GA6T1:319-321 – humanização

Casanova

Já como concepção levada a termo pelo homem, toda concepção do ente e, sobretudo, do ente na totalidade está ligada ao homem. A ligação provém do homem. Toda interpretação de tal concepção é uma discriminação do modo como o homem finca pé no interior da concepção do ente e se coloca em relação a ela. Com isso, a interpretação é uma inserção de representações e modos de representação humanos no ente. Até mesmo a mera interpelação discursiva do ente, a denominação do ente por meio de palavras acaba por recobrir o ente com um construto humano, por aprisionar o ente no território humano – se é que a palavra e a linguagem realmente distinguem o homem em sentido extremo. Toda representação do ente na totalidade, toda interpretação do mundo é, com isso, incontornavelmente uma humanização.

Tais reflexões são tão elucidativas que quem as tiver acompanhado ainda que apenas de maneira rudimentar precisará ver como o homem é sempre impelido para o beco de sua própria humanidade com todas as suas representações, intuições e determinações do ente. Assim, é fácil tornar compreensível para o mais simplório dos homens o quanto toda representação humana nunca provém senão de algum canto desse beco, quer a representação do mundo tenha surgido de um grande pensador singular e normativo, quer ela aponte para a sedimentação das representações de grupos, épocas, povos e famílias de povos. Hegel explicitou esse fato por meio de uma referência irrefutável ao nosso uso linguístico, que dá ensejo a um jogo de palavras nada superficial ou forçado.1

Todas as nossas representações e intuições são de tal forma que nós sempre visamos a algo (meinen) nelas: o ente. Em todo e qualquer visar, porém, eu transformo ao mesmo tempo incontornavelmente o que é visado em algo meu (zum Meinigen). Assim, todo visar que aparentemente só está ligado ao objeto transforma-se em um ato de tomada de possessão e de incorporação do que é (251) visado ao eu humano. Em si, visar significa, ao mesmo tempo: representar algo e transformar o representado em algo meu. No entanto, mesmo lá onde não é o “eu” individualizado que visa, onde aparentemente não prevalece a normatividade do pensamento de nenhum homem em particular, o perigo da subjetividade só é aparentemente superado. A humanização do ente na totalidade não é aqui menor, mas maior; e, em verdade, maior não apenas no que diz respeito à abrangência, mas antes de tudo também segundo o tipo, uma vez que ninguém chega mesmo a pressentir a humanização por meio da qual se estabelece a aparência inicialmente insuplantável de que nenhuma humanização está em jogo. Todavia, se a interpretação do mundo é inseparável da humanização, então não há a menor chance de se levar a termo a tentativa de desumanizar essa humanização; pois essa tentativa de desumanização é apenas uma vez mais uma tentativa do homem. Ou seja: ela é, por fim, uma humanização na potência.

Em particular para todos aqueles que se deparam pela primeira vez com caminhos similares de pensamento, essas reflexões são de um poder de convencimento avassalador. Se não nos desviamos imediatamente de tais pensamentos e nos salvamos por meio de uma fuga na “práxis” da “vida”, eles costumam nos levar para uma situação onde só restam, por fim, duas possibilidades: ou bem duvidamos e nos desesperamos quanto à presença de alguma possibilidade de verdade e só continuamos a tomar as coisas em geral como um jogo de representações, ou bem nos decidimos em termos de crença por uma interpretação de mundo de acordo com o princípio de que uma é sempre melhor do que nenhuma, por mais que ela nunca passe de uma entre muitas. Com um pouco de sorte talvez possamos demonstrar a sua legitimidade por meio de seu sucesso, de sua utilidade ou da amplitude de sua expansão.

As posturas essenciais ante a humanização tomada em si por insuperável são, consequentemente, as seguintes: ou bem nos havemos com isso e nos movimentamos na aparente superioridade daquele que duvida de tudo, que não se imiscui em nada e procura alcançar por meio daí a sua paz, ou bem buscamos esquecer a humanização e mantê-la afastada, alcançando, dessa forma, a nossa paz. Portanto, onde quer que a suspeita de humanização seja apresentada como insuperável, permanecemos presos a uma superficialidade, por mais facilmente que essas reflexões relativas à humanização possam dar a impressão de serem maximamente perspicazes e, antes de tudo, “críticas”. Que revelação não foi para a massa sem familiaridade com o real pensamento e com a sua história pura quando Spengler pensou ter descoberto pela primeira vez o fato de toda época e toda cultura ter a sua própria visão de mundo! Não obstante, tudo não passava de uma popularização muito hábil e astuta de ideias e questões que há muito – e por último com (252) Nietzsche – foram pensadas, mas que não foram e continuam até agora sem ser de modo algum dominadas. A razão para que isso tenha acontecido é tão simples quanto difícil de ser penetrada inteiramente em toda a sua gravidade.

Farrell Krell

Klossowski

Original

  1. N.T.: Heidegger refere-se, aqui, ao primeiro capítulo de A fenomenologia do espírito·. “A certeza sensível ou o isso e o visar”. Em verdade, Hegel joga nesse capítulo com o fato de o verbo alemão meinen (opinar, visar) se confundir em certos momentos com o pronome possessivo mein (meu).[↩]
  2. The following reference to Hegel’s use of meinen, “to mean,” as a playful way to indicate the way in which sheer “opinion” (die Meinung) is something purely “mine” (mein), in contrast to the genuine universality (das Allgemeine) embraced by the language of concepts, may be traced through the early sections of Hegel’s Phenomenology of Spirit, from “Sensuous Certainty” to “Certainty and Truth of Reason.” See G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, ed. Johannes Hoffmeister (Hamburg: F. Meiner, 1952), pp. 82-83, 185, 220-21, and 234-36. The same play occupies a special place in Hegel’s mature “system.” See the “Remark” to section 20 of the Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, 3d edition, 1830, ed. Friedhelm Nicolin and Otto Pöggeler (Hamburg: F. Meiner, 1969), pp. 54-56, where the root mein unites what in English we must isolate as “opinion,” “meaning” or “intention,” “mine,” and “universal.”[↩]
  3. Heidegger parle en 1937. (N. d. T.).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

Twenty Twenty-Five

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