, mantendo afastadas todas as determinações “relativas”, isto é, ligadas ao homem. A única diferença é que a determinação nietzschiana da totalidade do mundo é uma teologia negativa sem o Deus cristão.

Tal procedimento defensivo representa o contrário de um desespero quanto ao conhecimento e de um mero anseio por negação e destruição. Por isso, esse procedimento sempre vem à tona uma vez mais em diferentes configurações em todo grande pensador. Ele tampouco pode ser refutado imediatamente enquanto mantiver seu estilo e não saltar as barreiras postas por ele mesmo para si.

Como as coisas se acham agora em nosso caso?

Destacamos em oito pontos uma série de determinações sobre a totalidade do mundo no sentido nietzschiano, e retomamos esses oito pontos em vista da determinação central no nono ponto: “O caráter conjunto do mundo é… em toda eternidade caos.” Não precisamos tomar essa sentença mesma como significando, agora que não podemos fazer propriamente outra coisa senão revogar as determinações previamente dadas e que temos o direito de dizer simplesmente: caos? Ou será que aquelas determinações residem no conceito de “caos” de tal modo que são salvas juntamente com esse conceito e com a sua aplicação à totalidade do mundo como a única determinação dessa totalidade? Ou será ainda que as determinações e ligações pertencentes à essência do caos (força, finitude, ausência de fim, devir, espaço, tempo) derrubam inversamente enquanto humanizações mesmo o conceito de “caos”? Nesse caso, não podemos propor absolutamente nenhuma determinação e não podemos dizer senão “nada”. Ou será possível que “o nada” talvez seja a mais humana de todas as humanizações? É preciso levar o (248) nosso questionamento até esse extremo para que venhamos a nos dar conta do caráter único da tarefa que temos diante de nós, a saber, a tarefa de uma determinação do ente na totalidade.

Inicialmente, precisamos lembrar que Nietzsche não define apenas a totalidade do mundo como caos. Ao contrário, ele atribui ao próprio caos um caráter permanente: “a necessidade”. Ele diz expressamente (A gaia ciência, n. 109): “O caráter conjunto do mundo é… caos, não no sentido da falta de necessidade, mas no sentido da falta de ordem.” O devir sem início e sem fim (o que significa aqui o devir eterno) do mundo limitado é, em verdade, sem ordem no sentido de algum arranjo intencional, mas, não obstante, não é sem necessidade. Sabemos que a noção de necessidade denomina desde há muito no pensamento ocidental um caráter do ente, e que a necessidade como caráter fundamental do ente experimentou as mais diversas interpretações: μοίρα, fatum, destino, predestinação, processo dialético.

Farrell Krell

Original

  1. N.T.: O aforismo 109 de A gaia ciência fala expressamente de “matéria” e do “deus dos eleatas”.[↩]
  2. Arreton, the negation of rheton, is found in Homer, Hesiod, and throughout the Classical Age. It means what is unspoken, inexpressible, unutterable, shameful, not to be divulged. Ta arreta are irrational numbers or surds.[↩]
  3. On Moira as “fateful allotment” in Parmenides’ thought, see Martin Heidegger, Vorträge und Aufsätze (Pfullingen: G. Neske, 1954), pp. 231-56; Early Greek Thinking; tr. D. F. Krell and F. A. Capuzzi (New York: Harper & Row, 1975), pp. 79-101; especially sections VI-VII. One of the rare places where Heidegger discusses dialectical thought is “Grundsätze des Denkens,” in the Jahrbuch für Psychologie und Psychotherapie, VI (1958), 33-41.[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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