Quanto mais se considera o ente como efetivamente real, tanto mais eficaz também precisa se tornar o “sujeito”, tanto menos ele ainda pode se manter como “espírito” (Geist), “saber” (Wissen) e conhecimento (Erkenntnis), tanto mais ele precisa se arrogar como cheio de vida (Leben) (“corpo vital” (Leib) e “alma” (Seele)), de modo que um dia a “vida” (Leben) acaba por se equiparar ao ente na totalidade (Seienden im Ganzen) e a essência do homem (Wesen des Menschen) se determina como vida e a partir da “vida”.
A animalidade do homem (Tierheit des Menschen) (ζῷον, animal) conquista agora a sua vitória; o que não significa que agora tudo é pensado “animalescamente”. Por ser inequivocamente tosco, algo deste gênero também permaneceria inofensivo. Dizer que a animalidade vence significa: “corpo vital” e “alma” como as determinações iniciais e constantes (como quer que venhamos a concebê-las) do animalesco assumem o papel da essencialidade (Wesentlichkeit) no interior da essência do homem. Tão antigo quanto a animalidade do homem é também o pensar (Denken) – a razão (Vernunft), νοῦς, ratio, o “espírito” (Geist) como determinação essencial do homem (Wesensbestimmung des Menschen). E há muito tempo impera a ordem hierárquica corpo vital – alma – espírito; e, em verdade, por diversas razões: em última instância, porque o espírito como a “alma” do entendimento e da razão é suposto como o mais efetivamente real e o mais eficaz na produção e representação (Herstellen und Vorstellen) (actus purus), até que, com a inversão do platonismo por meio de Nietzsche, o espírito pôde ser despotencializado e transformado no adversário da alma (da “vida”). A vitória da animalidade receia, em verdade, depor pura e simplesmente o “espírito” e expô-lo como um epifenômeno da “vida”. Por isto, atiça-se um pseudo-embate entre aqueles que defendem o “espírito” e aqueles que gostariam no fundo de negá-lo. Em verdade, porém, as pessoas já chegaram há muito tempo – sem saber por que – a um acordo; os negadores do “espírito” o querem ver apesar disto protegido e os defensores o negam, contudo, na medida em que procuram se salvar por meio de um truque e reorganizam aquela hierarquia acima mencionada, para que o “espírito” seja bem assumido agora no ponto central entre o animal, o corpo vital e a alma; diz-se agora: corpo vital – espírito – alma. Todavia, tudo permanece a mesma coisa, ou seja, o esquecimento do ser (Seinsvergessenheit) há muito concebido em uma marcha acelerada impele à sua consumação; pois cada vez menos se consegue saber o que significa propriamente “espírito”, depois de ele ter se tornado há muito tempo a concepção anímica da ratio e ter fundado essa ratio no sujeito.
Acredita-se que se está movendo em uma “luta” (Kampf) pela essência do homem e da “vida”, não se vislumbra o fato de essa “luta” não ser outra coisa senão a fuga ante a questionabilidade do seer (Fragwürdigkeit des Seyns).
A luta contra o “espírito”, assim como também a “mendacidade” (Verlogenheit) do sim e não simultâneos a ela é o empreendimento do esquecimento do ser.
Mas mesmo a defesa do “espírito” imerge no esquecimento do ser, na medida em que o “espiritual” é apenas uma região da “cultura” e do gosto (Geschmacks), da eticidade (Sittlichkeit) e da crença (Glaubens). Aqui como lá, o “espírito” retira a sua determinação da animalidade do homem.
A fórmula essencial usual para a determinação animalesca do homem é: unidade de corpo vital – alma – espírito; o espírito tem a posição hierárquica mais elevada e também determina, por isto, ainda que de maneira bastante indeterminada, a “unidade” (Einheit) (ou será que essa unidade reside antes desta triplicidade? E como o quê?).
Nessa fórmula essencial, a animalidade do homem está aparentemente subordinada e refreada, apesar de, segundo a sua essência, o “espírito” só permanecer de qualquer modo experienciável em consideração à animalidade.
A fórmula atual: corpo vital – espírito – alma é mais clara no que diz respeito à animalidade e, com isto, mais decidida na recaída do que se tinha até aqui. Corpo vital e alma – o animalesco enquanto tal abarca, domina e delimita o “espírito”.
Ao mesmo tempo, contudo, essa fórmula que, expressando uma recaída, gostaria de ser justamente “nova” é necessariamente mais ambígua e isto significa ainda mais indecisa e cheia de covardia ante uma decisão pensante. Ela é, apesar de estar aparentemente dirigida contra o cristianismo e o catolicismo, católica no sentido mais autêntico do termo, na medida em que se pode fazer tudo com ela e em que se permanece ao mesmo tempo protegido contra tudo com ela. Trava-se aqui o predomínio do espírito (ao mesmo tempo, então, ainda mal interpretado como “intelecto” (Intellekt)) e prega-se o “caráter” (Charakter), o animal e o instinto (Instinkte). Mas não se alija efetivamente o “espírito”. Ao contrário, ele é colocado no ponto central, o que dá a impressão de que ele se acha agora protegido e defendido. Considera-se naturalmente como necessário se proteger contra a repreensão por barbarismo.
Agora, tudo está em ordem – sob o teto protetor da animalidade (corpo vital – alma) pode-se acolher de maneira jovial e alegre (assim o parece) todas as conquistas espirituais de toda a história, ou seja, é possível se entregar agora ao historicismo (Historismus) em uma tal medida, que o historicismo do século XIX parece anão.
Há agora uma gigantesca satisfação nas “ciências” – sobretudo nas ciências do “espírito” (ciências humanas) – quanto as possibilidades recém-oferecidas de descobertas e refutações da ciência até aqui. Há um sentimento de que se está ratificado e requisitado em sua “espiritualidade”, de que é um prazer “viver” – e, não obstante, não se trata aqui senão do desabrochar dos impulsos selvagens e longos de uma ausência de decisão do homem no interior do crescente abandono do ente por parte do ser. Seu triunfo extremo é a ausência de pressentimentos (Ahnungslosigkeit) quanto a si mesmo: a fuga da essência por parte do homem (Wesensflucht des Menschen) torna-se um “pânico” (Panik) mais ou menos velado. (GA66MAC:128-130)