GA66:95 – ser-aí (Da-sein)

Casanova

O ser-aí permanece incomparável, não admite nenhum aspecto sob o qual pudesse ser subsumido como algo conhecido.

O ser-aí interrompe toda tentativa de explicação; na clareira que ressurge abissal e tranquilamente, a explicação (cálculo) não pode manter mais em parte alguma a pretensão a uma captação do ser; toda exposição ao elemento maquinacional perdeu o fundamento e o âmbito de consistência. A explicação não significa mais nada, sim, ela só continua se enredando no não ente e ainda retém, assim, uma duração em si arrastada há muito tempo; e isso apesar de uma outra explicação já ter deixado de um outro modo a verdade se tornar o tempo-espaço do ente.

Como é que o ser-aí pode chegar algum dia a ser “explicado”? Ele não pode ser expedido nem mesmo como inexplicável.

É preciso pensar o ser-aí apenas em termos da história do seer: a fundação, que é apropriada em meio ao acontecimento pela essência do seer, da verdade que lhe é própria; e como a fundação insistentemente o saber do seer enquanto acontecimento apropriativo.

Por isso, apesar de à distância, de qualquer modo decididamente a conexão fundamental entre ser-aí e “compreensão de ser”.

Ser-aí em aspecto algum uma determinação de um ente, nem de um objeto nem de um sujeito, nem em geral de um ente pensado de um modo qualquer.

Ser-aí unicamente pertencente à essenciação do seer, que abandonou a entidade e ganha voz e saber a partir de sua verdade.

Por isso, o ser-aí não pode ser previamente encontrado e exposto junto a um ente, nem junto a um ente presente-à-vista qualquer, nem junto ao homem; jamais pode ser mostrado e ainda menos “vivenciado” objetivamente. Desse modo, o “ser-aí” só pode ser pensado desde o início “hermeneuticamente”, isto é, apenas como o projetado de um projeto insigne, a saber, do projeto do ser com vistas ao seu sentido, isto é, com vistas à sua verdade como clareira.

Portanto, o ser-aí também nunca pode ser deduzido de um projeto do ente na totalidade, que precisa se manter de uma forma qualquer conforme com a representação metafísica.

Aquele projeto do seer, porém, lança aquele mesmo que joga concomitantemente na clareira aberta, na qual aquele que joga se reconhece como apropriado em meio ao acontecimento. Esse projeto que arrasta consigo e transpõe realiza em si uma transformação essencial daquele que joga, na medida em que esse se chama “homem”.

A custódia para a verdade do ser se inicia.

Por que, porém, o ser-aí é concebido como “temporalidade”? Porque o aí como clareira se torna de início visível na essenciação do tempo-espaço — até mesmo a partir da metafísica, e, em verdade, em seu começo. Nesse contexto, “tempo” e “espaço” não têm em vista o “lugar” e a “sucessão” da série dos agoras, mas antes disso a clareira essenciante e una do ser. Todavia, o fato de o ser se encontrar em tal clareira é atestado pela interpretação do ser como ousia — presença e constância. Com certeza, isso só pode e já pode ser inquerido a partir da pergunta fundamental acerca da verdade do ser; a inquirição da “temporalidade” da ousia já se encontra fora da metafísica.

Temporalidade do aí designa a clareira extasiante; e, por isso, o importante era fornecer um aceno através da “temporalidade” para o ser-aí.

Temporalidade” aqui não é pensada nem em termos “cristãos”, nem em geral no conceito oposto à “eternidade”; a não ser que se conceba “eternidade” (o aei) verdadeiramente como determinação ontológica e se questione o que significa essa determinação e seu primado no interior da interpretação do ser e em que ela se funda, em que medida constância e presença imperam em geral sobre a relação com o ente enquanto tal.

Mas se o “eterno” só é tomado metafisicamente como uma realidade efetiva própria, ou se ele é diluído como “ideal” e como “validade” de valores; e se a “temporalidade” é assim correspondentemente desvalorizada, então toda compreensão de Ser e tempo se torna de antemão impossível. As tomadas de posição a partir de tal “orientação” possuem uma relação de copertinência juntamente com aquelas orientações que compreendem “ser-aí” precisamente como “presença-à-vista” — existentia — to estin.

No entanto, na medida em que se mantém o mesmo teor vernacular e em que “ser-aí” tem em vista algo incomparavelmente diverso do que se designa na expressão “a existência (o ser-aí1) de Deus” ou, por exemplo, “titio está aí”, por um tempo a palavra e o conceito são com certeza ambíguos.

Em parte alguma, a não ser no questionamento da essenciação do seer, oferece-se um ponto de apoio para se conceber o ser-aí, porque o ser-aí é aquilo que é a cada vez apropriado em meio ao acontecimento pelo modo de essenciação do seer mesmo, sem jamais se tornar um “mero” “ente” (propriedade).

Em relação à primeira referência em Ser e tempo, costuma-se observar que aquilo que é aí “apresentado” já tinha sido visualizado antes, já tinha sido pressuposto e que, então, seria exposto posteriormente como se se tratasse de uma pura invenção (como se houvesse algo assim). Pensa-se desmascarar com tal objeção o procedimento em seu cerne como um pseudoempreendimento e não se percebe que com essa referência ao estar previamente concebido do “que precisa ser mostrado” se denomina precisamente aquilo que importa: o projeto. Em parte alguma em Ser e tempo impera a opinião de que o homem poderia ser contemplado fixamente de maneira desprovida de pressupostos e de que um dia, se essa contemplação fosse empreendida de maneira suficientemente ardente e duradoura, o “ser-aí” poderia ser “descoberto”.

A consequência dessa opinião prévia é, então, o fato de se contrapor a essa pretensa “antropologia” unilateral uma outra, de se seguir o rastro de pressupostos e avaliações pessoais do autor e só se continuar tolerando o todo como algo estranho que, “em seu tempo”, pôde se tornar um dia possível nos 14 anos supostamente questionáveis e sob a influência de uma concepção do homem “característica da cidade grande”.

Na medida em que sobre esse caminho se encontram por toda parte unilateralidades e limites do ponto de vista, considera-se essa tentativa como fracassada, antes de poder se colocar mesmo que na esfera mais afastada daquela questão única, em cujo campo de visão seus passos são pensados e ditos.

O ser-aí é o fundamento histórico apropriado em meio ao acontecimento a partir do acontecimento apropriativo da clareira do seer.

Ser-aí é a ressonância silenciada da voz do acontecimento apropriativo como insistência da tranquilidade, na qual o peculiar é apropriado em sua propriedade em meio ao acontecimento e o ente é decidido em honra do seer.

O ser-aí só precisa ser fundado insistentemente no acontecimento da apropriação do acontecimento apropriativo, isto é, a partir do seer. Por isso, toda tentativa de conceber o ser-aí prepoderante ou mesmo exclusivamente a partir do homem é insuficiente. O ser-aí é igualmente essencial para o deus e ele é determinado de maneira igualmente essencial pela relação com mundo e terra, que conservam nele a sua propriedade essencial. Não obstante, no sentido da meditação e da denominação apropriante e acenante, a relação do ser-aí com o homem possui um primado que condiciona o fato de o projeto mais imediato do ser-aí precisar se lançar para além do homem (cf. Ser e tempo). Precisamente por meio daí, porém, já não se pensa mais o homem antropologicamente, isto é, metafisicamente, mas se concebe a partir da compreensão de ser do homem uma compreensão que se desdobre como a custódia da verdade do seer. Com isso, contra a metafísica como um todo, de maneira igualmente essencial, supera-se toda humanização do homem posta na mera autoafirmação de si mesmo (a subjetividade).

Se o homem não é mais feito à “imagem e semelhança” do Deus criador judaico-cristão, segue-se daí que ele seria feito, então, à “imagem e semelhança” de si mesmo? De maneira alguma; não, sobretudo se a relação com o seer, se a insistência na verdade do seer, constituir o fundamento essencial do homem. Para o pensar da história do seer, a única consequência é: o homem não é de modo algum feito à “imagem e semelhança” de algo diverso, mas possui uma essência maximamente própria e, em verdade, insigne (por força da referência ao seer); a particularidade de sua essência não significa egoísmo oriundo do posicionamento essencial obstinado, mas pertencimento ao que há de mais único, o que não conhece como tal elemento único nada diverso que pudesse se mostrar como seu igual: pertencimento ao seer. O ser-aí assume concomitantemente a história da fundação da incomparabilidade em termos da história do seer da essência humana. Somente isso permite mesmo a expectativa do deus que, como o último, deixou para trás todas as correspondências ao humano.

O ser-aí é, porque o seer acontece apropriativamente como a ex-portação resolutora, nunca apenas ligada ao homem como o seu fundamento, assim como o “mundo” e a “terra” não permanecem sem ser tocadas pela irradiação essencial do deus. (p. 262-267)

Dina Picotti

Emad & Kalary

Original

  1. Em alemão, o termo Dasein é tradicionalmente utilizado como o sinônimo de existência no sentido hoje corrente da palavra, no sentido de presença real e efetiva de algo (N.T.).[↩]
Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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