GA66:61 – antropomorfismo

Casanova

Como não é próprio ao antropomorfismo uma “sistemática” passível de ser desdobrada, na medida em que ele nunca se mostra senão como uma retirada em direção a uma tese, a meditação precisa buscar sempre, por meio de suas questões e segundo diversos “ângulos”, encontrar tão somente a mesma posição fundamental, isto é, tornar essa posição em todos os aspectos dignos de questão.

1) Será que o comportamento humano em geral e o “pensamento” humano em particular podem ser algum dia aquilo que eles são de um modo diverso do constante enraizamento no “homem”?

2) Com o fato de dessa maneira o homem continuar sendo estabelecido como solo de realização de seus comportamentos (144) também se acha ao mesmo tempo decidida a antropomorfização de tudo aquilo ao que o comportamento e o pensamento a cada vez se referem – o ente? A aparência do contrário é apenas uma mera aparência no interior deste estado irremovível?

3) E o que é considerado aqui como propriamente irremovível? Não se trata da obviedade há muito poderosa que vem se tornando cada vez mais vazia do estabelecimento do homem como animal racional? A antropomorfização do ente na totalidade já não é, então, a consequência da humanização precedente irreconhecível do homem? Com essa humanização, estar-se-ia designando inicialmente a reconstrução daquilo que distingue o homem como homem (no sentido de uma distinção no interior do âmbito do ser vivo) em meio à animalidade. Essa animalidade, porém, circunscreve ao mesmo tempo os seres-vivos e, com isto, o homem como um ente que pode ser previamente encontrado, que é a cada vez dotado com capacidades inferiores e “superiores” (“órgãos”). Portanto, a humanização significa: o homem é reprimido e transformado em um ser animal presente à vista, que também se mostra entre outros seres animais; a avaliação diversa das capacidades e desempenhos humanos não altera nada em relação a esta fixação metafísica da essência humana.

4) Ora, mas se o antropomorfismo consiste em uma tal humanização e não primeiramente e apenas na antropomorfização de todo ente, então a meditação sobre o antropomorfismo não precisa levantar primordialmente a questão acerca da essência do homem? A exigência soa óbvia. E, contudo, ela oculta em si as decisões mais questionáveis, porque não está decidido como, afinal, a partir de que propósitos e segundo que aspectos se precisaria perguntar pelo homem e de que maneira uma decisão poderia ser tomada aqui.

5) A pergunta acerca da essência do homem precisa ser certamente estabelecida de tal modo segundo a sua direção e alcance, que ela permaneça competente antecipadamente para tudo aquilo de questionável que uma meditação sobre o antropomorfismo possa tornar visível.

(145) 6) No antropomorfismo, afirma-se a antropomorfização do ente na totalidade, ou seja, do ente enquanto tal. Como o que é representado graças ao representar, o ser é um produto do animal racional. No antropomorfismo reside uma decisão prévia quanto ao ser como um produto do homem humanizado. Como, onde e quando essa decisão é a cada vez tomada enquanto tal – como uma decisão sobre o ser? Mas se ela nunca foi tomada em parte alguma, então uma tal decisão sobre a essência do ser mesmo não precisa ser anteriormente colocada em decisão? A pergunta acerca do homem não tem de levantar a pergunta diante de si: como é, afinal, que o homem pode ser efetivamente assinalado à verdade sobre o ser, para que tais decisões possam se tomar para ele um dia uma indigência, e as questões neste âmbito de decisão possam se tornar para ele uma necessidade? Como, se esse assinalamento questionável do homem à verdade do ser já anunciou antes de tudo a sua essência? Por que é, contudo, que precisamente este aceno permaneceu até aqui sempre sem ser apreendido?

7) O que é esse assinalamento do homem à verdade (clareira) do seer? De onde ele emerge? Ele é uma invenção e um arbítrio do “homem” e o que ainda significa, então, “o homem”? Ou será que o homem só é apropriado em meio ao acontecimento para a sua essência por meio do seer? E o seer se essencia como esse acontecimento apropriativo e somente como ele?

8) Para salvar sua essência, isto é, para se configurar de um modo que faça jus à sua essência, o homem não precisa se tornar, então, o fundador da verdade do seer? A salvação da essência do homem é, então, uma transformação naquela atividade fundacional, cuja essenciação nós denominamos o ser-aí. A humanização do homem desmorona em si mesma. A antropomorfização do ente é sem fundamento.

9) O saber “sobre” o ser-aí, o que significa aqui o próprio ser-aí, é em si necessariamente o saber sobre as múltiplas condições em termos da história do seer capazes de assegurar ao antropomorfismo a sua aparente “naturalidade”, in-destrutibilidade e facilidade; essas condições são:

(146) a) o primado integral do ente em relação ao ser na metafísica e, em verdade, precisamente com base no questionamento metafísico acerca do ser (como a entidade);

b) a experiência, assentada no campo de visão desse primado, do homem como animal racional;

c) a consolidação da “essência” presente à vista do homem no modo cristão de pensar (o ens creatum – homo – como “peregrino da terra”);

d) o aguçamento da presença à vista do homem por meio da interpretação como “sujeito”;

e) o atrelamento final do homem à maquinação desatada do ente (técnica – historiologia).

10) Mas se a essência do seer se funda no acontecimento apropriativo, no acontecimento da apropriação do homem para o ser-aí, o seer – e não mais apenas o ente – não é determinado agora com maior razão com vistas ao homem, isto é, a partir dele? Não! – Pois o acontecimento da apropriação para o ser-aí já é em si a superapropriação em meio ao acontecimento para o seer como aquele entre ab-issal, em cujo espaço-de-jogo-temporal o vir-ao-encontro do deus e do homem se cruza com a contenda de terra e mundo.

Emad & Kalary

Original

Excertos de

Heidegger – Fenomenologia e Hermenêutica

Responsáveis: João e Murilo Cardoso de Castro

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