ereignete / er-eignet
Será que está determinada para nós futuramente uma história totalmente diversa daquilo que parece ser hoje considerado como história: a turva caçada às ocorrências que devoram a si mesmas e que só se deixam fixar ainda por meio do mais estridente barulho? Se é que uma história, ou seja, um estilo do ser-aí, ainda nos deve ser doado, então isto só pode ser a história velada da grande tranquilidade, na qual e como a qual o domínio do último deus abre e configura o ente. Portanto, a grande tranquilidade precisa primeiramente se abater sobre o mundo para a terra. Essa tranquilidade emerge apenas do silêncio. E esse silenciamento só desponta da retenção. Ela atravessa de maneira afinadora enquanto tonalidade afetiva fundamental a intimidade da contenda entre mundo e terra e, com isto, a contestação do ataque da apropriação em meio ao acontecimento. O ser-aí como contestação dessa contenda tem sua essência no abrigo da verdade do seer, isto é, do último deus em meio ao ente. [tr. Casanova; GA65: 13]
Enquanto insistência do ser-aí, cuidado é a decisão antecipadora da verdade do ser e o aprisionamento que suporta, sobretudo, algo referido no aí; o fundamento desse “sobretudo” é a retenção do ser-aí. Essa retenção afina apenas enquanto pertencimento à verdade do ser, que se apropriou em meio ao acontecimento. [tr. Casanova; GA65: 13]
Ser usado pelos deuses, por meio de tal elevação ser esmagado, na direção desse velado precisamos inquirir a essência do seer enquanto tal. Nós não podemos, então, porém, explicar o seer como o aparentemente ulterior, mas precisamos concebê-lo como a origem, que de-cide e se apropria em meio ao acontecimento pela primeira vez dos deuses e do homem. Essa inquirição do seer leva a termo a abertura do campo de jogo temporal de sua essenciação: a fundação do ser-aí. [tr. Casanova; GA65: 43]
A longa hesitação da verdade e das decisões é uma recusa da via mais curta e dos maiores instantes. Nessa era, “o ente”, aquilo que se denomina o “efetivamente real”, “a vida” e “os valores”, é desapropriado do seer em meio ao acontecimento. [tr. Casanova; GA65: 57]
A guarda do homem, contudo, é o fundamento de uma outra história. Pois ela não se realiza como mero manter-em-vista algo presente. Essa guarda é antes uma guarda fundante. Ela precisa erigir a verdade do seer e abrigá-la no “ente” mesmo, que, assim, desdobra pela primeira vez novamente – inserindo no seer e em seu estranhamento – a simplicidade encantadora de sua essência, ultrapassa toda maquinação e se subtrai à vivência em meio ao erigir de um outro domínio, isto é, de seu âmbito, do qual o último deus se apropriou em meio ao acontecimento. É somente por meio da queda e da reviravolta do ente que o ente bifurcado em maquinação e vivência e já calcificado no que não é chega a ceder diante do seer e, com isso, alcança a sua verdade. [tr. Casanova; GA65: 123]
O seer é o estremecimento dessa deização, o estremecimento como extensão do campo de jogo temporal, no qual ele mesmo apropria para si a sua clareira (o aí) em meio ao acontecimento como a recusa. [tr. Casanova; GA65: 127]
A medida excessiva não é nenhuma mera demasia quantitativa, mas o subtrair-se a toda avaliação e mensuração. Nesse subtrair-se (encobrir-se), porém, o seer tem a sua proximidade mais imediata na clareira do aí, na medida em que ele se apropria do ser-aí em meio ao acontecimento. [tr. Casanova; GA65: 131]
O discurso sobre a ligação do ser-aí com o seer torna o seer ambíguo, ele o torna o em-face-de, o que ele não é, na medida em que ele mesmo se apropria primeiro sempre a cada vez em meio ao acontecimento daquilo para o que ele deve se essenciar como um em face de. Por isto, essa ligação também é completamente incomparável com a ligação-sujeito-objeto. [tr. Casanova; GA65: 135]
A unicidade da morte no ser-aí do homem pertence à determinação originária do ser-aí, a saber, ser apropriado em meio ao acontecimento pelo seer mesmo, a fim de fundar sua verdade (abertura do encobrir-se). Na inabitualidade e na unicidade da morte abre-se o que há de mais inabitual em todo ente, o próprio seer, que se essencia como estranhamento. Mas para poder pressentir algo desse contexto maximamente originário em geral a partir do posto habitual e gasto do opinar e do calcular comuns, é preciso que se torne visível previamente com toda a agudeza e unicidade a ligação do ser-aí com a morte mesma, a conexão entre caráter resoluto (abertura) e morte, a ante-cipação. Mas essa ante-cipação da morte, de qualquer modo, não para que o mero “nada” seja alcançado, mas, inversamente, para que a abertura para o seer se abra completamente a partir do que há de mais extremo. Todavia, está completamente em ordem que, se não se pensa aqui de maneira “ontológico-fundamental”, tendo por intuito a fundação da verdade do seer, as mais terríveis e disparatadas interpretações equivocadas se imiscuem e se propagam e, naturalmente, uma “filosofia da morte” é justificada. [tr. Casanova; GA65: 161]
A suportabilidade insistente da clareira do encobrir-se é assumida na determinação de uma busca, de um cuidado e de uma guarda do homem, que se apropria do ser em meio ao acontecimento, que se sabe pertinente ao ser como a essenciação do seer. [tr. Casanova; GA65: 173]
O que se tem em vista é sempre apenas o projeto da verdade do seer. O próprio jogador, o ser-aí, é jogado, apropriado em meio ao acontecimento pelo seer. [tr. Casanova; GA65: 182]
Se esse clamor do aceno extremo, a apropriação mais velada em meio ao acontecimento, ainda acontecerá abertamente ou se a indigência a tudo emudecerá e todo domínio permanecerá de fora; e se, caso o clamor aconteça, ele será então ainda apreendido; se o salto para o interior do ser-aí e, com isso, a partir de sua verdade, a viragem ainda vão se tornar história: é aí que se decide o futuro dos homens. O homem pode ainda por séculos espoliar e desertificar o planeta com as suas maquinações, o gigantesco desse impulso pode se “desenvolver” em direção ao irrepresentável e assumir a forma de um rigor aparente, o disciplinamento pelo elemento desértico enquanto tal; a grandeza do seer pode permanecer vedada porque nenhuma decisão mais é tomada sobre a verdade, a não verdade e sua essência. Somente ainda cálculo do sucesso e do insucesso das maquinações é que são computados. Esse cálculo estende-se para uma “eternidade” arrogada, que não é nenhuma eternidade, mas apenas o e-assim-por-diante sem fim do que há de mais fugidio e desértico. [tr. Casanova; GA65: 255]
A determinação histórica da filosofia tem seu ápice no conhecimento da necessidade de criar a escuta para a palavra de Hölderlin. O poder ouvir corresponde a um poder dizer, que fala a partir da questionabilidade do seer. Pois isso é o mínimo que pode ser realizado para a preparação do espaço da palavra. (Se é que tudo não foi invertido ainda e transformado no elemento “científico” e “historiológico-literário”, seria preciso dizer: uma preparação do pensamento para a interpretação de Hölderlin precisa ser criada. “Interpretação” com certeza não tem em vista aqui tornar “compreensível”, mas sim fundar o projeto da verdade de sua poesia na meditação e na tonalidade afetiva, nas quais o ser-aí por vir vibra) (cf Reflexões VI e VII Hölderlin). Essa caracterização histórica da essência da filosofia a concebe como pensar do seer. Esse pensar nunca pode fugir para o interior de uma figura do ente e experimentar nela toda a luz do simples a partir da riqueza reunida de sua obscuridade estruturada em suas junções. Esse pensar também não tem como seguir jamais a dissolução em meio ao amorfo. Esse pensar precisa capturar em um ponto aquém da distinção entre figura e ausência de figura (o que só se dá no ente), no abismo do fundamento da figura, o ímpeto de jogada de seu caráter de jogado e suportá-lo no aberto do projeto. O pensar do seer precisa pertencer ao que tem de ser pensado mesmo de uma maneira completamente diversa de todo e qualquer ajuste em relação ao elemento objetivo porque o seer não tolera a própria verdade como suplemento e como algo trazido para junto de si, mas “é” ele mesmo a essência da verdade. A verdade, aquela clareira do encobrir-se, em cujo aberto os deuses e o homem são apropriados em meio ao acontecimento para a sua contra-posição, abre ela mesma o seer como história. Nós talvez precisemos pensar essa história, se é que devemos aprontar o espaço que em seu tempo precisa resguardar em ressonância a palavra de Hölderlin, que denomina uma vez mais os deuses e o homem; e isso para que essa ressonância afine aqueles tonalidades afetivas fundamentais, que determinam o homem por vir em meio à guarda da indigencialidade dos deuses. Essa caracterização da filosofia em termos da história do seer carece de uma explicitação, que auxilie o surgimento de uma lembrança do pensar até aqui (a metafísica), mas retransporte ao mesmo tempo o porvir para o interior da copertinência histórica. [tr. Casanova; GA65: 258]
A história do pensar metafísico e do pensar da história do ser acontece apropriadoramente sobretudo em suas diversas eras segundo potências diversas do primado do ser diante do ente, do ente diante do ser, da confusão dos dois, da extinção de cada primado na era da compreensibilidade calculável de tudo. Nós sabemos o futuro da história do ser, nós sabemos que, se ela quiser permanecer história, o seer mesmo precisará se apropriar do pensar em meio ao acontecimento. Mas ninguém conhece a figura do ente vindouro. Só uma coisa é certa: que todo e qualquer re-pensar do seer e toda criação a partir da verdade do seer, sem a assistência já protetora do ente, jamais pôde produzir outras forças de questionamento e de dizer, de jogo e de sustentação, diversas das que foram produzidas pela história da metafísica. Pois esses outros precisam inserir ainda em nome do que lhes é mais próprio o diálogo questionador com o primeiro início, que emergiu em uma clara profundidade, e sua história no pensar. Equipando-se com esse diálogo, eles precisam se tornar, juntamente com os mais solitários do primeiro pensar, os ainda mais solitários do abismo, que não apenas suporta no outro início todos os fundamentos, mas também os sopra. Para aqueles que simplesmente vierem depois, o que se mantém objeto de uma erudição e de uma pesquisa historiológicas e que, por fim, se mostra ainda meramente como instrução escolar, a história do pensar metafísico em suas “obras”, precisa se tornar primeiro história, na qual cada coisa é reunida em sua unicidade e irradia como uma visão luminosa do pensar uma verdade do seer em seu espaço não mensurado próprio. Como uma grandeza do ser-aí pensante é requisitada aí pelo próprio seer, cuja figura nós quase não pressentimos a partir da existência poética de Hölderlin e a partir da viandança horrível de Nietzsche; como no espaço do pensar da história do ser só há ainda essa grandeza, razão pela qual mesmo o discurso sobre a grandeza permanece pequeno demais, a preparação de tal pensar precisa reunir toda inexorabilidade e se movimentar nas mais claras distinções. Pois somente tais distinções garantem a coragem para a insistência no âmbito do impulso do que há de mais questionável, que é usado pelos deuses e esquecido pelo homem, e que nós denominamos o seer. [tr. Casanova; GA65: 259]
A posição de transição precisa ter de maneira igualmente clara na meditação: o elemento tradicional do projeto do seer e o outro: o seer como projeto, por mais que a essência projetiva não possa mais se determinar da mesma maneira a partir do elemento representacional, mas precise se determinar a partir do caráter de apropriação em meio ao acontecimento do seer. [tr. Casanova; GA65: 262]
Somente esse pensar do seer é verdadeiramente in-condicionado, isto é, somente ele não é condicionado e determinado por algo condicionado fora de si e pelo que precisa ser pensado por ele, mas unicamente determinado por aquilo que precisa ser pensado nele, por meio do seer mesmo, que, contudo, não é “o absoluto”. Na medida em que o pensar (no sentido do re-pensar), porém, conserva a essência a partir do seer; na medida em que até mesmo o ser-aí, cujo re-pensar precisa ser uma insistência, só é apropriado em meio ao acontecimento pelo ser, o pensar, isto é, a filosofia, tem sua origem mais própria e mais elevada a partir dela mesma, a partir daquilo que precisa ser pensado nela. Somente agora é que ela se mostra de maneira pura e simplesmente inatacável frente a avaliações e valorações, que calculam tudo de acordo com metas e utilidades, isto é, que abusam correspondentemente tanto da filosofia quanto da arte como uma realização cultural ou mesmo por fim apenas ainda como expressão cultural, colocando-as sob o domínio das suposições, que, ao que parece, dominam a filosofia, mas que, com efeito, permanecem muito abaixo dela, desfigurando a sua essência em meio ao compreensível e impelindo em tal desfiguração para o interior daquilo que ainda é precisamente tolerado e ridicularizado. [tr. Casanova; GA65: 265]
O caráter completamente inabitual do seer em face de todo ente precisa ser “experimentado” pelo homem, ele precisa ser apropriado por ele em meio ao acontecimento e levado à verdade do seer. [tr. Casanova; GA65: 269]
O seer des-loca, na medida em que se apropria do ser-aí em meio ao acontecimento. Esse des-locamento é uma afinação, sim, o rasgo originário do próprio elemento afinador. A tonalidade afetiva fundamental da angústia suporta a exposição ao des-locamento, na medida em que esse des-locamento anula em um sentido originário, de-põe o ente enquanto tal, isto é, na medida em que esse niilizar não é nenhuma negação, mas, se é que ele pode ser interpretado a partir do comportamento que assume uma posição, uma afirmação do ente enquanto tal como o de-posto. A questão é que a niilização é justamente a própria de-posição, por meio da qual o seer se sobreapropria enquanto de-posição da clareira do aí apropriado em meio ao acontecimento. E, por sua vez, a niilização do seer na re-tração, inteiramente irradiada pelo nada, essencia o seer. E somente quando tivermos nos libertado da falsa interpretação do nada a partir do ente, somente quando determinarmos a “metafísica” a partir da niilização do nada e por meio daí, ao invés de, ao contrário, degradarmos o “nada” a partir da metafísica e a partir do primado nela vigente do ente, transformando-o no mero não da determinação e mediação do ente como Hegel e todos metafísicos antes dele: somente então teremos pressentido que força da insistência no ser humano entretece a partir do “deslocamento”, agora visado como tonalidade afetiva fundamental da “ex-periência” do seer. Por meio da metafísica, e isso significa ao mesmo tempo por meio do cristianismo, somos desencaminhados e nos habituamos a supor no “deslocamento”, ao qual pertence a angústia como o nada ao seer, apenas o elemento desértico e sombrio, ao invés de experimentarmos nela a determinação em meio à verdade do seer e a partir dela saber jurisdicionalmente o estado de sua essenciação. [tr. Casanova; GA65: 269]
O entre é a implosão simples, que se apropria do seer em meio ao acontecimento naquele ente até então reservado para a sua própria essência que ainda não pode ser denominado assim. Essa implosão é a clareira para o velado. A implosão, contudo, não dispersa, e a clareira não é nenhum mero vazio. [tr. Casanova; GA65: 270]
A excedência dos deuses é o ocaso na fundação da verdade do seer. O seer, porém, se apropria do ser-aí em meio ao acontecimento para a fundação de sua verdade, isto é, de sua clareira, porque, sem essa de-cisão clareadora de si mesmo na urgência do deus e na guarda do ser-aí, ele precisaria consumir a si mesmo no fogo da própria brasa não dissolvida. Como podemos saber o quão frequentemente isso já não aconteceu? Se nós o soubéssemos, então não haveria a necessidade de pensar o seer na unicidade de sua essência. [tr. Casanova; GA65: 271]